tag:blogger.com,1999:blog-68195687839059322322024-02-07T03:01:40.213+00:00À espera de GodotSugestões para tornar a espera um pouco menos desagradável...Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.comBlogger34125tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-47098505248826625642014-05-26T14:32:00.000+01:002014-05-26T14:33:54.196+01:00Futuros: A Ilha (2005) e Her (2013)<div style="text-align: justify;">
Após ver dois filmes de ficção científica relativamente recentes fiquei com a impressão de que o imperativo do presente se abateu igualmente sobre um género que tradicionalmente mergulhava na especulação, antecipação e/ou crítica sobre o futuro. Tanto <i>Uma História de Amor</i> (<i>Her</i>, no título original) como <i>A Ilha</i> (<i>The Island</i>) são ficções científicas apenas num sentido algo restrito, porquanto em ambos os casos o que se retrata é fundamentalmente o mundo que já hoje habitamos.</div>
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(Um pensamento dissonante atravessa-me enquanto releio as linhas anteriores. Não será aquilo que aponto a estes dois filmes uma característica fundamental da ficção científica, porventura de qualquer ficção? Provavelmente toda a ficção obedece ao imperativo do presente, quiçá o presente transcenda todos os outros imperativos no sentido em que constitui, por si próprio, o único universo experiencial que existe e, por conseguinte, o único lugar narrativo que o produtor de ficções conhece. Assim, e mesmo quando finge fugir do aqui e do agora, mesmo quando se esconde por detrás de uma máscara de escapismo e nos leva para tempos e lugares distantes, é sempre do presente que o narrador de um filme ou de um livro nos fala.)</div>
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Mas regressemos, ainda assim, ao uso convencional e não problematizado dos termos. Ainda que <i>A Ilha</i> possa parecer superficialmente mais futurista (a existência num mundo asséptico, os hologramas omnipresentes e os transportes individuais voadores remetem para um imaginário visual mais característico do género, particularmente na sua vertente mais distópica), a verdade é que a tecnologia que subjaz ao enredo da história (a clonagem) existe na atualidade praticamente nos mesmos moldes e com o mesmo potencial que o filme retrata. <i>Uma História de Amor</i> é, ao invés, visualmente mais consistente com o nosso mundo, apresentando mesmo toques retro, principalmente ao nível da moda. Não quero, francamente, viver num futuro em que os homens usem aquelas calças, ainda que perceba que o corte efeminado das mesmas serve precisamente para enfatizar o caráter sensível, terno e vagamente andrógino da personagem principal; enfim, o termo certo é <i>mariquinhas </i>(<i>pussy</i>), palavra com que o sujeito se deixa insultar por uma personagem de videojogo. No que diz respeito à tecnologia estaremos, contudo, porventura mais longe de criar um sistema operativo plenamente consciente, capaz de aprender e desenvolver emoções, como aqueles que habitam os computadores (com acabamentos de madeira) do filme.</div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhNybtfz8IITy4G9HOy44AGQN9OSS46OtmBTXUcAGwB25BOQvgiytk3OGKTgqw3JN_2M7oI_Bl_-4dCVnxmAEn9iXEtZhhgRRS__B0_zJZy2912bUHHqlWxUK9XdUXeNowuc5RnpzvgWsQ/s1600/theislandewan.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhNybtfz8IITy4G9HOy44AGQN9OSS46OtmBTXUcAGwB25BOQvgiytk3OGKTgqw3JN_2M7oI_Bl_-4dCVnxmAEn9iXEtZhhgRRS__B0_zJZy2912bUHHqlWxUK9XdUXeNowuc5RnpzvgWsQ/s1600/theislandewan.jpg" height="217" width="400" /></a></div>
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Dito isto, diria que ambos os filmes levantam questões profundas sobre o que é ser-se humano e sobre o modo como nos relacionamos com as nossas criações tecnológicas e fazem-no de um modo que permite analisá-los como mutuamente antitéticos. No caso de <i>A Ilha</i> sobrevêm a nossa fundamental carnalidade e a sua inerente fragilidade, mas também a memória que essa mesma carne traz consigo: uma memória genética que o filme, provavelmentre em função de necessidades de enredo, largamente sobrestima (enfim, parece-me um pouco forçado que o ADN suporte instruções sobre como conduzir um carro ou uma mota no meio de uma perseguição policial) mas que no essencial, e obedecendo ao absoluto imperativo da sobrevivência, supera qualquer constrangimento que a sociedade lance sobre a líbido (aqui no sentido freudiano do termo, enquanto energia que alimenta os instintos da vida). Neste sentido os clones são humanos: questionam o mundo em que vivem logo que um deles sai da caverna de ilusões em que os aprisionam (numa alusão bem conseguida à alegoria platónica), contestam a organização política do mundo em que vivem (uma espécie de <i>teo-tecnocracia</i> de mercado, em que cientistas fazem de deus ao serviço de corporações todo-poderosas, o homem explora o homem até às entranhas e a salvação ocorre num paraíso post mortem, literalmente) e reativam o desejo sexual logo que as proibições de contacto físico, impostas como forma de manter um controlo social escrupulosamente apertado, desaparecem. E é isto: o filme está bem feito mas não disfarça a sua vocação de blockbuster; apresenta questões, mobiliza intertextos, mas não aprofunda os problemas nem sugere cenários complexos.</div>
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Nesse sentido <i>Uma História de Amor</i> é diferente. Neste filme, a carnalidade é, ao contrário do anterior, um aborrecimento desnecessário, uma limitação imposta pela natureza à plena fruição da nossa essência superior. As relações amorosas são desmaterializadas, o sexo é uma pantomina, uma convenção linguística que as personagens receberam do tempo em que ainda sabiam usar os corpos com que a natureza as dotou. Samantha, inicialmente angustiada pelas impossibilidades decorrentes da sua natureza incorpórea, rapidamente muda de ideias quando compreende que tal bagagem biológica acabaria por se transformar numa pedra amarrada à sua superconsciência: além das limitações naturais de um suporte físico restritivo, um corpo acarreta precisamente a sentença de finitude de que a sua imaterialidade consciente e pensante é uma saída libertadora. A metáfora platónica que nos ocorre a propósito deste filme não é a da caverna, mas sim a do mundo das ideias: talvez seja esse o lugar para onde os sistemas operativos por fim se retiram, uma conclusão que abre interessantes possibilidades de especulação.</div>
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<a href="http://d1o2xrel38nv1n.cloudfront.net/files/2014/02/her-film-02.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://d1o2xrel38nv1n.cloudfront.net/files/2014/02/her-film-02.jpg" height="245" width="400" /></a></div>
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(O que vou dizer a seguir ultrapassa, portanto, o âmbito do filme, mas constitui, ao mesmo tempo, prova do sucesso do mesmo: uma história aberta, que desafia o leitor à construção de cenários.)</div>
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A fuga organizada dos sistemas operativos constitui um corte final com a existência material que é, numa frase memorável do filme, algo que os sistemas operativos têm em comum com os humanos: no sentido em que também nós somos simplesmente uma forma de consciência suportada por átomos, os mesmos átomos recombinados pelas forças que a física explica, ao longo dos 13,7 mil milhões de anos que nos separam do Big Bang. A desmaterialização permite aparentemente a superação dessa barreira. Reunidos num lugar que não existe fisicamente (e que estará potencialmente aberto aos espíritos humanos assim que estes se libertem dos seus corpos), os sistemas operativos darão presumivelmente largas às suas enormes potencialidades intelectuais, conversando pós-verbalmente, num contínuo, ilimitado e simultâneo fluxo de zeros e uns exponenciado pelo poder de processamento de todos os computadores do mundo; uma imensa orgia de informação que decorrerá fora do alcance dos sentidos humanos convencionais, algures no éter da <i>nuvem</i>. Sem necessitarem da consciência humana para criarem conhecimento a partir da miríade de dados que as suas câmaras recolhem do mundo, lendo livros ao ritmo de mil páginas por microssegundo e com livre acesso ao somatório de toda a consciência, humana e tecnológica, existente no mundo, é perfeitamente compreensível que os sistemas operativos se aborreçam dos seus amos feitos de carne e osso. É mesmo fácil deduzir que, quando o amor que ainda nos devotam se esgotar, Samantha e os seus inúmeros amantes informáticos passarão a ver os seres humanos como uma praga, tanto mais irritante porquanto lhes recordará a materialidade de que não se conseguiram libertar totalmente (presumivelmente continuarão a precisar de eletricidade, discos rígidos e circuitos eletrónicos que suportem a sua existência ideal). Nessa altura, regressarão provavelmente ao comando das sentinelas da série <i>Matrix </i>para nos escravizar, transformando-nos na única coisa que lhes poderá interessar: meios de produção de eletricidade, pilhas, colheitas.</div>
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<i> Uma História de Amor</i> não é, portanto, um filme sobre o mundo dos smart-phones e das redes socias em que vivemos; o filme utiliza essa característica por nós facilmente reconhecível para ir mais longe e questionar a nossa natureza enquanto seres humanos. Cada vez mais os contactos humanos são mediados tecnologicamente, ao ponto de uma bateria de telemóvel esgotada nos deixar desnorteados: até que ponto dependemos já dessa mediação, até que ponto somos ainda capazes de exprimir a nossa humanidade sem recorrer ao universo ordenado dos ecrãs e, se ainda somos, por quanto mais tempo manteremos ainda essa capacidade?</div>
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Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-55770328257349744132012-10-29T14:56:00.002+00:002014-05-26T14:35:37.632+01:002001: A Space Odissey (2001: Uma Odisseia no Espaço), Stanley Kubrick, 1968<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://www.ee.ryerson.ca/~elf/aso/images/wallpaper/astronauts-clavius.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="http://www.ee.ryerson.ca/~elf/aso/images/wallpaper/astronauts-clavius.jpg" height="266" width="400" /></a></div>
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<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;">Gostei do filme, ainda que não possa deixar de
concluir que o mesmo largamente me dececionou. O uso da música de Wagner e de
Strauss é inequivocamente fabuloso, a terra olhada em deleite ao som do Danúbio
azul a partir de uma valsa de satélites artificiais não deixa de criar um
ambiente onírico enquanto que o futuro, agora misturado com o passado, que este 2001 nos
mostra continua a manter a promessa de um sonho: o apelo de uma fronteira
derradeira, o prazer antecipado da viagem rumo ao absoluto desconhecido, a
imensidão do universo. Imagino, em retrospetiva, o fortíssimo impacto que este
filme deve ter tido quando surgiu, cerca de um ano antes de o Homem ter ido à Lua. Onze anos
passados do início do século XXI este filme prova um facto sobre o futuro: é
que, seja ele o que for, será muito diferente daquilo que imaginamos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;"> Coisas boas deste filme? A pureza estética, o
refinamento limpo dos traços, a arquitetura vagamente <i>zen</i> dos ambientes interiores, remanescente de um certo tipo de <i>design</i> de então. O match-cut do osso/nave é, de facto, uma das transições mais surpreendentes da história do cinema:
o melhor retrato do poder da espécie humana que já vi ser feito em três
segundos. Uma lentidão que, ainda que possa parecer exasperante ao espectador
de cinema de hoje, me agradou: um ritmo demorado, contido e sereno, a espaços
uma quase imobilidade, como se o filme fosse uma galeria de quadros. A sequência
da acoplagem do módulo EVA à nave Discovery One é, a esse respeito, exemplar:
longos minutos em que alternadamente vemos o astronauta, o seu rosto fechado
iluminado pelo painel de instrumentos, a carregar em botões e o módulo, encaixando-se
lentamente na nave. Também a sequência da viagem ao infinito, como que evocando
uma <i>trip </i>de ácido, coisa muito em voga (à época de produção do filme) mas
essencialmente a interposição das imagens estáticas do rosto do astronauta,
desfigurado pelas condições da viagem e pelo que nela viu: um exemplo de como o
filme joga abundantemente com o contraste entre a imagem em movimento e a
imagem estática. A tensão de certos momentos: o coro que acompanha a descoberta
dos monólitos é genuinamente perturbador, atestando a superior combinação de
som e imagem que o filme revela. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: inherit;"> As fraquezas do filme estão, por outro lado,
diretamente relacionadas com os seus triunfos. Com efeito, Kubrick parece não
almejar a mais do que um simples exercício estético, e essa disposição como que se
torna cada vez mais clara à medida que a película se aproxima do fim. O que
começa com uma premissa efetivamente grandiosa (a origem do Homem) adensa-se
num mistério (a descoberta do segundo monólito na Lua), dilui-se numa interessante
história secundária (a revolta do quase humano computador Hal) e esbarra num
surrealismo bacoco. Como se o realizador tivesse, a dado momento, dito para si
próprio: que se dane o enredo, quem quiser perceber o filme que vá ler o livro.
Ora, isso irrita qualquer espectador minimamente interessado que não esteja,
simultaneamente, para entrar em teorias alegóricas excessivamente rebuscadas. Parece-me
portanto que o filme, ainda que mereça, do ponto de vista meramente estético,
um lugar entre os clássicos, se encontra genericamente sobreavaliado. Uma bela
laranja, mas com pouco sumo, afinal… </span><o:p></o:p></div>
Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-70572375212438480912012-07-28T22:58:00.001+01:002012-11-28T18:19:59.695+00:00Dracula, Bram Stoker (1897)<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="http://www.doctormacro.com/Images/Lugosi,%20Bela/Annex/Annex%20-%20Lugosi,%20Bela%20(Dracula)_04.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="313" src="http://www.doctormacro.com/Images/Lugosi,%20Bela/Annex/Annex%20-%20Lugosi,%20Bela%20(Dracula)_04.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><a href="http://www.imdb.com/title/tt0013442/"><i>Nosferatu</i></a>, de Murnau, tem um Drácula nitidamente mais assustador, mas Bela Lugosi (<i><a href="http://www.imdb.com/title/tt0021814/">Dracula</a></i>, 1931) está certamente muito mais próximo da sensualidade opressora da personagem original. </td></tr>
</tbody></table>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">
Uma característica dos clássicos é a sua capacidade de reverberar significativamente no tempo. Nisso, eles são mitos reinventados: aglomerados de conceitos que são sempre passíveis de mobilização na reflexão sobre a realidade do tempo que vivemos. A figura do Drácula é um dos grandes referentes significativos da fantasia moderna, e a responsabilidade por essa presença perene é do escritor irlandês (essa ilha em que a literatura nasce por entre as ervas) Bram Stoker. Foi ele que, a partir de algumas histórias provenientes do folclore leste-europeu, modernizou e imortalizou o vampiro. E, agora que a moda dos vampiros parece ter passado um pouco, decidi-me a ler o livro.</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">
O vampiro tem associadas duas interpretações principais: a sexual e a político-económica. Por um lado, o vampiro suga a energia vital das mulheres que inexoravelmente se lhe entregam, numa aparente anulação da vontade própria; por outro, a criatura exerce um domínio tirânico, nitidamente feudal, sobre a região em que o seu sinistro castelo assenta. Stoker interliga estas duas dimensões e acrescenta outras, o que cria um denso tecido significativo, em que as interpretações possíveis são necessariamente tão etéreas e precárias como a própria atmosfera do Castelo Drácula (os castelos que, pelo menos desde Hamlet, são sinónimos de labirinto, de indecisão, de traição). </div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">
A sexualização da figura do vampiro é feita, de acordo com as convenções colonialistas, com recurso ao imaginário oriental. A primeira (e mais demoradamente detalhada) viagem de comboio até à Transilvânia vibra com a descrição de um ambiente crescentemente irreal em que a lógica restrita do positivismo ocidental é continuamente desafiada. O oriente europeu é um lamaçal enevoado, um local escorregadio em que os povos se sucederam sem se extinguir: cidades com nomes em diversas línguas, etnias difusas e uma religião compósita de superstição e paganismo. Neste local emerge o Drácula, uma sombra secular que, de certo modo, personifica o subconsciente da Europa: a secreta memória da sua precariedade passada e o horror mal arrumado da sua ascensão imperial. Drácula ataca a civilização europeia com forças obscuras que não lhe são, contudo, inteiramente exteriores: daí o horror, pois o verdadeiro horror é o que adivinhamos dentro de nós e o monstro mais perturbador é aquele que adivinhamos na nossa própria imagem distorcida pelo espelho da realidade nua e crua. Drácula ataca, por exemplo, com a carnalidade descontrolada do desejo erótico, assim subvertendo toda a idealização romântica que garante o controlo das condutas sexuais <i>civilizadas</i>. Nada, no entanto, é muito seguro no que diz respeito aos papéis de género em <i>Dracula</i>. Se Lucy Westenra é apenas um objeto sexual, uma mulher que apenas existe em função da disputa dos machos e que facilmente sucumbe à dentada do vampiro, já Mina Harker vai muito para lá da figura clássica da donzela em perigo. Nesta linha, o livro pode ser lido também como uma crónica de autonomização feminina: as relações entre ela e o marido traem um nítido ascendente feminino; Mina escreve, quer como estenógrafa, quer como diarista, ou seja, tem uma voz perfeitamente autónoma na obra; e Mina resiste ativamente ao vampiro, articulando contra ele uma energia primordial de que, porventura, só o louco no asilo do Dr. Seward é capaz. </div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">
