Vi Stupeur et Tremblements por sugestão de um amigo (permitam-me cunhar aqui um neologismo) nipófilo. O filme relata a vida atribulada de Amelie (Sylvie Testud) através dos meandros de uma grande multinacional japonesa, ecoando assim o clássico tema do gaijin, o “diabo estrangeiro” a braços com esse imenso absurdistão que é o oriente. Amelie, no entanto, ama o Japão, seu país natal redescoberto. A distância que a separa de se tornar uma verdadeira japonesa é o ano de contrato que esta passa às ordens da sua superior hierárquica, a glacial e classicamente bela Fubuki. Sem grandes espaços para deleites exóticos (a acção decorre integralmente dentro das instalações da empresa), o filme explora de um modo lúcido e sardónico as diferenças culturais em jogo, à medida que Amelie, em consequência do seu comportamento irremediavelmente ocidental, vai sofrendo as mais absurdas punições.
Houve momentos deliciosos neste filme geralmente bom. Os voos de Amelie pelos céus de Tóquio, por exemplo, são de uma franqueza poética desarmante. O humor desesperado que se solta de certas cenas é, por outro lado quase digno de um Beckett. Gostei sinceramente do filme e da sua profundidade oculta sob um manto de aparente simplicidade, tanto que, ao fim de uns dias, este ainda permanecia firmemente na minha mente, o que é, de certo modo, raro. Algo ali exercera sobre a minha imaginação um poder inquietante, um je ne sais quois etéreo e indefinível que tentei em vão compreender através de alguma investigação e reflexão. Ensaiei algumas tentativas de análise simbólica, procurei as pontas soltas que julgara entrever na esperança de vislumbrar alguma espécie de mensagem oculta... e nada! Para além daquilo que o filme demonstrava significar, nada parecia justificar tal e tão prolongada reverberação na minha imaginação.
Creio, enfim, que acabei por compreender. Mal arrumada na sua precária posição hierárquica, impulsiva e ingenuamente violando regras a seus olhos absurdas, Amelie personifica a dificuldade de interpretar os signos culturais que nos separam. Fazer a ponte para outra cultura é quase sempre um rito iniciático duro, frequentemente humilhante, e tornar-se o outro equivale igualmente a abdicar de si próprio. O amargurado volte face final, a triste conclusão beckettiana que empresta a Stupeur et Tremblements muito do seu brilho é que o vazio e a cupidez reinantes nas relações humanas são, porventura, o grande denominador comum universal.
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