Gostei do filme, ainda que não possa deixar de
concluir que o mesmo largamente me dececionou. O uso da música de Wagner e de
Strauss é inequivocamente fabuloso, a terra olhada em deleite ao som do Danúbio
azul a partir de uma valsa de satélites artificiais não deixa de criar um
ambiente onírico enquanto que o futuro, agora misturado com o passado, que este 2001 nos
mostra continua a manter a promessa de um sonho: o apelo de uma fronteira
derradeira, o prazer antecipado da viagem rumo ao absoluto desconhecido, a
imensidão do universo. Imagino, em retrospetiva, o fortíssimo impacto que este
filme deve ter tido quando surgiu, cerca de um ano antes de o Homem ter ido à Lua. Onze anos
passados do início do século XXI este filme prova um facto sobre o futuro: é
que, seja ele o que for, será muito diferente daquilo que imaginamos.
Coisas boas deste filme? A pureza estética, o
refinamento limpo dos traços, a arquitetura vagamente zen dos ambientes interiores, remanescente de um certo tipo de design de então. O match-cut do osso/nave é, de facto, uma das transições mais surpreendentes da história do cinema:
o melhor retrato do poder da espécie humana que já vi ser feito em três
segundos. Uma lentidão que, ainda que possa parecer exasperante ao espectador
de cinema de hoje, me agradou: um ritmo demorado, contido e sereno, a espaços
uma quase imobilidade, como se o filme fosse uma galeria de quadros. A sequência
da acoplagem do módulo EVA à nave Discovery One é, a esse respeito, exemplar:
longos minutos em que alternadamente vemos o astronauta, o seu rosto fechado
iluminado pelo painel de instrumentos, a carregar em botões e o módulo, encaixando-se
lentamente na nave. Também a sequência da viagem ao infinito, como que evocando
uma trip de ácido, coisa muito em voga (à época de produção do filme) mas
essencialmente a interposição das imagens estáticas do rosto do astronauta,
desfigurado pelas condições da viagem e pelo que nela viu: um exemplo de como o
filme joga abundantemente com o contraste entre a imagem em movimento e a
imagem estática. A tensão de certos momentos: o coro que acompanha a descoberta
dos monólitos é genuinamente perturbador, atestando a superior combinação de
som e imagem que o filme revela.
As fraquezas do filme estão, por outro lado,
diretamente relacionadas com os seus triunfos. Com efeito, Kubrick parece não
almejar a mais do que um simples exercício estético, e essa disposição como que se
torna cada vez mais clara à medida que a película se aproxima do fim. O que
começa com uma premissa efetivamente grandiosa (a origem do Homem) adensa-se
num mistério (a descoberta do segundo monólito na Lua), dilui-se numa interessante
história secundária (a revolta do quase humano computador Hal) e esbarra num
surrealismo bacoco. Como se o realizador tivesse, a dado momento, dito para si
próprio: que se dane o enredo, quem quiser perceber o filme que vá ler o livro.
Ora, isso irrita qualquer espectador minimamente interessado que não esteja,
simultaneamente, para entrar em teorias alegóricas excessivamente rebuscadas. Parece-me
portanto que o filme, ainda que mereça, do ponto de vista meramente estético,
um lugar entre os clássicos, se encontra genericamente sobreavaliado. Uma bela
laranja, mas com pouco sumo, afinal…
Nosferatu, de Murnau, tem um Drácula nitidamente mais assustador, mas Bela Lugosi (Dracula, 1931) está certamente muito mais próximo da sensualidade opressora da personagem original.
Uma característica dos clássicos é a sua capacidade de reverberar significativamente no tempo. Nisso, eles são mitos reinventados: aglomerados de conceitos que são sempre passíveis de mobilização na reflexão sobre a realidade do tempo que vivemos. A figura do Drácula é um dos grandes referentes significativos da fantasia moderna, e a responsabilidade por essa presença perene é do escritor irlandês (essa ilha em que a literatura nasce por entre as ervas) Bram Stoker. Foi ele que, a partir de algumas histórias provenientes do folclore leste-europeu, modernizou e imortalizou o vampiro. E, agora que a moda dos vampiros parece ter passado um pouco, decidi-me a ler o livro.