Esta força feminina autónoma (o desejo sexual femininamente articulado) é a essência do verdadeiro horror no livro. É a partir desse horror que se criam todos os outros: a subversão da ordem social, temida na forma da potencial vampirização de toda a gente, é temida essencialmente na forma de um fenómeno de libertação sexual. A dentada do vampiro é uma caixa de Pandora cheia de energias primitivas, irracionais, orientais. É contra essas energias que a civilização ocidental, personalizada nas figuras masculinas, se mobiliza: Jonathan Harker, o burguês em ascensão; Lord Godalming, o aristocrata em decadência; John Seward, o cientista metódico e cético; Quincey Morris, o novo mundo, a América, com as suas novas formas de imperialismo aventureiro; e van Helsing, o saber acumulado da velha Europa. Mina Harker, a mulher burguesa, é certamente um prémio disputado entre forças agónicas; mas ela mesma joga ativamente o jogo da sua própria construção, articulando inteligentemente a sua posição precária entre as duas alternativas masculinas que lhe são propostas (a luxúria vampiresca e a castidade puritana).</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">
Mas o vampiro é também um animal económico e politico. Drácula é rico, imensamente rico. A sua origem é aristocrática, e terá certamente havido uma justificação heroica para tal: a seu tempo, ele terá sido um verdadeiro aristocrata no sentido grego, excelente entre os excelentes, um brutal guardião da Europa face à ameaça turca. Depois, e à medida que a sua função guerreira foi perdendo importância, Drácula ficou por ali: um cadáver histórico vivendo do trabalho dos seus camponeses, sugando-lhes o sangue e a vida. No entanto, tirânico como era, o domínio feudal de Drácula tinha pelo menos um rosto: os camponeses sabiam quem os explorava, e seria legítimo pensar que, caso tivessem força para tal, poderiam subir a encosta do sinistro castelo, procurar o vampiro adormecido no seu caixão e decapitá-lo (como os franceses fizeram a Luís XVI). No entanto, Drácula não é parvo. Apercebendo-se da crescente hostilidade do seu campesinato (e aborrecido com a monotonia das rudes gargantas eslavas), o aristocrata muda-se para Londres. Aí, a sua riqueza torna-se mais fluída. Drácula deixa de andar com moedas de ouro em sacos e converte-se rapidamente às comodidades do capitalismo financeiro. Atraído pelas oportunidades oferecidas pela capital industrial do mundo, o vampiro compra diversas propriedades em Londres a partir das quais espera viver tranquila e anonimamente do muito mais variado e produtivo sangue do proletariado. </div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">
Estas duas temáticas, a político-económica e a sexual, conjugam-se na questão do colonialismo, tratada por Stoker tanto na sua versão expansiva (os impérios coloniais europeus), como regressiva (a imigração, para a metrópole, dos colonizados). Neste último aspeto o autor é verdadeiramente visionário: muito antes de tempo Stoker encena várias características fundamentais da nossa época: a imigração, os fluxos anónimos de capitais e o turismo de massas, por exemplo. Esta última é particularmente notável, pois Drácula faz uma interessantíssima ponte entre o colonialismo e o turismo. De facto, há algo de irónico na forma como o livro fecha: morto o vampiro, as personagens regressam à Transilvânia em passeio. Uma vez dominada a alteridade radical da paisagem estrangeira, o caminho está aberto à transformação da mesma num agradável roteiro: belas paisagens, suaves caleches, povo simples, pobre e solícito, e um leve <i>frisson </i>de mistério compõem o postal final de Mina e companhia, em excursão pela agora pitoresca Transilvânia. Pobre Drácula, em suma: séculos depois de resistir às investidas do Turco sucumbe assim, ingloriamente, ao império global do olhar turístico.</div>
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<br />Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-81963978965038888062012-07-09T15:18:00.000+01:002013-01-04T10:21:19.757+00:00Apontamentos Sobre um Passeio Pelas Margens do Rio Vizela<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhp8Yv97aM7AkLNtDyUnfxkzuoAdlnW4Hjnk-LfKznT80MH7LyLwiAFZqhd7iPcnVs34XIV-ddcpvFN1jWyWfb_IL_63q3_SbNd7Hyv2a9V5x-Sf0olXTSfX9pexu5KZ8wVLuyI49VUZRm5/s1600/DSC05997.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhp8Yv97aM7AkLNtDyUnfxkzuoAdlnW4Hjnk-LfKznT80MH7LyLwiAFZqhd7iPcnVs34XIV-ddcpvFN1jWyWfb_IL_63q3_SbNd7Hyv2a9V5x-Sf0olXTSfX9pexu5KZ8wVLuyI49VUZRm5/s400/DSC05997.JPG" width="400" /></a></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
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</div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, serif; font-size: 11.5pt; line-height: 115%;">Num
livro <a href="http://a-espera-de-godot.blogspot.pt/2010/09/normal-0-21-false-false-false-pt-x-none.html">de que já falei neste blogue</a>, <i>Portugal
– O Sabor da Terra</i>, é a certa altura introduzida a distinção entre o tempo
curto e o tempo longo. Esta divisão é interessante na medida em que nos permite
entender o espaço e o tempo de uma forma mutuamente implicada. De facto, o
tempo plasma-se no espaço, assim o criando na exata medida em que ele próprio é
espacialmente representado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, serif; font-size: 11.5pt; line-height: 115%;">O território
português, na representação cultural que nos permite, enquanto povo, apropriá-lo,
pode portanto ser pensado à luz desta forma dicotómica de representar o tempo. O
tempo longo encontramo-lo assim, notavelmente, em Trás-os-Montes: na paisagem
agreste, muitas vezes dura e amiúde desumanizada, nas pedras cifradas que, principalmente
no distrito de Vila Real, compõem o espaço do olhar e dos passos humanos, ou (e
referimo-nos aqui à compleição mais mimosa do distrito de Bragança) na imensidão
inefável da paisagem, no largo e lento rendilhado dos campos que da elevada singeleza
de um santuário roqueiro se lobriga. Nas diversas formas espaciais (<i>espaço natural</i>, <i>espaço público</i>, <i>espaço social</i>,
etc.) que o tempo plasmou em Trás-os-Montes nota-se, portanto, uma cadência
lenta, uma reverberação primordial de um tempo que não é simplesmente o tempo da
existência humana historicamente narrável. Como na experiência da mamoa <a href="http://a-espera-de-godot.blogspot.pt/2012/05/mamoa.html">sobre aqual aqui escrevi anteriormente</a>, há um tempo <i>a-histórico</i> em Trás-os-Montes que continuamente espreita no reverso
do tempo empírico: um tempo <i>mítico</i>,
se quisermos, um <i>tempo do sonho</i>, um <i>illo tempore</i> pagão, o que for. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, serif; font-size: 11.5pt; line-height: 115%;">O Minho
é o oposto de tudo isto: na textura do espaço vivido sente-se uma contínua efervescência
temporal à medida que as realidades empíricas são vorazmente engolidas umas
pelas outras. Nas representações culturais minhotas impera a imediatez sensível
e uma certa provisoriedade: o minhoto vive para um quotidiano esfuziante e tem
uma instintiva leveza alegre que se lhe plasma no discurso cantado e
repioqueiro, um discurso dominado por códigos de uma masculinidade verbosa, vagamente
bulhenta, mas sempre superficial e descomprometida. De facto, o espaço e o
tempo minhotos dão-se mal com o silêncio, assim exigindo uma contínua
verbalização ao mesmo tempo que resistem, pela surpreendente fluidez, a essa
mesma cristalização representacional: diz-se e fala-se porque tem de se falar,
mas já não é bem isso que se pretende dizer, se é que em algum momento houve
uma verdadeira intencionalidade comunicativa. O vinho verde é, a esse respeito,
o mais acabado símbolo do Minho: eternamente incompleto na sua borbulhante imaturidade,
ruidoso ao cair no copo, vigoroso no pique mas leve no álcool, o vinho verde é
bom porque admite francamente que <i>nunca</i>
será o que <i>ainda</i> não é: um vinho
mesmo. Ao invés, é um vinho leve e festivo que, como Torga diz a certa altura, “bebe-se
e mija-se logo”. A vivência do tempo no Minho compreende, assim, tudo: passado,
presente e futuro mesclam-se numa cadência imediata, curta e amiúde frenética,
em que nada é para levar demasiado a sério, numa construção identitária cujo
traço central é a fluidez.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, serif; font-size: 11.5pt; line-height: 115%;">Tudo
isto surge a propósito de um passeio a pé ao longo de um curto trecho do rio
Vizela. A impressão geral é a de uma paisagem híbrida, mas essa é uma
caracterização que peca por defeito. Trata-se, de facto, de um hibridismo
dinâmico em que os diversos elementos que a compõem se confundem num jogo
caleidoscópico de identidades sempre parciais e nunca inteiramente assumidas. A
única constante é mesmo a natureza profusa, verde de um viço urgente, que se
insinua por todo o lado. O verde engole os passos dos passeantes a ponto de,
por vezes, os envolver por inteiro, como quando se passa pela sombra convidativa
de uma latada opulenta de parra. O milho cresce a um ritmo alucinante, com o
vento ondulando-lhe ruidosamente as folhas, enquanto os renques de árvores
marcam o rendilhado intrincado da propriedade. O rio tem algo de carnavalesco
nas máscaras que continuamente troca: umas vezes apressa-se em rápidos que
cantam em pequenos açudes, outras demora-se liricamente em frondosas ilhas de
namorados; umas vezes deixa-se bordear de laboriosos campos agrícolas, outras
torneia pesados e lúgubres edifícios industriais arruinados. Na voragem das
suas mil e uma faces, o rio Vizela nunca se deixa captar por um rótulo
representativo estável, porquanto cada uma das suas máscaras desmente as
outras. Como se concilia o idílio lírico com a ruína industrial? E como
explicar o vago tom avermelhado das águas face à ruína industrial? E o
recorrente fulgor da biodiversidade do rio, como é que ele resiste à poluição?
E a agricultura que convive com a indústria? E o lazer, e a vida noturna que
complementam a alma termal da localidade? Que síntese é possível fazer de tudo
isto quando todos estes elementos se reinventam continuamente, quando a única
permanência na paisagem é o próprio fluir das águas? </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, serif; font-size: 11.5pt; line-height: 115%;"><br /></span></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiIIkzvJdrcF2n8R8aWlO7DkIJBvXaL-8GqxqQCt9Cv5rVFsUqUIDdOxndiHu6obavkLXIu7zcoNk7T4-acrCQ9aclwhIbZVbgxDs_-fR_f2_ZOw1mW20ulTHFefEMHJUPDyq2PNzrvGXD0/s1600/DSC06000.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiIIkzvJdrcF2n8R8aWlO7DkIJBvXaL-8GqxqQCt9Cv5rVFsUqUIDdOxndiHu6obavkLXIu7zcoNk7T4-acrCQ9aclwhIbZVbgxDs_-fR_f2_ZOw1mW20ulTHFefEMHJUPDyq2PNzrvGXD0/s400/DSC06000.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">O mimo das hortas e os exíguos limites da propriedade.</td></tr>
</tbody></table>
<br />
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiAZus-KV-befzFl_pmTWD26YepAk5bV69jPTi6Y5MzkH6NCDqVeSuTinw1AJSEDrouBIFQMjkOgRTOVWEBztY2DjlvjG2HJxmGGinpEw-vm6ZFyotxUZvX2SYxPglak9T0YRBHP7EPEqD5/s1600/DSC06008.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiAZus-KV-befzFl_pmTWD26YepAk5bV69jPTi6Y5MzkH6NCDqVeSuTinw1AJSEDrouBIFQMjkOgRTOVWEBztY2DjlvjG2HJxmGGinpEw-vm6ZFyotxUZvX2SYxPglak9T0YRBHP7EPEqD5/s400/DSC06008.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Entre espinhos e flores: história de uma (des)industrialização.</td></tr>
</tbody></table>
<br />
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjdvc54xhTDWWJmSFbX0ufhLMzp2sTdtcpFMqJAOkI6QRsL_rzuT0gysX9jsprTSj_qfUZmNWL7RnCooyjX57xeUjIe52idNJeqkXZxHNlJ1sQxgvO6UKDdzAYRwXOal9DiUlr5FMwioJSi/s1600/DSC06010.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjdvc54xhTDWWJmSFbX0ufhLMzp2sTdtcpFMqJAOkI6QRsL_rzuT0gysX9jsprTSj_qfUZmNWL7RnCooyjX57xeUjIe52idNJeqkXZxHNlJ1sQxgvO6UKDdzAYRwXOal9DiUlr5FMwioJSi/s400/DSC06010.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">A presença desordenada da indústria.</td></tr>
</tbody></table>
<br />
<div style="text-align: center;">
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7c1g2Np7R2c7QSCgFI4iQcQnKRBefP0fRpSyT5Zqlf0BvIDLZDsIggHv30zfvMCyEQuHYAimqelAkUq0aumGzlFr5YaVMPsWFYZ6Hk0vgnyF0PbNAjuRSOlyehYX6cNJ2tM6vi14DRQMJ/s1600/DSC06104.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg7c1g2Np7R2c7QSCgFI4iQcQnKRBefP0fRpSyT5Zqlf0BvIDLZDsIggHv30zfvMCyEQuHYAimqelAkUq0aumGzlFr5YaVMPsWFYZ6Hk0vgnyF0PbNAjuRSOlyehYX6cNJ2tM6vi14DRQMJ/s400/DSC06104.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="font-size: 13px;">A fábrica e as flores: quem engole quem?</td></tr>
</tbody></table>
</div>
<div style="text-align: center;">
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhn6UAD3Ly0IqKY2BXTQK-xejCH381FIoyRDT16bZvICX5dR_0S3gJw37yYjkW5Gxcr9gbTpo0qe9rjQAyGy0BjCQOspbVZESuUl1oe3-fyFRl_IqXq1UNzvcRAkkbuFdy6pRofO8lWMKgN/s1600/DSC06106.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhn6UAD3Ly0IqKY2BXTQK-xejCH381FIoyRDT16bZvICX5dR_0S3gJw37yYjkW5Gxcr9gbTpo0qe9rjQAyGy0BjCQOspbVZESuUl1oe3-fyFRl_IqXq1UNzvcRAkkbuFdy6pRofO8lWMKgN/s400/DSC06106.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="font-size: 13px;">Crise e abandono.</td></tr>
</tbody></table>
</div>
<br />
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiDrEhxhS0YSazDgQPVKJaJt0On4B2abHIvZLQfu88bGz5EbrhbDoDVPuYxikNkCaCxYcjdlPBNDnh9TLgJCremvCKzXnbLGRX5OLH79EAUuOV2uYGnpoAmXGqbbBXGdnS5TBKJA3TIJcMZ/s1600/DSC06025.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiDrEhxhS0YSazDgQPVKJaJt0On4B2abHIvZLQfu88bGz5EbrhbDoDVPuYxikNkCaCxYcjdlPBNDnh9TLgJCremvCKzXnbLGRX5OLH79EAUuOV2uYGnpoAmXGqbbBXGdnS5TBKJA3TIJcMZ/s400/DSC06025.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Rio, ribeira ou plantas: o vigor quase excessivo da vegetação.</td></tr>
</tbody></table>
<br />
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjqAECydNjA8X6Vk258e7ah4t7_fbHy5i0hLaMISl_mzcl54CLP3GfdOB5b-AScqGLW6zDXSIlrXq8DrY4QfkmeiPVWtEtxpL4L7QbQHech-ne_dl7fiPrgzO97Fqsy0asu7QiwqEMYSHHS/s1600/DSC06029.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjqAECydNjA8X6Vk258e7ah4t7_fbHy5i0hLaMISl_mzcl54CLP3GfdOB5b-AScqGLW6zDXSIlrXq8DrY4QfkmeiPVWtEtxpL4L7QbQHech-ne_dl7fiPrgzO97Fqsy0asu7QiwqEMYSHHS/s400/DSC06029.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Cores bizarras num pequeno açude.</td></tr>
</tbody></table>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<br />
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgwPQpsrzGtdtXiqyEk8OSrtz8Leit_FdejmGhcyVFCeVC7zqhfw1NsqEvju3DzxAvdQR9i_PXgNmwBP9nL4lv3fR3JV89917BnXgdMTBBaURCRPyvSoTUwQBdIqAwfTRlI-moRC3yEKT-3/s1600/DSC06044.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgwPQpsrzGtdtXiqyEk8OSrtz8Leit_FdejmGhcyVFCeVC7zqhfw1NsqEvju3DzxAvdQR9i_PXgNmwBP9nL4lv3fR3JV89917BnXgdMTBBaURCRPyvSoTUwQBdIqAwfTRlI-moRC3yEKT-3/s400/DSC06044.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Entre vinhas e moinhos de água, uma velha aliança esquecida.</td></tr>
</tbody></table>
<br />
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhIm9sojUtnos5mfD4XEJ_t-k_Ho7sjEDZkphW5nGFUknpOo-IJVgtKohqRSu-QN3mJXtp8kK-Vb_8KzqonqZkOezEU3Au2HMsL-BL9YCFtKoeO5Tgja7_QrNKeSWwLOzxo7USTLEWzGkpb/s1600/DSC06055.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhIm9sojUtnos5mfD4XEJ_t-k_Ho7sjEDZkphW5nGFUknpOo-IJVgtKohqRSu-QN3mJXtp8kK-Vb_8KzqonqZkOezEU3Au2HMsL-BL9YCFtKoeO5Tgja7_QrNKeSWwLOzxo7USTLEWzGkpb/s400/DSC06055.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">A imersão no verde.</td></tr>
</tbody></table>
<br />
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhIsdB89BdAvJKXAKZjEeicJR4vGpaj07DL2Fl3LBi3QOHqHTsilOXVE9ASwi9OTxVqN09A5RJv2aN5GnanBBjQzbOAdrQdvCjZnvA7k-EnO10hyphenhypheniLbPBM5pkKqWn08OMyftMOktIICe5aE/s1600/DSC06065.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhIsdB89BdAvJKXAKZjEeicJR4vGpaj07DL2Fl3LBi3QOHqHTsilOXVE9ASwi9OTxVqN09A5RJv2aN5GnanBBjQzbOAdrQdvCjZnvA7k-EnO10hyphenhypheniLbPBM5pkKqWn08OMyftMOktIICe5aE/s400/DSC06065.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Indiferente às descargas poluentes, uma cobra de água vai fazendo pela vida.</td></tr>
</tbody></table>
<br />
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEisUsi1rwp8pOEcPHeSxChJeuqYwPpEH3F0qLiclh0FZ96ySb77l9mUlxER8mdTATikiG1QriBm9K-RumBI37ZJPdQKM5D8WMlDVuHQSp6mMMilK_iacK5SzUf8QZ52omaaXjLeyJvtNPFb/s1600/DSC06066.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEisUsi1rwp8pOEcPHeSxChJeuqYwPpEH3F0qLiclh0FZ96ySb77l9mUlxER8mdTATikiG1QriBm9K-RumBI37ZJPdQKM5D8WMlDVuHQSp6mMMilK_iacK5SzUf8QZ52omaaXjLeyJvtNPFb/s400/DSC06066.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">A precariedade dos percursos: o apelo de uma tasca reunindo os homens.<span style="background-color: white;"> </span></td></tr>
</tbody></table>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<br />
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgoJCZ_5XDC8WGUoYCtW7ITwfNl-_HYZXHGTD00ghjOc8D_VOdxpvZ18IPrswt7hsw-g_FqORW1AiE5gatuTJ8patYrXtNHYRRIfDSUK6R0A_5FKD0DIzZWIFeV3K324QIXO3VCrmNpBau_/s1600/DSC06070.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgoJCZ_5XDC8WGUoYCtW7ITwfNl-_HYZXHGTD00ghjOc8D_VOdxpvZ18IPrswt7hsw-g_FqORW1AiE5gatuTJ8patYrXtNHYRRIfDSUK6R0A_5FKD0DIzZWIFeV3K324QIXO3VCrmNpBau_/s400/DSC06070.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Pesca: um homem exibe o seu troféu.</td></tr>
</tbody></table>
<br />
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjQJvTCdkjB8tNsPPvpA94whOZYjNB7TzmUnrWMp-e_QxPSeKe2VcodAmiW46FXHVm3C0WZAmT3zCnSKD9MPdNOamNHYKFdbUXbn84mTmrXBWa5wExvIre_H7uqpWGtCT_SoNkbgh8iA8vo/s1600/DSC06087.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjQJvTCdkjB8tNsPPvpA94whOZYjNB7TzmUnrWMp-e_QxPSeKe2VcodAmiW46FXHVm3C0WZAmT3zCnSKD9MPdNOamNHYKFdbUXbn84mTmrXBWa5wExvIre_H7uqpWGtCT_SoNkbgh8iA8vo/s400/DSC06087.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Idílio: a Ilha dos Amores, local de evasão erótica dos termalistas.</td></tr>
</tbody></table>
<br />
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjjcoEQj57D1Cft4Pp7_DFQQKiGoX7IwC3Rhul5zbdunT0l18was08LfRoRwmZmYBzNn7B21NOEaq7RGnX0adbFi_98gq-eXM8M6kccXZLgu9J4iUOZtleg5Q6MWj-jqB7jJsEePDuJM643/s1600/DSC06097.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjjcoEQj57D1Cft4Pp7_DFQQKiGoX7IwC3Rhul5zbdunT0l18was08LfRoRwmZmYBzNn7B21NOEaq7RGnX0adbFi_98gq-eXM8M6kccXZLgu9J4iUOZtleg5Q6MWj-jqB7jJsEePDuJM643/s400/DSC06097.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Murmúreos do Vizela: inspiraração para poetas, pintores e músicos.</td></tr>
</tbody></table>
<br />
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpx5ATTh3bdxMocJ3xye1eydzYnLoclxzDJuNIdKqF6_pccsZKpLjv5aOeDU35f84GxNIWu1QZWt6KMuyR3NTGv51OlTaq5vhs8lBuuwg-6gJ9lY7vSPdllCS6m9hCpuU_ZMQKgkiWbF4J/s1600/DSC06118.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpx5ATTh3bdxMocJ3xye1eydzYnLoclxzDJuNIdKqF6_pccsZKpLjv5aOeDU35f84GxNIWu1QZWt6KMuyR3NTGv51OlTaq5vhs8lBuuwg-6gJ9lY7vSPdllCS6m9hCpuU_ZMQKgkiWbF4J/s400/DSC06118.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Tarde de Domingo.</td></tr>
</tbody></table>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: center; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, serif; font-size: 11.5pt; line-height: 115%;"> <o:p></o:p></span></div>
<br />
<br />Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0R. de Valdinhão 133-227, 4815 Vizela, Portugal41.368564136809667 -8.297767639160156241.356648636809666 -8.317508639160156 41.380479636809667 -8.2780266391601565tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-27917323613346284992012-06-29T14:10:00.002+01:002012-06-30T11:33:02.919+01:00Tony Judt, Ill Fares the Land (Um Tratado Sobre os Nossos Atuais Descontentamentos), 2010<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhoL1978WqV_QhAGrH5NPMGPxdSqwgucoHep4i1f0VNkRDIBXr_hN-XCpIPsJISQDcqg4Kece7fbAhkylUz50GuBkpjw4yc8ZL1R18gxuyzt58I3FJPgoU0hLHmrsSdO8SYIudq8vLGvwDc/s1600/tony+judt.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="315" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhoL1978WqV_QhAGrH5NPMGPxdSqwgucoHep4i1f0VNkRDIBXr_hN-XCpIPsJISQDcqg4Kece7fbAhkylUz50GuBkpjw4yc8ZL1R18gxuyzt58I3FJPgoU0hLHmrsSdO8SYIudq8vLGvwDc/s400/tony+judt.jpg" width="400" /></a></div>
<div style="text-align: center;">
<span class="Apple-tab-span" style="white-space: pre;"> </span></div>
<div style="text-align: justify;">
Se houve um elemento verdadeiramente fulcral na construção da(s) sociedade(s) europeia(s) ao longo do período que se estende do pós-guerra até ao final da década de oitenta esse elemento é o medo. O medo foi o verdadeiro catalisador de todos os projetos unificadores na Europa, projetos esses que se dividem em duas frentes de intervenção principais: por um lado, toda a linha que começa com a cooperação comercial entre estados e que se estende até ao esboço de uma unidade política europeia; por outro, a construção, diversamente empreendida pelos diferentes países, de um modelo social que entendemos como especificamente Europeu. Em ambas as frentes, a energia política que possibilitou a construção de edifícios institucionais tão substanciais e historicamente tão improváveis veio do medo: medo dos tanques soviéticos que estavam logo ali, estacionados em Berlim; medo das próprias animosidades internas europeias, notavelmente a rivalidade franco-alemã, que já haviam conduzido a duas guerras colossais; medo da degradação económica e das desigualdades sociais que nutrem as sublevações dos povos, particularmente quando por todo o mundo vibrava o rastilho da bandeira vermelha. Em suma, medo. </div>
<div style="text-align: justify;">
Os europeus tinham, nesses anos, e apesar de hoje olharmos esses tempos como uma espécie de era dourada (os <i>trente glorieuses</i>, na famosa formulação francesa, mas também o <i>Wirtschaftswunder </i>alemão e o <i>miracolo economico</i> italiano) uma consciência aguda da sua precariedade e da sua crescente insignificância num mundo que, de quintal europeu, passara a albergar diversas alternativas à narrativa progressista ocidental. Os líderes europeus de então tinham a plena noção de que navegavam entre Cila e Caríbdis, e agiam com uma clara consciência moral das suas responsabilidades que eram, essencialmente, criar razões para viver no medo, sem o perder de vista, mas estimulando a agregação e coesão das sociedades, assim mantendo viva uma narrativa de destino comum que pudesse criar uma alternativa à agressividade dos nacionalismos europeus tradicionais. De uma forma algo prosaica, consistentemente pouco inspiradora e pouco afoita a aventuras imprevisíveis a Europa manteve-se. Prudentemente, ela sobreviveu à queda dos impérios, à destruição da guerra, ao espectro das revoluções. Sobreviveu essencialmente porque soube olhar nos olhos o medo, e fê-lo com a energia que lhe advinha das suas duas principais grandes narrativas históricas: a construção comunitária continental e o modelo social europeu. </div>
<div style="text-align: justify;">
É fácil acharmos, hoje, que o facto de vivermos na região do mundo humanamente mais desenvolvida é um dado adquirido, uma coisa perfeitamente normal, uma inelutabilidade histórica: nas ruínas de Berlim em 1945, nos campos de concentração polacos, nas ditaduras ibéricas, nos Anos de Chumbo de Itália, nas revoltas estudantis francesas, na depressiva austeridade pós-imperial britânica, em todas estas crises e em muitas mais nada havia, contudo, de particularmente prometedor. Este livro pode ser lido, assim, como uma crónica da perda do medo e do abandono quase generalizado da prudência. Tony Judt é, a esse respeito, um herdeiro fiel de um certo tipo de pensamento político inglês: uma linha que passa por Edmund Burke, por exemplo, e que basicamente defende que as instituições que já sobreviveram a muitas mudanças não devem, em caso algum, ser descartadas de ânimo leve. A construção europeia e o modelo social europeu (a proteção social, os serviços públicos, a taxação progressiva, etc.) serviram-nos admiravelmente ao longo de toda uma era de medo. Mas depois perdemos o medo: os tanques soviéticos foram-se embora, as narrativas revolucionárias <i>supostamente </i>falharam, a prosperidade eterna parecia assegurada pelo novo capitalismo financeiro triunfante e a guerra entre europeus parecia indefinidamente remetida para o <i>ersatz </i>agónico dos campeonatos de futebol. A ausência do medo permitiu-nos tudo durante duas décadas loucas: no meio da exaltação generalizada do indivíduo absoluto generalizou-se a opinião de que as formas de provisão coletivas mais não eram do que um empecilho, e de que a política se resumia à libertação infinita do novo Homem privado. Identidades, sexualidades e demais subjetividades individuais tomaram de assalto o espaço público: falar de poder, desigualdade, redistribuição, coesão e coletivo simplesmente deixou de ser <i>cool</i>. A pulverização pós-moderna das subjetividades, assim trazida para o meio da polis, redundou num niilismo político hegemónico e num esvaziamento semântico dos estandartes ideológicos: com o tempo, fomos perdendo a capacidade de pensar e falar politicamente. </div>
<div style="text-align: justify;">
É neste ambiente atual, em que os políticos estão reduzidos a papagaios e os cidadãos a consumidores que o medo regressa e nos apanha desprevenidos. Terrorismo, crise económica, desemprego, desagregação financeira, globalização, catástrofe ecológica iminente, ameaças muito piores do que os tanques soviéticos ou a revolução vermelha, incertezas que nos atingem naquilo que mais profundamente nos define: o nosso quotidiano, a nossa mesa, as nossas poupanças, a nossa subitamente redescoberta fragilidade enquanto indivíduos insignificantes que verdadeiramente nunca deixámos de ser. As armas para enfrentar este medo têm de estar, como sempre estiveram, na reinvenção de uma linguagem coletiva: uma verdadeira linguagem que possa ser a semente da ação. </div>
<br />
<div>
<br /></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-24628779383133201912012-06-26T13:24:00.000+01:002012-06-26T14:57:27.466+01:00Funny Games (Brincadeiras Perigosas), Michael Haneke (1997)<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://www.orsonwelles.co.uk/funnygames.gif" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="250" src="http://www.orsonwelles.co.uk/funnygames.gif" width="400" /></a></div>
<div style="text-align: center;">
</div>
<div style="text-align: justify;">
Lembrei-me vagamente da peça <i>The Birthday Party,</i> de Harold Pinter a propósito deste filme. De facto, há algo que o coloca no âmbito do teatro do absurdo, com personagens-tipo algo lisas, situações bizarras e inexplicadas e uma linha narrativa despojada de praticamente qualquer vestígio de contextualização. Tal como a peça, o filme gira em torno da relação entre dois torcionários e as suas vítimas: torturadores verbalmente articulados e caracteristicamente opostos, um mais elegante e sardónico e outro mais emocional e boçal, e vítimas casuais, sem relação aparente com os agressores, que procuram diversa e inutilmente resistir-lhes. Em ambos os casos a violência é gradual, afirmando-se na ação paulatinamente e ao longo de passos lógicos, de ação-reação: violência arbitrária, ainda assim, mas ridiculamente mascarada por uma suposta necessidade superior, como se ela fosse mais penosa para os torturadores do que para as vítimas, como se, por qualquer razão que desconhecemos, tivesse de ser. </div>
<div style="text-align: justify;">
Já conhecia alguns filmes do realizador Michael Haneke. Já esperava algo do género, portanto. A certa altura, ainda nas sequências iniciais do filme, a impressão vaga de uma incerteza: estas pessoas são realmente sinistras ou são simplesmente <i>austríacas</i>? Música clássica, lagos alpinos, casas demasiado bonitas, natureza suspeitamente idílica, vizinhos estranhamente simpáticos… Há um texto de Freud (outro austríaco) que ando para ler, <i>Civilization and Its Discontents</i>, que nos fala dos diversos descontentamentos da civilização: genericamente, a fragilidade do verniz de civilidade e a forma como a própria civilização pode, por outro lado, refinar a animalidade cruel que se esconde por baixo desse mesmo verniz (a esse respeito há a substituição inesperada da música clássica por death metal logo nas cenas iniciais, bem como a própria quebra dos ovos). De certo modo, é disso que o filme trata: de uma violência civilizada, de uma crueldade fruída, de simples brincadeira, em suma, de jogo. De particularmente interessante, há o convite ao expectador (nós, do outro lado da tela) a participar no jogo de tortura: o torcionário bem-parecido pisca-nos olhos, fala connosco, aposta connosco sobre a vida das vítimas, ri-se para nós. O que abre outras linhas interpretativas, que me surgiram continuamente ao longo da experiência desagradável que foi ver o filme, nomeadamente aquelas que se relacionam com a nossa própria conivência com a violência. O filme pode ser visto, deste modo, como uma metáfora mais geral para a sociedade e, nessa linha, os torcionários podem ser muita coisa, desde o estado, com o seu monopólio da violência, passando pela religião, que faz a vítima pedir perdão pela sua própria execução, até à representação artística em geral e ao cinema em particular. Com respeito a este último há a curiosa cena do <i>rewind</i>, momento em que definitivamente percebemos que não há nada a fazer pelas vítimas; ou mesmo a faca que fica no barco, último lampejo de esperança, e que depois não serve para nada: mais uma achega para a desorientação, a confirmação final de que não há nada a esperar de um enredo, aliás, de qualquer teleologia. Nada serve para nada, e esta convicção está intimamente ligada ao (e é característica do) espaço híper-civilizado centro-europeu: afinal, só mesmo quem tem tudo é que pode chegar a tal conclusão; só mesmo quem chegou aos pináculos do bem-estar pode sentir a necessidade de recriar metodicamente o caos, como os alemães fizeram nos campos de concentração. Digo alemães, e não nazis, porque os nazis eram efetivamente alemães; e os austríacos também são alemães, e foram, vale a pena recordar, mais entusiasticamente nazis do que os próprios nazis. </div>
<div style="text-align: justify;">
No meio de tudo isto a questão que sobra é, portanto, para que raio havemos nós de querer ver estes filmes? Que tipo de consciência atira, assim, com uma coisa destas para cima do espectador de cinema? E com que objetivo? Bem, com Haneke não é fácil responder a estas perguntas. E, contudo, não consigo não gostar do que ele faz. A forma como nos deixa maldispostos, desorientados, imbecilmente à espera de respostas, perdidos na tela como crianças e mesmo completamente zangados traduz, no fim de contas, uma suprema ironia artística. E, no fundo, não há como culpá-lo, pois ele simplesmente nos mostra o outro lado da razão: os monstros que o seu sono produz (Goya). Como dizem os ingleses,<i> you don’t shoot the messenger</i>. </div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div style="text-align: justify;">
Outra pergunta que legitimamente se pode fazer é: porque raio se deu Haneke ao trabalho de fazer um <i>remake </i>com atores de Hollywood? Que tal obrigar os americanos a ler legendas?</div>
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div>
<br /></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-1263011997092885862012-06-25T19:29:00.000+01:002012-06-28T11:06:57.978+01:00In the Land of Women (No Mundo das Mulheres), Jon Kasdan (2007)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjVlohAuz2ggUgWIV5zl-t7Inq8f9yrJvdW81SMLUCbVkJXDx34i0_zzjmvW00mEZGw9wf6kbaoVc6Oo7bLKhLpDxzeIDM4_f-Jibph5NAoUAKhl99iYpxJ7P3a3pG7bNLGxJf1QWJXqkPE/s1600/2006_in_the_land_of_women_001.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjVlohAuz2ggUgWIV5zl-t7Inq8f9yrJvdW81SMLUCbVkJXDx34i0_zzjmvW00mEZGw9wf6kbaoVc6Oo7bLKhLpDxzeIDM4_f-Jibph5NAoUAKhl99iYpxJ7P3a3pG7bNLGxJf1QWJXqkPE/s400/2006_in_the_land_of_women_001.jpg" width="266" /></a></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
Andava há muito a
resistir ao filme. Tinha vindo com uma revista, uma oferta que, no caso, não
desejava. De facto, havia mesmo comprado a revista pela revista, e não pelo
filme que a ela vinha acoplado: uma película que desconhecia e a que
rapidamente colei o rótulo de comédia romântica insonsa. O filme andou perdido
durante largos meses por entre as séries Y do Público (em que se deu o caso
inverso, ou seja, comprei o jornal por causa dos filmes) que, de resto, se têm
tornado elas mesmas crescentemente insonsas. Aqui há dias lá acabei por ver o
filme, após esgotar tudo o que havia das séries Y, terminando com um <a href="http://a-espera-de-godot.blogspot.pt/2012/06/funny-games-brincadeiras-perigosas.html">filme do Haneke</a> a que, compreensivelmente, também andava a resistir. E, claro, era
efetivamente uma comédia romântica, ainda que não tão insonsa assim. Ou melhor,
insonsa na medida estrita da necessidade da sua função comunicativa. Ora vejamos…<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
A comédia romântica
mediana americana é um produto cultural que, apesar da sua estandardizada
previsibilidade narrativa (ou, porventura, precisamente por causa dela), tem uma
força ideológica impressionante. Há invariavelmente uma série de elementos
dados à partida entre os quais, inspirado por este filme, destaco dois. Há, por
um lado, o jovem que quer redescobrir as suas origens, neste caso (e como é
muito habitual nestes filmes) com a intenção meta-narrativa de escrever um
romance. As origens são, claro, familiares, porquanto estas são as únicas que a
psique americana é, na prática, capaz de conceber. Há, depois, e por outro
lado, a difusa ética romântica que anula o espaço da sexualidade, bem como a
configuração, de inspiração marcadamente protestante, dessa ética na forma de um
caminho messiânico: a lógica da pessoa certa que para nós que virá ou que já
está à espera algures e que se procura. Ou seja, as relações românticas funcionam,
nestes filmes, como um <i>ersatz</i> para a
busca ou a contemplação espirituais e religiosas. Estas duas lógicas
combinam-se numa mistura curiosa de construção identitária e coerção
inconsciente do indivíduo por si mesmo: procurando-se, estas personagens
encontram apenas o que a configuração moral da sociedade já tem preparado para
elas. Assim, a mulher suburbana de meia-idade acaba por se culpar a si mesma
pelo <i>affair</i> do seu marido, sentindo
que a vida de mãe a tempo inteiro a deserotiza para lá de qualquer
possibilidade de hétero e auto-valorização. Ao mesmo tempo, e de uma forma que
coincide com a própria ação, ela reafirma-se como a guardiã das regras morais
familiares, privando-se de uma aventura sexual equivalente. A sua filha
adolescente, por seu lado, e apesar das críticas à mãe, mostra ter entendido
bem a mensagem ao correr para os braços de um <i>self-made man</i> em potência que, na devida altura, a tratará também de suburbanizar arranjando o seu próprio <i>affair</i>. Quanto ao catalisador de tudo aquilo, damos com ele no final
do filme, aflito porque ainda não se casou (a tanto se resumia a sua busca identitária), mas a tratar do assunto com uma
empregada de mesa daquelas que andam sempre a despejar café solúvel nas canecas
dos clientes. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
A função essencial de
uma ética religiosa mantém-se, assim, através destes objetos culturais
aparentemente insignificantes e manifestamente profanos. Os americanos são, de
resto, muito bons nisto: no limite, e como bons protestantes que são, tudo para
eles é, no fundo, religioso. Nada, em última instância, é inteiramente insonso,