O vampiro tem associadas duas interpretações principais: a sexual e a político-económica. Por um lado, o vampiro suga a energia vital das mulheres que inexoravelmente se lhe entregam, numa aparente anulação da vontade própria; por outro, a criatura exerce um domínio tirânico, nitidamente feudal, sobre a região em que o seu sinistro castelo assenta. Stoker interliga estas duas dimensões e acrescenta outras, o que cria um denso tecido significativo, em que as interpretações possíveis são necessariamente tão etéreas e precárias como a própria atmosfera do Castelo Drácula (os castelos que, pelo menos desde Hamlet, são sinónimos de labirinto, de indecisão, de traição).
A sexualização da figura do vampiro é feita, de acordo com as convenções colonialistas, com recurso ao imaginário oriental. A primeira (e mais demoradamente detalhada) viagem de comboio até à Transilvânia vibra com a descrição de um ambiente crescentemente irreal em que a lógica restrita do positivismo ocidental é continuamente desafiada. O oriente europeu é um lamaçal enevoado, um local escorregadio em que os povos se sucederam sem se extinguir: cidades com nomes em diversas línguas, etnias difusas e uma religião compósita de superstição e paganismo. Neste local emerge o Drácula, uma sombra secular que, de certo modo, personifica o subconsciente da Europa: a secreta memória da sua precariedade passada e o horror mal arrumado da sua ascensão imperial. Drácula ataca a civilização europeia com forças obscuras que não lhe são, contudo, inteiramente exteriores: daí o horror, pois o verdadeiro horror é o que adivinhamos dentro de nós e o monstro mais perturbador é aquele que adivinhamos na nossa própria imagem distorcida pelo espelho da realidade nua e crua. Drácula ataca, por exemplo, com a carnalidade descontrolada do desejo erótico, assim subvertendo toda a idealização romântica que garante o controlo das condutas sexuais civilizadas. Nada, no entanto, é muito seguro no que diz respeito aos papéis de género em Dracula. Se Lucy Westenra é apenas um objeto sexual, uma mulher que apenas existe em função da disputa dos machos e que facilmente sucumbe à dentada do vampiro, já Mina Harker vai muito para lá da figura clássica da donzela em perigo. Nesta linha, o livro pode ser lido também como uma crónica de autonomização feminina: as relações entre ela e o marido traem um nítido ascendente feminino; Mina escreve, quer como estenógrafa, quer como diarista, ou seja, tem uma voz perfeitamente autónoma na obra; e Mina resiste ativamente ao vampiro, articulando contra ele uma energia primordial de que, porventura, só o louco no asilo do Dr. Seward é capaz.
Esta força feminina autónoma (o desejo sexual femininamente articulado) é a essência do verdadeiro horror no livro. É a partir desse horror que se criam todos os outros: a subversão da ordem social, temida na forma da potencial vampirização de toda a gente, é temida essencialmente na forma de um fenómeno de libertação sexual. A dentada do vampiro é uma caixa de Pandora cheia de energias primitivas, irracionais, orientais. É contra essas energias que a civilização ocidental, personalizada nas figuras masculinas, se mobiliza: Jonathan Harker, o burguês em ascensão; Lord Godalming, o aristocrata em decadência; John Seward, o cientista metódico e cético; Quincey Morris, o novo mundo, a América, com as suas novas formas de imperialismo aventureiro; e van Helsing, o saber acumulado da velha Europa. Mina Harker, a mulher burguesa, é certamente um prémio disputado entre forças agónicas; mas ela mesma joga ativamente o jogo da sua própria construção, articulando inteligentemente a sua posição precária entre as duas alternativas masculinas que lhe são propostas (a luxúria vampiresca e a castidade puritana).