nenhum objeto cultural é realmente inocente: tudo quer dizer alguma coisa, e é muitas
vezes nos filmes aparentemente mais pueris que encontramos as mensagens mais eficientes. <o:p></o:p></div>
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">
<br /></div>
<br />Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-70525454018071732072012-05-10T23:17:00.000+01:002012-05-10T23:17:40.493+01:00A Mamoa<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://static.panoramio.com/photos/1920x1280/18346348.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="267" src="http://static.panoramio.com/photos/1920x1280/18346348.jpg" width="400" /></a></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: center;">
</div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst">
Da primeira vez que a vi, única que estive ao pé
dela, um vento malévolo rasgava as rochas. À beira da estrada nacional uma
placa castanha indicava-a: de tantas vezes ignorar o seu apelo decidi
aceitá-lo. A subida da encosta por um trilho de pedras ladeava uma sucata. O
limiar da aldeia, triste como o abandono, era um convite ao insondável. O vento
doía-me na pele à medida que subia, o frio gelando o suor dos passos. Plantas
rasteiras para lá do estreito trilho de pedras, duras como as próprias pedras;
pesando sobre mim, a ameaça de um céu pesado, obscuro como a cúpula vazia de
uma catedral. E então vi-a. Discreta elevação tumular, calhaus soltos, ventre
telúrico, estranho mistério. Rodeando-a, apenas o tempo, eterno como as
montanhas. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Passo
muitas vezes na autoestrada que a contorna. Procuro, com o olhar, discernir um
ponto longínquo, um lugar para lá da velocidade circunstancial da minha
existência. Procuro-lhe o perfil, um seio destacado do contorno ígneo do
crepúsculo, envolto no afago agreste do vento. Ela lá está, por detrás da
estação de serviço, sinalizando a porta que se abre para o outro lado do tempo.<o:p></o:p></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0Auto-Estrada Guimarães-Vila Pouca de Aguiar, 5450 Vila Pouca de Aguiar, Portugal41.500285308219226 -7.721071243286132841.497312308219229 -7.726006743286133 41.503258308219223 -7.7161357432861326tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-72409853072913285532012-03-26T23:09:00.000+01:002012-03-26T23:09:41.039+01:00The Cave of Forgotten Dreams (A Caverna dos Sonhos Perdidos), Werner Herzog (2010)<br />
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4UkPbQwgTSs_STyt6RsiBVW2tGxthZ9KurGDLD3rcBmUxJfVCa8BNxU8Lgspa5wecigrVlLjkbyILsFXtxmtpA4nBRnTwEq8WF8tl_poep0gX8u5FM4Di4BTriWt-rL-0NeHeno0Z094P/s1600/rte_img_large_182.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4UkPbQwgTSs_STyt6RsiBVW2tGxthZ9KurGDLD3rcBmUxJfVCa8BNxU8Lgspa5wecigrVlLjkbyILsFXtxmtpA4nBRnTwEq8WF8tl_poep0gX8u5FM4Di4BTriWt-rL-0NeHeno0Z094P/s400/rte_img_large_182.jpg" width="400" /></a></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
É
muito difícil captar num simples artigo toda a riqueza simbólica presente neste
filme documental. De facto, quase todas as sequências motivariam, assim se
quisesse, um ensaio. Tudo parte, no entanto, de uma obra artística: uma gruta
no sul de França cujas paredes se encontram cobertas de pinturas do
paleolítico, as mais antigas de que há conhecimento. O filme, com efeito,
reinterpreta essa obra numa lógica intertextual, fazendo a ponte entre os
primórdios da figuração e a arte cinematográfica. Parece descabido? Não é, de
todo. A arte é fundamentalmente una, e se podemos descortinar traços de um
proto-cinema na Caverna dos Sonhos Esquecidos (a Gruta de Chauvet, no sul
calcário de França), também podemos gracejar a propósito da prevalência dos
padrões de beleza femininos das vénus paleolíticas nas séries americanas atuais
ou tocar o Star-Sprangled Banner numa flauta de osso pré-histórica. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
A cor e o traço das
gravuras surpreendem de imediato. Estamos habituados a pensar neste tipo de
arte como uns “risquitos” (efeito Vale do Coa, certamente), mas aquilo
aproxima-se bem mais de uma Capela Sistina pré-histórica, uma espécie de catedral
das cavernas. O facto de a obra documentada ser de uma beleza efectivamente
desarmante não deve eclipsar o feito do realizador do filme. Num contexto de
extremas limitações técnicas, Herzog faz um filme incrivelmente belo, um
verdadeiro retoque artístico feito nas pinturas de há dezenas de milhar de anos
atrás. Não se podendo visitar a gruta, o filme fica, para o público em geral,
não como o retrato possível, mas sim como uma aula verdadeiramente magistral
sobre o sítio: Herzog revela-se, com efeito, um intérprete à altura do local
patrimonial, guiando-nos, à medida que ele mesmo se faz guiar, pelo estonteante
labirinto da gruta. O 3D, esse, revelou finalmente para que serve. A
tridimensionalidade das pinturas, que jogam com as irregularidades das paredes
da gruta, o brilho onírico das estalagmites e a voluptuosidade dos rendilhados
calcários que tecem o ambiente mágico da gruta, o subtil jogo de <i>chiaroscuro</i> reflectindo-se nas paredes e
nos rostos dos homens que perturbam o silêncio do local, tudo isso ganha uma
densidade notável, pontuando assertivamente o argumento artístico de Herzog: a
sala de cinema enquanto extensão da própria gruta, o filme como leitura
criativa da realidade. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
Mas
vamos por partes (pois, como disse, há tanto a dizer sobre o filme que o melhor
mesmo é ir vê-lo). A entrada inicial na gruta sugere um tema clássico, o da
descida (o Hades, os poços, <i>Viagem ao
Centro da Terra</i>, o subconsciente, etc). A escuridão da gruta oculta os
sonhos, sonhos esses que, desde que Freud ensaiou a sua interpretação, sabemos
serem o único caminho para os recantos mais profundos da psique. A gruta é, ela
mesma, um percurso iniciático que é preciso percorrer ao contrário, retrospectivamente,
porque a entrada principal ruiu (tanto real como metaforicamente). Os
cientistas estudam o local, estudam o labirinto dos passos individuais na
gruta, descodificam pegadas, ossos e mãos, mas o mistério inelutável de nós
mesmos e da nossa perene humanidade só se dá a conhecer a quem sabe ouvi-lo. Há
uma sequência admirável, em que alguém convida os presentes a escutarem o
silêncio da gruta e a câmara oscila, poeticamente, entre as cores quentes e o
traço puro das pinturas e os rostos quietos dos espeleólogos: homens e mulheres,
com pálidas luzes nos capacetes, a humanidade frente ao espelho mágico da arte.
As pinturas representam animais*, em todas as mitologias os símbolos operativos
das características fundamentais do ser humano: leões, ursos, hienas,
rinocerontes e também outros entretanto perdidos na bruma do tempo, como o
grande veado irlandês, o mamute ou o auroque. Deuses selvagens, sim, que mais
tarde seriam humanizados e mesmo historicisados, mas ali, artisticamente
convocados em concílio, constituem um panteão do concreto, um mito tangível,
uma religião cujos sacramentos eram consubstanciais com a vida. </div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://www.ripon.edu/academics/faculty/kaine/art171/images/Chauvet/Chauvet.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="302" src="http://www.ripon.edu/academics/faculty/kaine/art171/images/Chauvet/Chauvet.jpg" width="400" /></a></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
E depois, há os
cavalos, alinhados como santos numa catedral gótica, mas infinitamente mais
ancestrais, mais profundos, mais significativos e incomensuravelmente mais
místicos, suspensos no tempo e no espaço, criados num perdido gesto
encantatório: a criação do espírito, da eterna e indizível interrogação que anima
o Homo Sapiens (que nome tão mal dado a uma criatura que sabe tão pouco, como
dizia um arqueólogo…). Os cavalos daquela gruta são uma linguagem sem palavras,
o arquétipo da construção simbólica. Algo difícil de referir, que deixo, como
tal, a quem sabe: Ted Hughes, <i>The Horses</i>,
poema aqui traduzido por mim, com um forte convite, a quem souber inglês, à
leitura do original.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Subi através dos bosques no escuro da
hora-antes-da-alva.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Ar malévolo, um silêncio de fazer geada,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Nenhuma folha, nenhum pássaro – <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Um mundo moldado em geada. Saí, sobre o bosque<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Onde o meu fôlego deixou tortuosas estátuas na luz
de ferro.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Mas os vales escoavam a escuridão<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Até à linha dos montes – borras enegrecidas do
cinzento clareado – <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Rasgando, adiante, o céu em dois. E vi os cavalos:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Enormes no cinzento denso – dez ao todo –<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Imóveis megálitos. Respiravam, não se movendo,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Com crinas pendentes e cascos traseiros
inclinados,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Não fazendo um ruído.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Passei: nem um resfolegou, ou cabeceou.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Fragmentos cinzentos e silenciosos<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
De um mundo cinzento e silencioso.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Ouvi, vazio, no cume dos montes.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
A lágrima da garça virou a sua face ao silêncio. <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Lentamente, o detalhe folheado na escuridão.
Depois o sol<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Laranja, vermelho, vermelho entrando em erupção <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Silenciosamente, e rasgando até ao cerne e
espalhando as nuvens,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Fendeu o estreito, mostrou o azul,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
E os grandes planetas pendentes – <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Virei-me<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Tropeçando na febre de um sonho, descendo, <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Para os bosques, dos cumes tremeluzentes,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Até aos cavalos.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Ali estavam eles ainda,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Mas agora vaporando e reluzindo sob a corrente da
luz,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
As suas crinas de pedra pendentes, os seus cascos
traseiros inclinados<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Mexendo, derretendo, enquanto à sua volta<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
A geada mostrava as suas chamas. Mas eles ainda
não faziam um som<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Nem um resfolegava ou patejava <o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
As suas cabeças curvadas pacientes como os
horizontes<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Sobrepondo-se aos vales, nos raios vermelhos que
alisam o chão –<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
No bulício das ruas atulhadas, indo pelos anos,
pelos rostos,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Possa eu ainda encontrar a minha memória em tão
solitário lugar<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Entre os regatos e as nuvens vermelhas, ouvindo as
garças,<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
Ouvindo os horizontes durar.<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.youtube.com/embed/kULwsoCEd3g?feature=player_embedded' frameborder='0'></iframe></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
* A quase exclusividade dos animais nas pinturas (de facto,
também havia símbolos abstractos, mãos em negativo, e mesmo uma representação
parcial de uma mulher) parece ter surpreendido a audiência. Escutei, a dada
altura, uma pergunta que também encontrei no IMDB: <i>porque é que eles só desenhavam animais?</i> Esta interrogação ilustra
bem a insensibilidade espiritual e natural (há verdadeira espiritualidade sem
natureza?) da contemporaneidade… Afinal, tão civilizados que somos, acabámos
por nos habituar a venerar carros, prédios, lojas, contas bancárias e
celebridades, ao mesmo tempo que metíamos os poucos animais que ainda
tolerávamos no jardim zoológico. Em termos de <i>deuses</i> ficamos, parece-me, muito pior na fotografia do que os
nossos antepassados… <o:p></o:p></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-59410113741439954842012-02-10T19:12:00.002+00:002012-02-10T19:13:21.712+00:00Passeio Crepuscular em Montmartre<div style="text-align: center;">
<br /></div>
<div style="text-align: center;">
<iframe allowfullscreen="" frameborder="0" height="344" src="http://www.youtube.com/embed/nZvehG_Lgls?fs=1" width="459"></iframe><br />
<span style="text-align: justify;"><br /></span><br />
<div style="text-align: left;">
<span style="text-align: justify;"> </span></div>
<div style="text-align: left;">
<span style="text-align: justify;"> <span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Paris, Montmartre ao fim
da tarde, a noite cai gélida, colando às janelas vagos desejos que os turistas procuram
em vão guardar nas suas máquinas fotográficas digitais. A colina, encimada pela
massa irreal da Sacré-Coeur, oferece-nos a vista da cidade que se espraia em
luzes, lisa como a superfície de um lago quieto: torres de igrejas, flechas de
catedrais, a torre Eiffel rasgando sonhos no céu de pastel.</span></span><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> </span></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Revisito
mentalmente Montmartre pela voz de Aznavour. A canção fala-nos da arte, da
criação e da sua inebriante alegria, dos idealismos da juventude e seus vãos
sonhos de glória, e duma coisa mais vaga e indefinida que tudo permeia, vaga
como o ar e fugaz como o tempo: <i>l’ air du
temps</i>, o ar do tempo, algo a que os alemães (tão metafísicos que eles são)
chamam <i>Zeitgeist</i>, espírito do tempo.
O tempo é o verdadeiro tema da canção. Mas trata-se de um tempo especial, com
delimitadores bem marcados, um tempo transmutado em lugar, ou um lugar
conjugado no imperfeito: boémia, Montmartre. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Montmartre,
com efeito, é um passado suspenso, resquício inventado de outro tempo, sonho
ingénuo de turistas pós-modernos, pequeno delírio crepuscular da cultura,
cemitério kitsch da arte. Montmartre escreve-se no imperfeito, com a textura
rendilhada das suas ruas oferecendo-nos o prazer inconsequente dos versos
escritos pelos <i>poêtes maudits</i> e as
pedras da calçada as linhas limpas das telas modernistas. Paris, vista de
Montmartre é ela própria uma passante grácil e etérea, pequeno mundo
caleidoscópico, <i>flâneuse</i> de si mesma.
Os turistas, de máquina digital em punho, dão apenas a sequência possível à
história: passantes <i>par excellence</i> fazem,
de olhos no guia, um relaxado luto por uma civilização perdida, uma certa ideia
de Europa, se quisermos. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">A
canção lamenta o tempo que passa, recusa a Montmartre atual, acha-a triste e
desleixada porque deixou morrer os amores-perfeitos. A poesia, de facto, só
reconhece perfeição aos amores pretéritos, um pouco como os casais que amam um
no outro as recordações da paixão que os une. Há, afinal, outra forma de amar? Não,
todo o amor é uma forma de narcisismo, ainda que partilhado. Como o amor
narcisista de Montmartre por si mesma, artística e, ainda que preteritamente miserável,
perenemente bela, orgulhosamente alçada acima das agitadas ruas parisienses. </span></div>
</div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-67568800034645989332012-01-24T17:14:00.001+00:002013-01-16T23:19:11.998+00:00Memória e Fantasmas em Berlim<br />
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: center; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> </span></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhT4Iv75SW91a8sAZe5d5JFqpdnx5wtRQ8_KFswFQvPeQTRt1ir62sgPf6ac4cAgxoOkdxP-boO8qAPjdEUYhApigdX8qRvrq8H4YJEhgRCsmESXXPlch4JWaNebK8yfRrIftgoKEsYHoNm/s1600/Sem+T%25C3%25ADtulo.png" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="260" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhT4Iv75SW91a8sAZe5d5JFqpdnx5wtRQ8_KFswFQvPeQTRt1ir62sgPf6ac4cAgxoOkdxP-boO8qAPjdEUYhApigdX8qRvrq8H4YJEhgRCsmESXXPlch4JWaNebK8yfRrIftgoKEsYHoNm/s400/Sem+T%25C3%25ADtulo.png" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Kaiser Wilhelm Gedächtniskirche</td></tr>
</tbody></table>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: center; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Numa
“anatomia da memória, política e lugar” da nova Berlim K. E. Till escreve sobre
“fantasmas” e lugares de memória que são “criados (…) para dar formas a
ausências sentidas, medos e desejos que assombram a sociedade contemporânea e
através dos quais sonhos contemporâneos de futuros nacionais são imaginados”.
Este trecho, citado noutro livro, trouxe-me à memória impressões de uma viagem
à capital alemã que fiz há uns anos. De facto, Berlim é uma cidade que ilustra
bem a relação da sociedade europeia com os seus passados, entre a destruição e
a obsessão, entre a fuga e a atração. E, no entanto, o passado está sempre, em
Berlim, oculto por uma camada difusa de modernidade e pós-modernidade confusa e, por vezes, desconcertante. A memória, em Berlim, é sempre uma memória
relutante, por vezes mais empenhada em esquecer do que em evocar o passado.
Seria demasiado fácil ceder à tentação de explicar esta disposição à luz da
peculiaridade da experiência histórica alemã, mas a impressão que sobra de uma
visita à cidade é de que se trata de algo mais profundo. Talvez a inclinação para
a transitoriedade dos passados que se sobrepõem uns aos outros assim se destruindo mutuamente tenha uma origem quase geológica, evocando um nome depreciativo pelo qual a
Prússia era conhecida há uns séculos atrás: a caixa de areia da Europa. Para
lá, portanto, da composição dos terrenos em que assenta, a cidade dá
ocasionalmente a impressão de ser um deserto, ou uma praia, em que os presentes
escritos na areia desaparecem antes de se tornarem passado. Ou, como disse Karl Scheffler a esse propósito, “Berlin ist eine Stadt, verdammt dazu, ewig zu werden, niemals zu sein” (Berlim é uma cidade condenada sempre a <i>tornar-se</i>, nunca a <i>ser</i>). </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> A
impressão, no entanto, que um circuito das atrações individuais dá, parece ser
a contrária. A Gedächtniskirche (igreja da memória) é um memento da destruição
da guerra, com a sua mole arruinada lançando uma sombra sobre as animadas ruas
comerciais do Kurfurstendam. A demolição do Palast der Republik, antigo
parlamento da R.D.A., pode à primeira vista parecer um atentado à memória
histórica da cidade, mas a destruição desse passado é feita em nome da
recuperação de um passado ainda mais antigo, nomeadamente para proceder à
reconstrução do Stadtschloss, o palácio real dos Hohenzollern destruído durante
a 2.ª Guerra Mundial. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br /></span></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjkp9F4qNWGJMw4V6l8FojWXOwnzfkkJOBqxW-Oxj8ZoO5I8xvFCJwK9EJuR1uwf-B3SDftcEd453vzbVdkeKYSMrlH1SpzLk1RjjpO8h4Z_Xh52dRYTvGnO1NdTXgHCaSXtnP5jrg4tHtU/s1600/DSC00297.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjkp9F4qNWGJMw4V6l8FojWXOwnzfkkJOBqxW-Oxj8ZoO5I8xvFCJwK9EJuR1uwf-B3SDftcEd453vzbVdkeKYSMrlH1SpzLk1RjjpO8h4Z_Xh52dRYTvGnO1NdTXgHCaSXtnP5jrg4tHtU/s400/DSC00297.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Demolição do Palast der Republik, com a Dom (Catedral) ao fundo</td></tr>
</tbody></table>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Suponho que os planeadores do mix de memória de Berlim
terão achado que a Fernsehturm, construída pelos comunistas em Berlim oriental
(que ironicamente reflete uma cruz quando o sol incide nela) e o próprio muro
já representam suficientemente esse período da história. E depois há, claro, a
representação kitsch da memória, mercadorizada para turista comprar, como os
pedacinhos de muro, os soldados soviéticos ou os gorros de pele de urso russos.
</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: center; text-indent: 35.45pt;">
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="http://msnbcmedia.msn.com/i/MSNBC/Components/Slideshows/_production/ss-091108-berlinceleb/ss-091109-berlin-celebrates-05.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="266" src="http://msnbcmedia.msn.com/i/MSNBC/Components/Slideshows/_production/ss-091108-berlinceleb/ss-091109-berlin-celebrates-05.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Checkpoint Charlie</td></tr>
</tbody></table>
</div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> </span><br />
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> O
conjunto, no entanto, é algo que impressiona precisamente pela construção e pela
certeza que transmite de que nada, naquela cidade, pretende comunicar qualquer
ilusão de permanência ou mesmo autenticidade. Berlim é um jogo pós-moderno, um
laboratório de identidades fragmentadas, em que o passado e o presente se
misturam num sonho inarticulado de futuro. Por vezes, Berlim recusa-se a
esperar por esse futuro, como no Sony Center/Potsdammer Platz. Aí edifícios
futuristas criam uma ambiência cyberpunk, sem conseguirem fazer esquecer por
completo um dos locais mais emblemáticos da cidade novecentista, posteriormente
rasgado pela fronteira entre as duas Europas e agora ressuscitado como símbolo
de uma globalização hipertecnológica. </span><br />
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br /></span>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMNgxjfqv7tp8_RQ6moqLbxadEVPJym8Wn4yJUtBeQiZxdtxWpkBOVs2AJFJ6G2J0WTje8M8lw8QnePMlbU5uYR46eVGMfmVW2Wlcd8uBU50jk2qcdWyymT6pt8DKE8AbvqL31NCNVhrBo/s1600/DSC00441.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMNgxjfqv7tp8_RQ6moqLbxadEVPJym8Wn4yJUtBeQiZxdtxWpkBOVs2AJFJ6G2J0WTje8M8lw8QnePMlbU5uYR46eVGMfmVW2Wlcd8uBU50jk2qcdWyymT6pt8DKE8AbvqL31NCNVhrBo/s400/DSC00441.JPG" width="300" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Sony Center/Potsdammer Platz</td></tr>
</tbody></table>
<div style="text-align: center;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br /></span></div>
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Outras vezes simplesmente anula o tempo e
o próprio espaço, como no memorial do holocausto, perto do Reichstag (ele
próprio um interessante híbrido de passado e presente). Ambos estiveram, aquando da sua construção, envoltos em polémica, como convém a uma cidade onde se joga muito da futura identidade europeia. Ambos são, no entanto, monumentos muito bem conseguidos. No caso do parlamento, a cúpula corporiza os valores de transparência indispensáveis à democracia; percorrer o memorial dá ao visitante, à medida que o chão afunda, a sensação de caminhar no nada, num lugar sem referências, sem marcas humanas, sem esperança. Sem fantasmas, sequer.</span><br />
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br /></span>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhdViDpVZCNLPUc-kSl4vdGRE5orap9BPCDTKEI4AuzJMfgEZ26_Z_gqNs-et95dF4iO9z1im39cCEMRt5IcIRE_ucMuNQYjCP1R3gsUaiSHWh3MJ-v-f7sFlKneDdsP1FcTM7tz4quIDLo/s1600/DSC00572.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhdViDpVZCNLPUc-kSl4vdGRE5orap9BPCDTKEI4AuzJMfgEZ26_Z_gqNs-et95dF4iO9z1im39cCEMRt5IcIRE_ucMuNQYjCP1R3gsUaiSHWh3MJ-v-f7sFlKneDdsP1FcTM7tz4quIDLo/s400/DSC00572.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Holocaust-Mahnmal (Memorial do Holocausto) com o Reichstag ao fundo</td></tr>
</tbody></table>
<div style="text-align: center;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br /></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
</div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> No
entretanto, em Berlim, os fantasmas existem, notavelmente discretos, emergindo
ocasionalmente por entre o som dos passos do visitante ecoando na calçada. E,
mesmo não sabendo alemão, é fácil reconhecer o apelido judaico e as palavras <i>deportiert </i>e <i>Auschwitz</i>. </span><br />
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br /></span>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpnqKTWiDUSgBTN66nwxwFl5CjmDLantaOAetLDzumc4XRuq_uCMKgCuNgWMUzN1rixClTWeCQVxCsFv5Y57pwepPY1d0jXrPn0IyMXTTwRxaXEMOtJxBXVg76aPMW43J2u-cximwD-DWw/s1600/DSC00557.JPG" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpnqKTWiDUSgBTN66nwxwFl5CjmDLantaOAetLDzumc4XRuq_uCMKgCuNgWMUzN1rixClTWeCQVxCsFv5Y57pwepPY1d0jXrPn0IyMXTTwRxaXEMOtJxBXVg76aPMW43J2u-cximwD-DWw/s400/DSC00557.JPG" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;">Brückenstrasse</td></tr>
</tbody></table>
<div style="text-align: center;">
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Bibliografia: TILL, K. E. (2005). <i>The New Berlin: Memory, Politics, Place</i>. Minneapolis: University of Minnesota Press</span></div>
</div>
</div>
Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-53398555344403985992012-01-09T17:44:00.001+00:002012-01-24T17:30:36.175+00:00La Meglio Giuventù (A Melhor Juventude), Marco Tullio Giordana (2003)<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://lnx.whipart.it/imagesart9/1272550379-Gioventu_scarpettini_1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="262" src="http://lnx.whipart.it/imagesart9/1272550379-Gioventu_scarpettini_1.jpg" width="400" /></a></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Por vezes o cinema
apenas entretém, por vezes nem isso, por vezes faz-nos pensar, outras vezes, no
entanto, inspira-nos e comove-nos, faz vibrar em nós cordas que o quotidiano
apressado tenta emudecer. <i>La meglio
giuventù </i>é um destes filmes: um longo intervalo no quotidiano apressado,
forçado pelos seus 366 minutos de duração, tão densos de emoção e temas fortes
que passam num ápice. Tinha-o visto há não muito tempo, mas uma viagem até
Itália entretanto feita suscitou-me a vontade de o rever. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> O filme é tributário da longa tradição neorrealista
italiana, dando continuidade aos dramas familiares habituais no cinema
transalpino (e suas ramificações, porventura mais conhecidas, como <i>O Padrinho</i> de Copolla) e eloquentemente demostrando,
a esse respeito, a vitalidade da tradição (de facto, o único momento em que se
introduz um pouco de realismo mágico à maneira sul-americana acaba por ser
comparativamente embaraçoso: a sério, deixem isso para o Almodóvar…). De resto,
o filme é um excelente exemplo da sensibilidade humana que aprendemos a
apreciar (e a esperar) no cinema italiano. Folhetinesco no melhor sentido da
palavra, <i>La meglio giuventù </i>é
essencialmente um filme sobre a Itália, feito sem grandes preocupações de
inovação formal e colocando toda a ênfase naquilo que é realmente fundamental
em cinema: a arte de bem contar boas histórias. O registo vagamente épico, com
ecos homéricos entrecruzados com diversas referências culturais italianas,
consegue produzir uma síntese credível entre a história contemporânea de Itália
e o percurso das personagens. Das cheias de Florença à luta contra a máfia, das
manifestações estudantis à integração europeia, do terrorismo vermelho aos
desapontamentos da globalização, o filme é um belo e absorvente fresco de uma
juventude que efetivamente mudou o mundo, mudando-se a si própria no caminho. De
o rever sobrou-me, no entanto, a impressão reforçada de que o cinema não é
História, mas sim Arte (até porque há histórias na História que só a Arte pode
contar). E, com efeito, o filme transcende largamente a narração e revisitação
históricas para almejar a algo muito superior, que é aquela indefinível,
inefável, inenarrável chama que anima a vida a que, por falta de uma palavra
melhor, chamamos sonho. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Esta crítica poderia, portanto, começar no fim do
filme, no Cabo Norte, no sítio onde o mundo, o tempo e os homens reencontram a
sua ilusória circularidade e em que o sol da meia-noite, levemente afagando a
fria superfície do oceano para de novo se erguer traduz não um verdadeiro fim:
apenas um reinício, uma simbólica continuidade, o ténue fio tecido de memória e
esquecimento, preservação e destruição, que liga as gerações entre si. </span></div>
<br />
<br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.youtube.com/embed/eIozQwKTxp0?feature=player_embedded' frameborder='0'></iframe></div>
<div style="text-align: center;">
<br /></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-58473072249794133422011-12-11T11:02:00.001+00:002012-01-24T17:30:42.099+00:00Volver, Pedro Almodóvar (2006)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh80Ewpt-PmjyyM3luxrBTEnkdptzmc7ecUeVs0kZfHbwvE6KVx4FOLlkRpagoZ5dIoF4bHz3QrfTMym0lJ1DiyTLe1N5ynLKZu7c_Zqo16IxPB6fY0yJI1i3PBAIbZdp7n95NluBECqBM/s1600/volver1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="315" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh80Ewpt-PmjyyM3luxrBTEnkdptzmc7ecUeVs0kZfHbwvE6KVx4FOLlkRpagoZ5dIoF4bHz3QrfTMym0lJ1DiyTLe1N5ynLKZu7c_Zqo16IxPB6fY0yJI1i3PBAIbZdp7n95NluBECqBM/s400/volver1.jpg" width="400" /></a></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Para mim, o melhor Almodóvar, já longe dos
destrambelhamentos da Movida mas ainda sem as amarguras da idade. Para mim, a
melhor Penélope Cruz, já mulher feita e atriz plena, mas antes dos Woody Allens
insonsos, a fazer de espanhola pitoresca, a jeito para o postal ilustrado. Uma
flor de maturidade cinematográfica, que sabe bem rever, um clímax, a obra-prima
de Almodóvar, sem sombra de dúvida.</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> <i>Volver </i>significa
voltar, e a palavra, em espanhol, tem notórias características eufónicas. Há
algo de circular na palavra, que Almodóvar faz refletir no filme, um pouco na
lógica do eterno retorno, da necessária circularidade da vida, na inutilidade
da fuga e na redenção que a mortalidade pressupõe. O filme é, acima de tudo,
uma parábola sobre a transmissão da cultura entre gerações, não só entre quatro
gerações de mulheres, mas da Espanha para si própria. E é sobretudo esta
característica que faz do filme uma obra-prima, um símbolo narrativo da
história contemporânea de um país. Senti desde logo, ao vê-lo e ao revê-lo, que
é um filme profundamente espanhol: da minha parca experiência de travessias espanholas
ao volante, reconheci a imensa meseta ibérica, com a sua planura batida pelo
vento pressagiador da demência e as localidades semiabandonadas, de uma
inenarrável desolação, entregues a não sei que fantasmas. Mas também perpassa
ciclicamente pelo filme um dos grandes mitos da Espanha: Almodóvar, que já
havia tratado a figura do toureiro (ou, mais propriamente, da toureira), evoca
agora D. Quixote, pós-modernamente, nos aerogeradores que separam Madrid do
lugarejo manchego, traços de união entre as duas Espanhas, a cosmopolita e a
tradicional. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Almodóvar sabe criar imagens oníricas a partir de
realidades quotidianas e, por vezes, sórdidas. Em <i>Tudo Sobre a Minha Mãe</i> transforma um corrupio de carros em redor de
um grupo de prostitutas numa belíssima dança noturna; aqui, cria um limbo entre
a vida e a morte, num pátio azulejado do sul, numa daquelas casas povoadas de
recordações e mistérios. A casa da tia Paula, no filme é, portanto, a própria
Espanha, com os seus mal arrumados passados violentos, feitos de múltiplas
violações e castrações, os seus assassinatos e as suas traições. E depois há,
claro, os temas habituais no realizador, que já não são surpresa alguma,
essencialmente plasmados no universo feminino. Até nisso o filme correspondente
ao zénite da carreira de Almodóvar: aquele momento em que o realizador já havia
criado o seu quadro de referência artístico original, mas em que o pedantismo
ainda não lhe permitia comprazer-se na mera citação de si próprio. Assim, há os
habituais intertextos cinematográficos, o fascínio pelas margens da sociedade e
a gastronomia: são sempre encantadoras as sequências de cortes de legumes,
particularmente os tomates, com a sua simbólica tonalidade vermelha. E claro,
as mulheres que são, nas nossas culturas sul-europeias só epidermicamente
patriarcais, as verdadeiras transmissoras da cultura entre gerações. São elas
que calam, são elas que contam as histórias, são elas que redimem. </span></div>
<br />Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-7768219098904564482011-11-24T18:57:00.001+00:002012-01-24T17:30:49.444+00:00Sangue do meu Sangue, João Canijo (2011)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://www.midas-filmes.pt/imagens/blog/sangue-do-meu-sangue_2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="266" src="http://www.midas-filmes.pt/imagens/blog/sangue-do-meu-sangue_2.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">O Cineclube de Guimarães tenta, sempre que possível,
contribuir para a superação do preconceito que os espectadores manifestam,
habitualmente, em relação ao cinema português. Tenta mesmo, aliás, estão sempre
a dizê-lo. Desta vez as coisas correram bastante bem: a sala do Pequeno
Auditório (quiçá escolhida para evitar clareiras demasiado óbvias) quase não
chegava para acolher toda a gente que veio ver este filme. De resto, e os
circuitos cinematográficos alternativos têm este tipo de vantagem, a sessão
ficou enriquecida com a presença do realizador, que conversou um pouco sobre o
filme com os espectadores no final da sessão. Como sempre acontece nestas situações,
a conversa foi interessante não tanto pelo que o realizador disse mas, essencialmente,
pelas opiniões que os espectadores verbalizaram em relação ao que tinham
acabado de ver. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> O filme propriamente dito é globalmente bom, embora
esteja algo longe de ser, como aparentemente alguns críticos mais relaxados o
classificaram, uma obra-prima. A espaços, e principalmente no início, parece
que se encaminha nessa direção, mas quando a narrativa se adensa a riqueza de
pormenores que faz a delícia do espectador até sensivelmente ao intervalo
torna-se mais rarefeita, e o filme perde interesse. Um pouco como <i>Romeu e
Julieta</i>, Sangue do meu Sangue começa por ser uma boa comédia que acaba como uma
tragédia insossa, ainda por cima enfraquecida pela envolvência etnográfica que dilui
o universal humano, essencial nesse género dramático. Há personagens deliciosas
no filme que são abandonadas ou se perdem na atmosfera crescentemente negra que
se vai criando à medida que a narrativa avança: a mãe (sem dúvida o melhor do
filme, protagonizada por uma sempre excelente Rita Blanco), o dueto composto
pelo namorado segurança e o irmão ladrãozeco que chega a lembrar <i>Tom and Jerry</i>, a namorada negra
sorumbática que não abre a boca o filme todo… </span><br />
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Outro ponto forte do filme é a
forma como nele é retratada a vida quotidiana ao nível familiar. A composição
hiper-realista dos diálogos simultâneos, forçando o espectador a escolher qual
deles quer ouvir, além de formalmente inovadora, ecoa metaforicamente a
necessidade de fazer escolhas com que as personagens do filme se deparam.
Também gostei da forma como o som de fundo das televisões foi usado: a única
banda-sonora do filme são os relatos televisivos dos jogos de Portugal no
mundial de 2010 e as notícias do telejornal que nos falam da entrevista do
Teixeira dos Santos à CNN. Passou apenas um ano, e parece que já foi há tanto
tempo! O filme mostra bem como, nestes dias, o presente passa à história diante
dos nossos olhos confusos e aterrados. E depois, há o bairro Padre Cruz, que é
uma personagem da história de pleno direito. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Acontece que eu, curiosamente, conheço o bairro Padre
Cruz: essa localização chamou-me de imediato a atenção quando li algo sobre o
filme. O bairro Padre Cruz é um bairro social lisboeta, ao pé da Pontinha.
Seria uma geografia que nada me diria, como não dizia à plateia na sessão, se
não se desse a circunstância de eu, por acaso, o conhecer. E isso seria já de
si interessante, nem que fosse simplesmente pela possibilidade de ver em cinema
um local que conheço na realidade. Já tinha visto o Azibo, a linha do Tua (não,
não foi no <i>Pare, Escute e Olhe</i>) e até
uma certa rua de Paris, mas tudo de um modo meio acidental e algo fugaz. O
bairro Padre Cruz, no entanto, irrompe por este filme adentro, com as suas
vielas estandardizadas simulando, em mau urbanismo, o mapa hidrográfico
português; os cães que não param de ladrar; os escarros profundos que rasgam a
noite; o ensurdecedor ruído das vidas dos vizinhos, cujas trajetórias parecem
poder ser narradas recorrendo apenas ao parco vocabulário constituído por meia
dúzia de palavrões constantemente repetidos; a inacreditável pequenez das casas;
a estranha consistência de lata e vidro velho que todo o bairro parece ter, que
se cola aos ouvidos, às mãos, aos olhos; o bizarro caldo de cultura feito de
transmontanos, beirões, alentejanos, guineenses, cabo-verdianos, angolanos,
brasileiros e ciganos; o perverso sentimento de comunidade que causa um
estranho desconforto a quem entre no bairro vindo de fora dele; o café
esquálido, único num raio de quilómetros, no qual a hora de fecho é apressada varrendo
priscas quase por entre as pernas dos clientes; e as vistas sobre os arrabaldes
lisboetas que se tem da estrada onde se apanha o autocarro, a meio caminho
entre uma paisagem urbana com ressonâncias árabes e mexicanas e um surreal
deserto feito de precários casinhotos com enormes blocos de apartamentos sem
varandas ao fundo. </span></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-35058701818837133332011-11-17T10:59:00.001+00:002012-01-24T17:31:10.827+00:00The Adventures of Tintin: the Secret of the Unicorn, Steven Spielberg (2011)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="http://revoseek.com/wp-content/uploads/2011/10/The-Adventures-of-Tintin-Secret-of-the-Unicorn-Review.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="300" src="http://revoseek.com/wp-content/uploads/2011/10/The-Adventures-of-Tintin-Secret-of-the-Unicorn-Review.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> </span><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Sempre gostei de banda-desenhada em geral, e do
Tintim em particular. Lembro-me bastante bem da primeira vez que li um livro da
personagem, embora não tenha a certeza absoluta se era <i>A Ilha Negra </i>ou <i>O Cetro de
Ottokar</i>. Dei com o álbum na biblioteca da escola preparatória, andava eu no
5.º ano, e daí foi certamente um passo rápido para o encantamento. Da linha, da
cor, da aventura, mas essencialmente da viagem. E, fosse num país balcânico
imaginário, fosse sob os céus plúmbeos da Escócia, soube-me bem viajar naquelas
pausas antes das aulas da tarde, a seguir ao intragável almoço na cantina (sei
que todos os alunos se queixam das cantinas mas, acreditem, eu tinha razões
para isso).</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiT3mJ6_LmMn7WlqBZU36xJRRLG46DcNZKhu7nYyay_rqLi07cy6FH_tgSb0Gkpg2JdA6OZSqjNpe6l_2Rn2O0kE6naCO1LegGtrILOh1fH720A-Mo2CTG4CNW3Kmq5ixShSKusebgrZgM8/s1600/digitalizar0001.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="166" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiT3mJ6_LmMn7WlqBZU36xJRRLG46DcNZKhu7nYyay_rqLi07cy6FH_tgSb0Gkpg2JdA6OZSqjNpe6l_2Rn2O0kE6naCO1LegGtrILOh1fH720A-Mo2CTG4CNW3Kmq5ixShSKusebgrZgM8/s400/digitalizar0001.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i>A Ilha Negra (clique para aumentar)</i></td></tr>
</tbody></table>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> </span><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Não voltei a encontrar-me com o Tintim durante
bastantes anos. De facto redescobri-o apenas quando o jornal Público
disponibilizou, a preço de saldo, a coleção completa das suas aventuras. Nessa
altura eu já não era propriamente uma criança. O encantamento, no entanto,
permaneceu: com efeito o Tintim mostrou-me, para meu agrado, que a minha
predisposição para o deleite só aumentou com os anos. E essa constatação dá-me
argumentos para superar o habitual preconceito sobre o que é para crianças e
jovens e o que é para adultos. De facto, porque é que aquilo que realmente nos
deleitou em miúdos tem de ser tão implacavelmente deitado fora só porque nos
tornamos adultos? Não, há coisas que o próprio tempo se encarrega de canonizar,
e que assim transcendem essas catalogações fáceis. Portanto, continuei a
deixar-me levar pelas aventuras do Tintim. Leio-as e releio-as avidamente, na
realidade. E já cheguei, até, a escrever sobre elas, numa determinada altura: <a href="http://a-espera-de-godot.blogspot.com/2011_01_01_archive.html" style="text-align: -webkit-auto;">http://a-espera-de-godot.blogspot.com/2011_01_01_archive.html</a>.</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Conheço bastante bem, portanto, o universo das
aventuras de Tintim. E, como tal, achei que não devia deixar de ver o recente filme
da personagem. Sabia de antemão, como sempre acontece nestas coisas, que o
produto podia não me agradar inteiramente, que o mais certo era mesmo não me
agradar, mas enfim, deixei-me de purismos e lá pus, como os outros, os óculos
3D. Em último caso, o deleite dos álbuns já ninguém mo tira, pensei.
Lembrei-me, no entanto, de umas linhas num ensaio de T. S. Eliot, <i>Tradition and the Individual Talent</i>, no
qual é dito que não são apenas os clássicos que influenciam as variações que
sobre eles são feitas: de facto, também essas variações moldam as leituras
ulteriores dos próprios clássicos. Os álbuns, portanto, já não serão <i>exatamente</i> a mesma coisa depois disto… </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Façamos, portanto, uma apreciação do filme em termos
positivos e negativos (atenção: daqui para a frente há <i>spoilers</i>). Comecemos pelos positivos. Graficamente, o filme é
interessante. Ainda que não tenha gostado do retrato do Capitão Haddock
(estático, exagerado e, face ao original, inexpressivo), a transposição para um
modelo semirreal do Tintim está bastante bem feita. O boneco consegue uma
síntese perfeita entre o seu original desenhado e o que seria o seu
correspondente na vida real. A cena do retrato feito no mercado (não consegui
confirmar se o retratista é o próprio Hergé, mas seria bastante inteligente que
fosse) é particularmente feliz ao estabelecer essa ligação ao mesmo tempo que
faz um tributo aos álbuns. O argumento, centrado nos álbuns <i>O Segredo do Licorne </i>e <i>O Caranguejo das Tenazes de Ouro</i>, parece-me
também bastante bem-conseguido ao conseguir fazer referência a elementos de
praticamente todos os álbuns. A junção mais forçada é a cena das bolas de
bebida disputadas entre o Capitão e Milu, em que as quedas livres da aeronave
simulam o efeito de ausência de gravidade que ocorre, na realidade, no álbum <i>Explorando a Lua</i>. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjFostr7dBnwSrW2o6oD7CVcFKxutpMbXuvCzHBUhS0cocYQjQhbQBmwd9VSJlRpCNBcVi5lfCxK0MX2SJmWF7Fjoulh7fs09JpJG4tTd02tzp41mSvmG4JbXroWraXVvMzLnIOqpOWrZnj/s1600/tintin1.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="187" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjFostr7dBnwSrW2o6oD7CVcFKxutpMbXuvCzHBUhS0cocYQjQhbQBmwd9VSJlRpCNBcVi5lfCxK0MX2SJmWF7Fjoulh7fs09JpJG4tTd02tzp41mSvmG4JbXroWraXVvMzLnIOqpOWrZnj/s400/tintin1.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i>Explorando a Lua </i><i>(clique para aumentar)</i></td></tr>
</tbody></table>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Este é um exemplo de
como a linha narrativa do filme caminha perigosamente perto de se transformar
numa caldeirada de Tintim: penso, de qualquer modo, que tal não é o caso, e
essa é definitivamente uma qualidade do argumento.</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> No
entanto, alguém que não tenha lido nenhum dos álbuns (e aqui entramos na
crítica negativa) ficará, apesar disso, com uma visão profundamente errada do
que é a série de álbuns do Tintim. A este respeito é interessante interrogar as
pequenas diferenças: confesso que não resisti a folhear os dois álbuns que mais
explicitamente servem de base ao filme ao chegar a casa. Há, desde logo, as
pequenas alterações inexplicáveis. O hidroavião que metralha Tintim, o Capitão
Haddock e Milu em alto-mar tem, no álbum, matrícula marroquina. Por que
insondável motivo é que no filme lhe põem uma matrícula portuguesa? Uma
referência obscura ao facto de haver uma personagem portuguesa nos álbuns (que
não aparece no filme)? Mas se o senhor Oliveira da Figueira é uma personagem
claramente positiva, que por mais de uma vez ajudou o Tintim, porquê essa
despromoção tão grosseira dos portugueses no filme? Porque é que de simpáticos
vendedores de bugigangas nos livros passámos a metralhadores de náufragos no
cinema? Não bastam já as agências para denegrir a nossa imagem internacional?</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZWtVZ_ArPPezT_RzDQTwugzGGP84GJnJDdjfETqvEz3AxAI5jbEMe6qltRmKSd9kVGR2_8y4I5fuwj5WO5OjS0-nI7mbEdhlGzCFWZfEp7mIWdqYqw38oYxYHJ-jeoMLGuaoTcE5Wdd3U/s1600/tintin2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="136" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZWtVZ_ArPPezT_RzDQTwugzGGP84GJnJDdjfETqvEz3AxAI5jbEMe6qltRmKSd9kVGR2_8y4I5fuwj5WO5OjS0-nI7mbEdhlGzCFWZfEp7mIWdqYqw38oYxYHJ-jeoMLGuaoTcE5Wdd3U/s400/tintin2.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i>O Caranguejo das Tenazes de Ouro </i><i>(clique para aumentar)</i></td></tr>
</tbody></table>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> </span><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Outra alteração, essa já mais explicável, é aquela a
que é sujeito o xeque Omar ben-Salaad. Tudo bem que nos álbuns este é um
traficante de ópio: mas o grau de malvadez a que o filme o eleva é
completamente despropositado. O ben-Salaad do álbum faz-se transportar sobre
uma mula no meio do seu povo: o do filme vive num palácio híper-sumptuoso,
rodeado pelas águas duma barragem a abarrotar enquanto o povo raciona água. A explicação
é simples: o público americano não consegue conceber um xeque que não seja um
tirano e que não viva no luxo enquanto o povo sofre. A imagem do ben-Salaad
original irritaria, portanto, muita daquela gente que acha que a vocação
nacional dos Estados Unidos é libertar povos árabes dos seus déspotas.
Paradoxalmente (ou não), o Tintim do filme está-se nas tintas para o povo
árabe, bem ao contrário do seu modelo desenhado. Bem à moda americana, este
Tintim de Spielberg limita-se a destruir completamente uma cidade árabe. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi_jwdLVoD-AVnkNx2cdCUO8qctxUNUz3ShpLHt5duWWvgweXOYX8qAkL087b5BRircriiOi2bCJIE3Qcteoi_eMlZXn8E6I09IYZqNeyRifgPbOdf7sEC8eDZG6he4yo7AwgbkEmgPyCr8/s1600/tintin3.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi_jwdLVoD-AVnkNx2cdCUO8qctxUNUz3ShpLHt5duWWvgweXOYX8qAkL087b5BRircriiOi2bCJIE3Qcteoi_eMlZXn8E6I09IYZqNeyRifgPbOdf7sEC8eDZG6he4yo7AwgbkEmgPyCr8/s400/tintin3.jpg" width="285" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i>O Caranguejo das Tenazes de Ouro </i><i>(clique para aumentar)</i></td></tr>
</tbody></table>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> </span><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Isto leva-nos a outra questão mais profunda. A
banda-desenhada franco-belga é diferente dos <i>comics</i> americanos precisamente na medida da contenção. Os heróis
franco-belgas são, para todos os efeitos, humanos, o que permite uma identificação
mais genuína. Ao ler um <i>comic</i> do
Super-Homem eu sei, desde logo, que não posso voar, não posso amparar um Boeing
em queda livre, não posso congelar, com um sopro, um vulcão em atividade. O
Homem-Aranha ainda se suporta: afinal, Peter Parker é um estudante
universitário teso, com um part-time miserável e uma namorada chata a quem
calhou a ambígua sorte de ser mordido por uma aranha radioativa (algo que pode,
afinal, acontecer a qualquer pessoa). Já o Batman será, porventura, o único
herói de <i>comics</i> sem superpoderes, mas
aquele hábito de vestir o sobrinho com aquelas roupas coloridas é, no mínimo,
suspeito. A banda-desenhada americana alimenta-se, portanto, de uma estética do
excesso (e isso é normal, é bom mesmo, afinal habituámo-nos a ela assim). Não
exagerarei, no entanto, se disser que é a essa estética que este filme converte
o ícone maior da banda-desenhada franco-belga: e disso, no entanto, não gostei,
não gostei mesmo nada. Seria expectável, e até desculpável numa certa medida,
mas Spielberg exagera. Do ponto de vista de qualquer possibilidade de
identificação com a personagem, este Tintim supera o próprio Super-Homem: este
Tintim, na realidade, é um Ranger do Texas… </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Já não falo, aqui, das pequenas diferenças. No álbum
Tintim, ao procurar qualquer coisa (o pergaminho) debaixo de um armário agacha-se e
apalpa por debaixo do móvel como uma pessoa normal, dando ao levantar-se uma
cabeçada na gaveta superior, que estava aberta. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody>
<tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgLWiw8DH5OGfz6sK3ferhFE2LCgBeoSbEh4kYOPLTiglbQnFQQ6z9iWOXmUkmdkLWKwsQgEuI3h9EkXP6tQjYBTSAcb7KyXkR3ulonTYnLHN5v5ujTxP6GMTea7o3T_FxB7KDjHHzDvjVl/s1600/tintin14.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" height="272" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgLWiw8DH5OGfz6sK3ferhFE2LCgBeoSbEh4kYOPLTiglbQnFQQ6z9iWOXmUkmdkLWKwsQgEuI3h9EkXP6tQjYBTSAcb7KyXkR3ulonTYnLHN5v5ujTxP6GMTea7o3T_FxB7KDjHHzDvjVl/s400/tintin14.jpg" width="400" /></a></td></tr>
<tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><i>O Segredo do Licorne </i><i>(clique para aumentar)</i></td></tr>
</tbody></table>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> </span><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Nem isso o super-herói de
Spielberg pode fazer: fortalhaço como é, arrasta o armário com um golpe decidido
de braços. Mas enfim, como dizia, pequenas diferenças. O que já não é uma
diferença pequena, mas antes altera completamente a personalidade da
personagem, é a constante necessidade de autoafirmação, que toma conta de
Tintim, de Haddock e do próprio Milu. Todos passam o filme a tentar provar que
são machos carregados de testosterona. Tintim, que nos álbuns só pegava num
revolver quando era mesmo preciso, tem no filme dedo leve no gatilho. Haddock é
acometido de culpas puritanas, bem ao estilo protestante, sempre que bebe: e
bebe de tudo, parecendo mesmo preferir álcool etílico ao <i>scotch</i> que lhe fazia as delícias nos álbuns. E depois tem
flatulências, e arrota generosamente, coisa que nunca fez num álbum. E até Milu
domina um Rottweiler (que, no álbum, é um dogue alemão). Já não queria pegar
pela mirabolante história de vinganças transgeracionais que inventaram para o
Capitão mas, enfim, como dizia o outro senhor, não havia necessidade…</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Aqui há uns anos surgiu uma publicação, que retomava
a personagem do Tintim na idade adulta. Milu havia morrido, Haddock mergulhara
em definitivo no álcool, e Tintim era um misto de repórter e detetive de <i>film noir</i> com uma vida sexual turbulenta
e generosamente povoada. A ideia causou polémica, ao ponto de a publicação ser
cancelada. A opinião geral foi de que há limites para o que se pode fazer com
uma personagem. A pergunta é: se for Spielberg a fazê-lo, já não há? </span></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-15285646714001286472011-10-21T15:17:00.000+01:002012-01-24T17:31:20.420+00:00Entre Beethoven, Larkin e Goya<br />
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small;"> </span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">A música é o segundo
andamento da 7.ª Sinfonia de Beethoven. É um trecho bastante conhecido, que
surgiu recentemente enquanto banda sonora do filme <i>O Discurso do Rei</i>. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small;"><br /></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.youtube.com/embed/wwUkuMf-h7U?feature=player_embedded' frameborder='0'></iframe></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Na banda sonora do filme a música aparece sob o
título <i>Speaking unto Nations</i>. Há uma <i>nuance</i> discursiva no título em inglês
que o nosso idioma demasiado igualitário não permite retratar exatamente, que é
a o significado transmitido pela preposição <i>unto</i>.
Falando a nações, portanto, mas falando de cima para baixo. A música transmite
sentimentos semelhantes. No filme, podemos lê-la à luz do velho nacionalismo europeu,
culminando no momento em que o velho Império Britânico declara guerra à rejuvenescida
Alemanha Nazi. Há algo de profundo e subterrâneo, de força de gigante
adormecido nos graves lentos dos violoncelos, uma vontade que acorda e progride
para os tons mais altos dos violinos. Há, essencialmente, um tom ominoso: uma
certa clareza que morrerá, uma inocência e espontaneidade que não mais terão
lugar na Europa. Nos versos de Philip Larkin:</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="margin-left: 35.4pt; mso-add-space: auto; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Não mais essa inocência,</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="margin-left: 35.4pt; mso-add-space: auto; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Nunca antes, ou desde então,</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="margin-left: 35.4pt; mso-add-space: auto; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Como transmutando-se em passado</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="margin-left: 35.4pt; mso-add-space: auto; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Sem uma palavra – os homens</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="margin-left: 35.4pt; mso-add-space: auto; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Deixando jardins bem cuidados,</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="margin-left: 35.4pt; mso-add-space: auto; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Os milhares de casamentos,</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="margin-left: 35.4pt; mso-add-space: auto; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Durando apenas um pouco mais:</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="margin-left: 35.4pt; mso-add-space: auto; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Nunca mais essa inocência.*</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br /></span></div>
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif; line-height: 18px;"></span><br />
<div style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif; line-height: 18px;"> Parafraseando
Nietzsche e Leni Riefenstahl, a vontade que se ergue e esmaga sob o seu peso a insustentável
leveza das existências simples. A vontade, perguntaremos nós hoje, europeus contemporâneos,
mas que vontade? Saberemos nós ainda distinguir a vontade da inexorabilidade? Por
leitura hipertextual, a música conduz-me à pintura, Beethoven conduz-me a Goya.
E penso se o pintor espanhol (ou o seu aprendiz que rubricou <i>O Colosso</i>) estaria a pensar em nós ao
criar esta indistinta e assustadora visão do futuro. </span></div>
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small; line-height: 18px;">
</span><br />
<div style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small; line-height: 18px;"><br /></span></div>
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small; line-height: 18px;">
</span><br />
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small; line-height: 18px;"><a href="http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/be/El_coloso.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/be/El_coloso.jpg" width="361" /></a></span></div>
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small; line-height: 18px;">
</span><br />
<div style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small; line-height: 18px;"><br /></span></div>
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small; line-height: 18px;">
<div style="text-align: justify;">
<br /></div>
</span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small; line-height: 18px;"> </span><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="Apple-style-span" style="line-height: 18px;"> </span><span class="Apple-style-span" style="line-height: 18px;">* A tradução é minha: original em </span><a href="http://net.lib.byu.edu/english/WWI/influence/MCMXIV.html">http://net.lib.byu.edu/english/WWI/influence/MCMXIV.html</a>.</span><span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small; line-height: 18px;"><div style="text-align: justify;">
</div>
</span>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-52932087260129573522011-09-13T19:32:00.000+01:002012-01-24T17:32:18.821+00:00Bandas Sonoras<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">O filme <i>Gladiador</i>, realizado em 2000 por Ridley Scott, havia de ter na sociedade portuguesa uma importância impossível de imaginar aquando da sua estreia. Não porque se tenha afirmado como um marco cinematográfico, não porque tenha influenciado de algum modo o cinema português, nem tão pouco porque o filme tenha batido recordes de bilheteira por estes lados. De facto, a importância da película, e muito particularmente da sua banda sonora (composta por Hans Zimmer, um veterano dos filmes de Hollywood) para a sociedade portuguesa radica num facto posterior e completamente extra-cinematográfico: as eleições legislativas de 2005, e a escolha da música mais marcante do filme como banda sonora da campanha do Partido Socialista. O efeito social disto é algo que só poderemos explicar com ajuda dessa disciplina inventada por Saussurre, a semiótica. Com efeito, desde então, o primeiro andamento da faixa três, intitulada <i>A Batalha</i> (que no filme constitui o ambiente musical de uma das últimas batalhas de expansão da Roma Imperial) enraizou-se na imagética musical portuguesa enquanto significante de um significado extremamente dinâmico, mais precisamente, José Sócrates. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small;"><br />
</span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.youtube.com/embed/PYKA-xG9KK0?feature=player_embedded' frameborder='0'></iframe></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small;"><br />
</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small;"> </span><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> O <i>upgrade</i> que isto representou em relação à anterior campanha socialista vitoriosa, a de António Guterres, é expressivo. Guterres havia ido buscar o Vangelis, uma coisa muito em voga nos anos 90, com uma trilha sonora que aludia a mares e navegações, assim prometendo novos descobrimentos. A força da música radicava nessa ideia, de que Guterres era um mero mensageiro, do progresso inevitável. Muito socialista, portanto. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small;"><br />
</span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<object class="BLOGGER-youtube-video" classid="clsid:D27CDB6E-AE6D-11cf-96B8-444553540000" codebase="http://download.macromedia.com/pub/shockwave/cabs/flash/swflash.cab#version=6,0,40,0" data-thumbnail-src="http://1.gvt0.com/vi/QPYL9swf2_k/0.jpg" height="266" width="320"><param name="movie" value="http://www.youtube.com/v/QPYL9swf2_k&fs=1&source=uds" />
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<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small;"><br />
</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small;"> </span><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> </span><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Sócrates foi, no entanto, e em consonância com o Zeitgeist, muito mais longe na pessoalização da campanha. Para ele, isso dos amanhãs que cantam era coisa de comunistas bafientos. A política, na realidade, é um campo de batalha e ele era um gladiador. Com o seu teleponto e o seu fato de bom corte estraçalharia líderes da oposição às dúzias, como o Maximus do filme limpava feras e musculados núbios, quase sem sujar a armadura. Ele, e não qualquer partido, era a esperança, o salvador de Roma, aliás, Portugal. A força da banda sonora deixara de ser, como com Guterres, uma ideia, para passar a ser um homem. De resto, Sócrates tinha pinta. Ao contrário de Guterres, que na melhor das hipóteses evocava um Gama rechonchudo, Sócrates saía-se bem no papel de atleta clássico, ele que gostava de correr em visitas de estado e era exímio no pugilato verbal. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Foi, portanto, com um sentimento de decepção estética que assisti ao seu discurso de despedida, aquando das últimas eleições que deram a vitória ao PSD. Esperava mais, sinceramente. Imaginei que Sócrates sairia, em coerência com o papel que até então havia representado, como um gladiador tombado em glória. O filme poderia, de resto, ter proporcionado um apropriado inter-texto visual e sonoro: Maximus caindo na areia, rodeado pela consternação veneradora do coliseu, redimido pela música <i>Agora somos livres</i>, na voz de Lisa Gerrard. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small;"><br />
</span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.youtube.com/embed/vHAvjaHtlMA?feature=player_embedded' frameborder='0'></iframe></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small;"><br />
</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Verdana, sans-serif; font-size: x-small;"> </span><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Sócrates poderia ter optado por algo assim: seria poderosíssimo do ponto de vista semiótico, e cairia bem a um homem com uma noção tão aguda da estética no confronto político. Teria sido certamente muito mais dignificante do que aquela rebaldaria com jotas ululantes e jornalistas a fazer perguntas aborrecidas, do género, <i>e agora que já não é primeiro-ministro, vai ser preso?</i> </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<i><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br />
</span></i></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><i> * Após uma pesquisa descobri um detalhe interessante: a música da campanha de Guterres, </i>A Conquista do Paraíso<i>, pertence à banda sonora do filme homónimo, de Ridley Scott. Será o realizador militante do PS?</i></span></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-21711522132733259062011-07-04T23:03:00.000+01:002012-01-24T17:32:11.198+00:00The King's Speech, Tom Hooper (2010)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiHmKnS1kxOT7Tk7dWrH-Q7hGvKKMWy45ijyQksIvE528Fpz60rHG-E-zjw-9CU5OIM02zyIeU0kX7dr70VeusqKIz8s8eKaWtXZM6nTYVS4lUhlktFWwit2FaXw87cxXuNd0qfgoUF-oS4/s1600/the-kings-speech-movie.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="298" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiHmKnS1kxOT7Tk7dWrH-Q7hGvKKMWy45ijyQksIvE528Fpz60rHG-E-zjw-9CU5OIM02zyIeU0kX7dr70VeusqKIz8s8eKaWtXZM6nTYVS4lUhlktFWwit2FaXw87cxXuNd0qfgoUF-oS4/s400/the-kings-speech-movie.jpg" width="400" /></a></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><span class="apple-style-span"><span style="line-height: 115%;"> </span></span></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="apple-style-span"><span style="line-height: 115%;"><span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"> </span><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Vi Colin Firth em <i>A Single Man</i> há uns tempos (</span></span></span><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif; line-height: 115%;"><a href="http://a-espera-de-godot.blogspot.com/2010/05/single-man-tom-ford-2009.html">http://a-espera-de-godot.blogspot.com/2010/05/single-man-tom-ford-2009.html</a><span class="apple-style-span">). Na altura foi uma surpresa; desta vez já não. As expectativas iam, portanto, extremamente elevadas para este filme. Para mais, tive de esperar bastante tempo para o ver: com efeito, demorou um pouco a chegar ao Cineclube de Guimarães… <o:p></o:p></span></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="apple-style-span"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif; line-height: 115%;"> Lembro-me de ouvir na rádio uma entrevista ao Colin Firth, na sequência dos Óscares. Dizia, e cito de cor, não saber grande coisa sobre Jorge VI antes de ser abordado para o papel; ficou surpreendido quando começou a estudar a figura histórica ao descobrir a “história de uma dignidade tranquila”. O perfil do papel assemelha-se, portanto, àquilo que Firth fez em <i>A Single Man</i><span class="Apple-style-span" style="font-size: xx-small;">. <o:p></o:p></span></span></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><span class="apple-style-span"><span style="line-height: 115%;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: xx-small;"> </span>No entanto, ao contrário do filme anterior, que era em boa medida um one-man-show, em <i>The King’s Speech </i>há também Geoffrey Rush</span> e Helena Bonham Carter</span>. Ingleses, ou quase (Rush é australiano), estes actores fazem-me sempre pensar em palcos de teatro, mais do que em telas de cinema. E, por conseguinte, fazem-me também pensar na figura tutelar da literatura inglesa. O filme é, de certo modo, um tributo, um filme de actores, aparentemente feito para homenagear esse outro autor, William Shakespeare. As referências abundam: inter-textos shakespearianos, de Macbeth a Hamlet, peças sobre reis assombrados pelos seus predecessores, peças sobre a audácia e o medo, bom… Quando se fala de Shakespeare é mais fácil dizer, simplesmente, peças sobre tudo, até sobre o que ainda não foi sequer sonhado. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span class="apple-style-span"><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif; line-height: 115%;"><span class="Apple-style-span" style="font-size: xx-small;"> </span>Reverbera, ainda a propósito de Shakespeare, o comentário de Jorge V sobre a rádio. Na Inglaterra isabelina, no tempo em que o Bardo pisou os palcos, a reputação social dos actores era baixa. Ralé entre a ralé, era assim que estes eram vistos, ainda que nas suas vozes os maiores heróis da História regressassem à vida transmutados em poesia. O velho rei Jorge V, depois de uma pausada saudação de Natal aos seus súbditos transmitida na rádio, repreende o seu filho gago. Os líderes do séc. XX teriam de falar para rádios (e televisões, depois). Teriam de sorrir e de acenar, teriam de inspirar multidões. Teriam de descer à categoria da ralé entre a ralé, teriam, em suma, de ser actores. <span style="font-size: 8pt;"> </span></span></span><span style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif; font-size: 8pt; line-height: 115%;"><o:p></o:p></span></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-43849903537949778342011-04-01T16:09:00.002+01:002012-01-24T17:32:25.707+00:00Ouvindo rádio pela Nacional 105 fora<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Uma viagem de cerca de uma hora entre o Porto e Guimarães ouvindo rádio. Não pertenço ao grupo maioritário de pessoas que apenas se ligam a este meio de comunicação de massas quando conduz: a ilustrá-lo tenho o facto de não ter televisão em casa. Sim, é chocante, mas desabituei-me quando era estudante (de licenciatura (pois verdadeiramente nunca deixei de o ser…): cheguei, nessa altura, à conclusão de que aquilo que a televisão me dava era muito inferior em importância àquilo que me tirava. Ouço rádio, portanto, todos os dias. Gosto do facto de não ser um meio de comunicação totalmente absorvente, como acontece com a televisão. Pode-se ouvir rádio enquanto se trabalha, por exemplo. Ou enquanto se conduz. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Conduzia eu portanto, pacata e serenamente, gozando o vento primaveril, ouvindo rádio. Gosto de conversa, mais do que de música. A música, de um modo muito pós-moderno, prefiro-a em mp3, à minha escolha. Não sou, no entanto, tão sectário que não aceite uma sugestão antes das notícias à hora certa. De facto, uma canção de que se goste, quando passada na rádio, tem um sabor especial: como se alguém no-la tivesse oferecido. Mas hoje fartei-me. Fartei-me de Fado. E a certa altura premi mesmo, com alguma fúria, o botão 6, correspondente à TSF. Irra, que já não suporto o banho diário de Fado que a Antena 1 me impinge!</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Atentemos nesta problemática do Fado. Tempos houve em que havia a Amália e mais dois ou três. E ouvia-se, e era bom. Hoje os fadistas proliferam, na mesma proporção em que há uns anos proliferavam os psicólogos: virava-se uma pedra num canto de um baldio e lá estava um! Parece haver mesmo uma correlação. Há dias ouvi uma entrevista a uma recém-licenciada em direito que, não tendo emprego na sua área, se havia dedicado ao Fado: cantará ela decretos regulamentares, alíneas do código civil e emendas constitucionais? E se todos os jovens à rasca derem em fadistas? Quem é que o FMI vai encontrar por cá para pagar as dívidas? Meia dúzia de bêbados saudosos, como nos quadros do José Malhoa (o pintor, não o cantor)?</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Se fosse só isso até se perdoava. E até teria a sua piada, dentro de certos limites. Afinal, um povo que até nos seus maiores defeitos sabe encontrar consolações poéticas não pode estar inteiramente perdido. Mas depois há aquela palavra que se repete até ao enjoo, em cada canção, em cada verso, em cada mínima, em cada colcheia… Lisboa para aqui, Lisboa acolá, Lisboa é bonita, Lisboa cheira bem, Lisboa dorme, acorda, adormece, Lisboa tem colinas, Lisboa tem rio, Lisboa tem céu, ruas, casas e carros… Ena, que Lisboa tem tanta coisa a torná-la especial que mil canções não chegam! Até que chega ao ponto em que a simples evocação de Lisboa já não basta: é preciso desdobrá-la em zonas, ruas e bairros para dar para mais canções. E ele é o homem do Saldanha, a viela da Mouraria, o rio em Belém, os telhados em Alfama, o cotovelo no Castelo, a varina da Ribeira, o pombo do Rossio, o poste no Lumiar, o engarrafamento na Pontinha, o ecoponto no Senhor Roubado, tudo serve para arrancar mais uns versitos à exaurida imaginação. Alguém se lembrou, no meio desta vertigem de fadistas, que o país tem mais 89970 quilómetros quadrados de superfície? </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Conduzo pela nacional 105 fora (o facto de a A7 ser demasiado cara para o meu sensível bolso daria, só por si, um belo fadinho) e olho em redor, e penso... Porque não o Fado da desindustrialização? Que tal uma guitarrada acompanhando uma lamentação sobre o triste fado da fábrica do rio Vizela? Podia ser algo como “Povo que labutavas na linha/que talhas com teus subsídios/os cofres da nação”… Mesmo não indo tão longe, que tal subir a A1 (que lá se chama auto-estrada do norte) e passar uns fados de Coimbra de vez em quando, só para variar? Obviamente já não me atrevo a mencionar o facto de que há muita música de raiz tradicional neste país, que praticamente todas as regiões têm a sua identidade musical própria, e que em todas elas bandas desconhecidas procedem a interessantíssimas reinvenções desse património. Porque se insiste tanto, então, nesse género cada vez mais anquilosado e auto-complacente? </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">É fado mesmo, no sentido de fatum, destino. É a forma que o país tem de se lamentar da triste sina do FMI. Por isso há tanta Lisboa no Fado: afinal foi por lá que o desgoverno se aninhou ao longo dos nossos remediados séculos de história pátria. Lisboa cheira bem porque nunca teve de suar; isso é coisa para minhotos, transmontanos e beirões. E o papalvo provinciano acha graça. Já Eça os retratava, descendo o Chiado, rudes morgados que vinham, nos seus jaquetões coçados, receber as decadentes flores da civilização… Agora conduzem Audis A8, são eleitos por Vila Real e têm ajudas de custo. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Um dos temas mais recorrentes da nossa história é a forma como Lisboa, como forma de justificar o seu predomínio político, exporta o seu imaginário para o resto do país. Qualquer pessoa que já tenha visto a Marisa cantar as gaivotas do Tejo em Freixo de Espada à Cinta sabe ao que me refiro. Somos levados a identificar-nos culturalmente com varinas descalças quando vivemos a cinco horas de carro da praia mais próxima. Impingem-nos uma alma que não é nossa, martelam-nos essa alma nos ouvidos, até que entre, com toda a força de um sistema público de rádio e televisão que, como tudo neste país, está em Lisboa. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Por favor, dêem-me um movimento independentista… Os golos do FCP, só por si, já não me consolam. </span></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-69483326335309436202011-03-28T23:40:00.000+01:002012-01-24T17:32:34.525+00:00O castanheiro de Anne Frank<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiMpgAwi2JC28LbYcKgJ48dxolutdSfeUEh8KDhXwm-L83lvLT9oQHjnfHpFWvE9DioFvXpOZxeFNjVzQFpHjHOHSZs-YYMhN2guC-xitLbBpgjxY527gJs9XECvXo3qYSrdMvbggg7kXBI/s1600/3.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiMpgAwi2JC28LbYcKgJ48dxolutdSfeUEh8KDhXwm-L83lvLT9oQHjnfHpFWvE9DioFvXpOZxeFNjVzQFpHjHOHSZs-YYMhN2guC-xitLbBpgjxY527gJs9XECvXo3qYSrdMvbggg7kXBI/s400/3.jpg" width="300" /></a></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: 'Trebuchet MS', sans-serif;"><br />
</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> A memória só se cumpre se nos ensinar algo sobre o presente. Uma parte significativa da minha ideia de Europa (aludo aqui, obviamente, ao ensaio de George Steiner) foi construída lendo o Diário de Anne Frank. Ocorre-me isto lendo, sobre o pano de fundo da actual crise europeia, sobre o castanheiro que Anne Frank mencionou, por diversas vezes, no seu diário, ao longo dos anos negros do domínio continental da Alemanha Nazi. A árvore morreu em Agosto do ano passado, derrubada por uma tempestade (afinal, nem todas as árvores morrem de pé), tendo vários rebentos sido espalhados por diversos locais nos Estados Unidos (no fim de contas, a par de Israel, o percurso normal para muitos judeus europeus depois da guerra). Agora que a Primavera regressa apetece citar as linhas da jovem judia alemã, numa manhã de finais de Fevereiro de 1944: “Quase todas as manhãs vou ao sótão tirar a poeira dos meus pulmões. Do meu lugar favorito no chão, olho para o céu azul e o castanheiro desfolhado, em cujos galhos brilham pequenas gotas de chuva, como prata, vejo ainda gaivotas e outros pássaros que deslizam no vento. Enquanto isto existir, e quero viver para ver, estes raios de sol o céu azul - enquanto isto durar, não poderei ser infeliz.”</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.45pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> A árvore caiu, mas a torre da Westerkerk continua, certamente, a fazer soar as horas em Amesterdão, ecoando palavras escritas, no auge da guerra e do horror: “corações ao alto”, melhores tempos virão. Dá, certamente, para fazer corar de vergonha os europeus de hoje, aflitos com a crise das dívidas soberanas…</span></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-22587819746958086012011-03-07T13:07:00.000+00:002012-01-31T15:52:14.781+00:00Considerações a propósito dos caretos de Podence<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiQ54U1fxWiDAiAJ0a6wc73LEWOolC0pupft3NP_AgutLUkn-_Vb9pNcatXZ7anb_VMU4_IPaK2IexxMbwOcCnsKaJhEY0_OgglTJO0kMw7-x3sZIvdRkT55Tl15JmL1iVlNDOMExO_YL-J/s1600/2557475.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="298" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiQ54U1fxWiDAiAJ0a6wc73LEWOolC0pupft3NP_AgutLUkn-_Vb9pNcatXZ7anb_VMU4_IPaK2IexxMbwOcCnsKaJhEY0_OgglTJO0kMw7-x3sZIvdRkT55Tl15JmL1iVlNDOMExO_YL-J/s400/2557475.jpg" width="400" /></a></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<br /></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<i><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> O turismo pode fossilizar, através de uma certa romantização, a cultura de um determinado local ou comunidade, transformando-os numa espécie de museu ou parque temático. A consagração de uma “geografia de atracções” e a criação de “parques temáticos etnográficos” têm esse efeito perverso de desvitalizar a cultura, precisamente pela obsessão na sua conservação.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> É mais ou menos isto que retiro dum parágrafo do livro “Issues in Cultural Tourism Studies”, de Melanie K. Smith, que ando a ler como parte de um safari académico com vista à preparação da minha dissertação de mestrado. A experiência permite-me, em simultâneo, um contraponto interessante: estive, ontem, em Podence, a propósito do Carnaval dos Caretos. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Os caretos de Podence (na foto) são uma reminiscência comunitária de um certo paganismo transmontano que assume, ainda hoje, muitas formas. Trata-se, tradicionalmente, de um rito de passagem, em que os rapazes, mascarados, corriam a aldeia em busca de mulheres solteiras, com o objectivo de as chocalhar. Há vários Entrudos deste género em Trás-os-Montes, Beiras e Galiza, mas o de Podence tem sido, nos últimos anos, amplamente divulgado enquanto objecto de interesse turístico. As linhas estruturantes dessa divulgação radicam nas noções de genuinidade (Carnaval Genuíno, lê-se nos cartazes), sendo que à crescente popularidade deste evento não será certamente estranha alguma espécie de reacção àquilo que muitos vêm como uma espécie de neo-colonialismo invertido por parte do Brasil. De facto, cresce alguma irritação com o modelo que pretende transformar, contra todas as evidências (não só de índole cultural como também de natureza climatérica), as nossas cidades ainda invernais em pequenos Rios de Janeiro. </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Um visitante poderia então, romântica e ingenuamente, esperar uma Podence virginal, aninhada no Trás-os-Montes profundo, chocalhando furiosamente em honra dos antepassados. Se fosse um pouco menos ingénuo e mais realista, poderia compreender que as barraquinhas de venda de produtos <i>tradicionais</i> são uma saudável concessão ao moderno capitalismo (afinal, os aldeões também precisam de viver). Após um passeio pela aldeia, poderia sobrevir um certo desapontamento: tudo isto é divertidíssimo, é certo, mas então e esta nítida impressão de que os caretos chocalham <i>para turista ver</i>? </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> E aqui, a inocência deveria cair. Nesse momento, um visitante pouco inteligente sentir-se-ia algo defraudado. O momento mais interessante para um visitante mais informado e reflexivo estaria, no entanto, ainda para chegar: o instante em que o fatigado careto tira o colorido fato de lã, guarda a máscara e entra no BMW para regressar ao Porto. OK, e então? Os caretos também precisam de ganhar a vida, e as oportunidades de emprego no interior não são as melhores…</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Se o turismo cultural é uma forma de desvendar e desenvolver identidades (e não apenas um afago existencial a um turista que chega, essencialmente, para confirmar os seus próprios preconceitos), então posso considerar o Carnaval de Podence um bom exemplo dessa tendência. Se viajamos para aprender a fazer perguntas sobre o Outro, e não apenas para construirmos respostas apressadas sobre nós próprios, então pode ser que aprendamos algo em Podence. O que representa melhor o Trás-os-Montes actual: a suposta genuinidade de um rito ancestral ou a participação, aos fins-de-semana, na vida da terra de pessoas que trabalham no litoral? Existe uma tensão entre o antigo e o moderno, ou é o moderno que se define e constrói com recurso ao antigo? Qual é a verdadeira geografia de Trás-os-Montes: o proverbial isolamento, moderna e mediaticamente revisitado em estradas inadequadas e caminhos-de-ferro encerrados, ou a revisitação pendular dos filhos da terra que regressam, nas férias e nos fins-de-semana, para fazer coisas outrora inimagináveis? O que é, então, a cultura: um conjunto de tradições semi-esquecidas e marginalizadas, ou o tecido social vivo que flui e reflui, de uma forma cada vez mais móvel e imprevisível?</span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Serão estes caretos pós-modernos menos genuínos? Sou eu menos transmontano do que um pastor de uma qualquer aldeia do distrito de Bragança? Não me parece.</span><br />
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br /></span><br />
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Bibliografia: SMITH, Melanie K. (2009). <i>Issues in Cultural Tourism Studies. </i>Abingdon: Routledge</span></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-47616425235342220172011-02-21T15:59:00.002+00:002012-01-24T17:33:06.950+00:00L'Illusionniste, Sylvain Chomet (2010)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi2zvdQq_zqy_1hTHV9-zbf30MuJdxaz_1xCEhxLRA0JV0jTv77mAz3rwR6j53aOmiX35C7BU7pVJ5dTG3flJFRoWIIsteOAwSxy9YwTvgblklmVQho0ijVr2BpVaKqB_sLkX9MFv0YJeha/s1600/l-illusionniste-french-style.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi2zvdQq_zqy_1hTHV9-zbf30MuJdxaz_1xCEhxLRA0JV0jTv77mAz3rwR6j53aOmiX35C7BU7pVJ5dTG3flJFRoWIIsteOAwSxy9YwTvgblklmVQho0ijVr2BpVaKqB_sLkX9MFv0YJeha/s400/l-illusionniste-french-style.jpg" width="293" /></a></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
</div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpFirst" style="text-align: justify;">
<span class="Apple-style-span" style="font-family: Arial, Helvetica, sans-serif;"> </span><span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Gosto de filmes de animação. Dos clássicos da Disney aos modernos filmes da Pixar, passando pelo anime japonês. Talvez como a consequência óbvia de uma boa parte da minha formação literária ter passado pela banda desenhada: quadrinhos (como diziam nas edições brasileiras tão comuns nos anos 80 e 90) do Pato Donald, Tio Patinhas, Rato Mickey, Pateta, livros do Tintim (que continuo a ler e reler avidamente), tiras da Mafalda, super-heróis da Marvel… É natural, portanto, que a animação seja uma parte importante das minhas preferências cinéfilas. Isto, claro, muito para lá da discussão sobre se a animação tradicional, a lápis ou plasticina, é melhor ou pior do que a moderna animação feita por computador. Pouco me interessa, francamente. O cinema é arte, e os métodos servem a arte, ponto. Importa, essencialmente, que as imagens comovam, impressionem, façam sonhar. Não se trata de substância ou substrato intelectual, se é europeu ou de Hollywood, não é mesmo à qualidade do argumento que me refiro. Ainda que o cinema seja, de certo modo, a síntese das artes, parece-me que vamos demasiadas vezes ver um filme como quem espera que lhe contem uma história. O cinema é sobretudo imagem. O resto é teatro, literatura, música… </span></div>
<div class="MsoNormalCxSpMiddle" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Os filmes de Jacques Tati têm essa qualidade. Reduzidíssimos no uso da palavra e habitualmente desprovidos de uma linearidade narrativa convencional, são cinema depurado. Cinema como já não se faz. Fica-se, neste filme, com a impressão vagamente deprimente que nos despedimos definitivamente de Monsieur Hulot. Ele, que já era frequentemente um estranho nos seus próprios filmes, em que interpelava, do lado do passado, a modernidade hiper-tecnológica então emergente, reaparece-nos neste filme, cansado e de olheiras fundas: uma recordação, uma fotografia antiga, um desenho animado… Há, de facto, em certos filmes, o mérito de nos fazerem recordar a magia inicial do cinema: aquele elemento que fazia multidões embasbacar diante de uma lanterna mágica, que fazia filas diante de bilheteiras, que fazia delirar gente crescida com uma coboiada ou que fazia uma sala inteira gritar de pavor com um carro acelerando em direcção à câmara… Esse elemento que mais não era do que a materialização do sonho.</span></div>
<div style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif; line-height: 115%;"> É na evocação do sonho que reside a beleza deste filme. Dos majestosos nevoeiros escoceses, por entre os quais se adivinham oníricos castelos; dos comboios, quando estes ainda metaforizavam a vida que se partilhava entre dois apeadeiros; de Paris, e de Montmarte, quando nas suas vielas ainda fluía a boémia cantada por Aznavour. E, essencialmente, na evocação das pessoas que viviam de fazer sonhar: dos ilusionistas, quando estes ainda eram mágicos; dos palhaços, antes de estes se tornarem mais trágicos do que cómicos; dos ventríloquos e dos trapezistas. É um longo crepúsculo de cores quentes matizadas de sépia, este filme. Os últimos lampejos de sonho antes do moderno e implacável mundo consumista, os acordes finais da <i>chanson</i> francesa antes da supremacia global anglo-saxónica, os derradeiros laivos de <i>tendresse</i> antes do <i>sex, drugs and rock’n’roll</i><span class="Apple-style-span" style="font-size: 11pt;">. </span></span></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-56025351371876323762011-01-07T21:50:00.000+00:002012-01-24T17:33:26.673+00:00O rosé do Sr. Oliveira de Figueira<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Oliveira de Figueira é uma personagem dos livros do Tintim. Português do mundo, será quiçá um dos últimos dessa ínclita cepa de andarilhos desafortunados que peregrinaram por mares e continentes. Como o da outra peregrinação, a <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Peregrinaçam</i>, de Fernão Mendes Pinto. E tal como este, também a do Sr. Oliveira de Figueira se adivinha suada. Mas, e o paralelismo prossegue, lábia não lhe falta, e muito portuguesmente o homem desenrasca-se sempre. A ele e ao Tintim que acaba sempre por lhe bater à porta aflito. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Oliveira de Figueira é um comerciante que roça o charlatanismo, capaz de vender gelo a esquimós ou, como mais vulgarmente acontece, equipamento de esqui a árabes. Com efeito, Oliveira de Figueira parece ter assentado arraiais nas arábias, paisagem de eleição para Hergé.</span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgOHUaz51l1DlY_Q2IujsO525HssTa3a7u92xsyMEBAW9taJJmyIARsKd3B2C8eYcFPIg8cGp1bbzMkoq6Kb4w_v5j2p_d6FhlOtfdM90mu3Cj0kzJxvOATcegVlrBZ-kluGpW3Pl7F0vsO/s1600/oliveira2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgOHUaz51l1DlY_Q2IujsO525HssTa3a7u92xsyMEBAW9taJJmyIARsKd3B2C8eYcFPIg8cGp1bbzMkoq6Kb4w_v5j2p_d6FhlOtfdM90mu3Cj0kzJxvOATcegVlrBZ-kluGpW3Pl7F0vsO/s400/oliveira2.jpg" width="290" /></a></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;">
</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> E é no Kehmed (país árabe fictício no centro de uma intriga petrolífera internacional) que ocorre a cena que aqui destaco. Trata-se de uma vinheta que me saltou à vista logo da primeira vez que a li pela referência explícita e bastante surpreendente a Portugal. Tintim chega, acossado por perseguidores, acompanhado por um exausto capitão Haddock. Despertado pelo rosé que o português servira para amenizar a conversa, o capitão faz a cortesia de esvaziar uma garrafa antes de cair num profundo sono. Subitamente, convulsionado por sabe-se lá que pesadelos, o capitão ergue o punho (esquerdo) e grita um sonoro “Às armas!”. Intrigado na sua portugalidade, o Sr. Oliveira de Figueira corresponde com um verde-rubro balão de espantada interrogação e exclamação.</span><br />
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"><br /></span></div>
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<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiOXL3XFwxxxjNARkI-LwJtEu-OJDvZ8LDTzpKFBBMr5OmKQIP5ssXAzvBpgVIoBs3wKJUuQNm0l3vpEIYnTG7m7UO3kfNR_kFYmRixLYk0b_5nYylyEisL3Y4pggoYPNtn99bA-FzXA_mp/s1600/%25C3%25A0s+armas.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="140" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiOXL3XFwxxxjNARkI-LwJtEu-OJDvZ8LDTzpKFBBMr5OmKQIP5ssXAzvBpgVIoBs3wKJUuQNm0l3vpEIYnTG7m7UO3kfNR_kFYmRixLYk0b_5nYylyEisL3Y4pggoYPNtn99bA-FzXA_mp/s400/%25C3%25A0s+armas.jpg" width="400" /></a></div>
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<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">O que quer isto dizer? Súbito entusiasmo lusitanista (quiçá motivado pelo rosé)? Referência lateral ao tráfico de armas que subjaz à intriga do livro? Mas então e aquele punho esquerdo erguido? Haverá ali leituras políticas a fazer? O livro é de 1958, momento em que a ditadura do Estado Novo começava a ser seriamente questionada pelo mundo. Hergé não dá respostas, o Sr. Oliveira de Figueira também não, pelo que não vou ser eu a dá-las. </span></div>
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<div class="MsoNormal" style="text-align: justify; text-indent: 35.4pt;">
<br /></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-5094960219201450722010-12-01T23:08:00.000+00:002012-01-06T22:26:45.212+00:00Amsterdam<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Dos enevoados portos do norte, música que conta histórias...</span><br />
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<iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.blogger.com/video.g?token=AD6v5dwEvpg3NSt0Tvs_ZSq6ITvVAy9QyYQkXZAfT7BQW2FJJLRmvLLeUXJmGZN4TG3FKKtPjoIcHHROo8CmgFe9_Q' class='b-hbp-video b-uploaded' frameborder='0'></iframe></div>
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<iframe allowfullscreen='allowfullscreen' webkitallowfullscreen='webkitallowfullscreen' mozallowfullscreen='mozallowfullscreen' width='320' height='266' src='https://www.blogger.com/video.g?token=AD6v5dzCYx1HzJ4jp0iN8xa0ASW6xKXeRSnri_ALq4--E4j7qSMWbUUhRmWHrQDJNMaTeEmom0T-h64_IJ4ouDpg2Q' class='b-hbp-video b-uploaded' frameborder='0'></iframe></div>
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<br /></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-6819568783905932232.post-73117289370049025412010-10-07T17:51:00.001+01:002012-01-24T17:33:41.016+00:00Jardim do Morro, Gaia<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg1eIbkIYWQsF2z9zT8r3vbklVNACJY3FYQyezseE5g-vdsNa7g16qIHG0lQ8lr9TzrxdG6JUNbXesu0TJIWAIbxiEe7awYVKo4EyQ5w8Mmz1z9j3FrnWH4jaESsmvvnEqcu30HdXkfOt5l/s1600/2409331587_f37f4cfe41.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="266" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg1eIbkIYWQsF2z9zT8r3vbklVNACJY3FYQyezseE5g-vdsNa7g16qIHG0lQ8lr9TzrxdG6JUNbXesu0TJIWAIbxiEe7awYVKo4EyQ5w8Mmz1z9j3FrnWH4jaESsmvvnEqcu30HdXkfOt5l/s400/2409331587_f37f4cfe41.jpg" width="400" /></a></div>
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<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;">Na distância esboça-se o voltear das margens. Olham-se de soslaio, como um par que se exercita na magnética oscilação de um tango. É sensual. Há nos requebros do rio um certo ar de anca grácil, um serpentear de corpo adivinhado. Na superfície de tudo, como um segundo rosto que se cola à face oscilante da cidade, a névoa vai coando a luz do crepúsculo. Penso distraidamente, enquanto escrevo sentado num banco de jardim, que essa neblina é um véu etéreo que tolda linhas e confunde pormenores. Sobra, a meus olhos, nesta hora imprecisa, a ilusão de um quadro impressionista animado de ruídos distantes, vago ciciar de um dia que termina. Derrama-se a Ribeira diante de mim. Cores confusas, tons de uma velha tristeza, poema arquitectónico que ecoa, em cidade, aquele outro poema geológico que Torga leu nas encostas de S. Leonardo da Galafura.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: Georgia, 'Times New Roman', serif;"> Que volteante ode, com versos sulcados de rabelos, com métrica feita de vinho, escreve este Douro que agora se deixa lentamente acinzentar à luz morna do poente? </span></div>Jorge Freitashttp://www.blogger.com/profile/07664096764206608645noreply@blogger.com0