Mas o vampiro é também um animal económico e politico. Drácula é rico, imensamente rico. A sua origem é aristocrática, e terá certamente havido uma justificação heroica para tal: a seu tempo, ele terá sido um verdadeiro aristocrata no sentido grego, excelente entre os excelentes, um brutal guardião da Europa face à ameaça turca. Depois, e à medida que a sua função guerreira foi perdendo importância, Drácula ficou por ali: um cadáver histórico vivendo do trabalho dos seus camponeses, sugando-lhes o sangue e a vida. No entanto, tirânico como era, o domínio feudal de Drácula tinha pelo menos um rosto: os camponeses sabiam quem os explorava, e seria legítimo pensar que, caso tivessem força para tal, poderiam subir a encosta do sinistro castelo, procurar o vampiro adormecido no seu caixão e decapitá-lo (como os franceses fizeram a Luís XVI). No entanto, Drácula não é parvo. Apercebendo-se da crescente hostilidade do seu campesinato (e aborrecido com a monotonia das rudes gargantas eslavas), o aristocrata muda-se para Londres. Aí, a sua riqueza torna-se mais fluída. Drácula deixa de andar com moedas de ouro em sacos e converte-se rapidamente às comodidades do capitalismo financeiro. Atraído pelas oportunidades oferecidas pela capital industrial do mundo, o vampiro compra diversas propriedades em Londres a partir das quais espera viver tranquila e anonimamente do muito mais variado e produtivo sangue do proletariado.
Estas duas temáticas, a político-económica e a sexual, conjugam-se na questão do colonialismo, tratada por Stoker tanto na sua versão expansiva (os impérios coloniais europeus), como regressiva (a imigração, para a metrópole, dos colonizados). Neste último aspeto o autor é verdadeiramente visionário: muito antes de tempo Stoker encena várias características fundamentais da nossa época: a imigração, os fluxos anónimos de capitais e o turismo de massas, por exemplo. Esta última é particularmente notável, pois Drácula faz uma interessantíssima ponte entre o colonialismo e o turismo. De facto, há algo de irónico na forma como o livro fecha: morto o vampiro, as personagens regressam à Transilvânia em passeio. Uma vez dominada a alteridade radical da paisagem estrangeira, o caminho está aberto à transformação da mesma num agradável roteiro: belas paisagens, suaves caleches, povo simples, pobre e solícito, e um leve frisson de mistério compõem o postal final de Mina e companhia, em excursão pela agora pitoresca Transilvânia. Pobre Drácula, em suma: séculos depois de resistir às investidas do Turco sucumbe assim, ingloriamente, ao império global do olhar turístico.
Num
livro de que já falei neste blogue, Portugal
– O Sabor da Terra, é a certa altura introduzida a distinção entre o tempo
curto e o tempo longo. Esta divisão é interessante na medida em que nos permite
entender o espaço e o tempo de uma forma mutuamente implicada. De facto, o
tempo plasma-se no espaço, assim o criando na exata medida em que ele próprio é
espacialmente representado.
O território
português, na representação cultural que nos permite, enquanto povo, apropriá-lo,
pode portanto ser pensado à luz desta forma dicotómica de representar o tempo. O
tempo longo encontramo-lo assim, notavelmente, em Trás-os-Montes: na paisagem
agreste, muitas vezes dura e amiúde desumanizada, nas pedras cifradas que, principalmente
no distrito de Vila Real, compõem o espaço do olhar e dos passos humanos, ou (e
referimo-nos aqui à compleição mais mimosa do distrito de Bragança) na imensidão
inefável da paisagem, no largo e lento rendilhado dos campos que da elevada singeleza
de um santuário roqueiro se lobriga. Nas diversas formas espaciais (espaço natural, espaço público, espaço social,
etc.) que o tempo plasmou em Trás-os-Montes nota-se, portanto, uma cadência
lenta, uma reverberação primordial de um tempo que não é simplesmente o tempo da
existência humana historicamente narrável. Como na experiência da mamoa sobre aqual aqui escrevi anteriormente, há um tempo a-histórico em Trás-os-Montes que continuamente espreita no reverso
do tempo empírico: um tempo mítico,
se quisermos, um tempo do sonho, um illo tempore pagão, o que for.
O Minho
é o oposto de tudo isto: na textura do espaço vivido sente-se uma contínua efervescência
temporal à medida que as realidades empíricas são vorazmente engolidas umas
pelas outras. Nas representações culturais minhotas impera a imediatez sensível
e uma certa provisoriedade: o minhoto vive para um quotidiano esfuziante e tem
uma instintiva leveza alegre que se lhe plasma no discurso cantado e
repioqueiro, um discurso dominado por códigos de uma masculinidade verbosa, vagamente
bulhenta, mas sempre superficial e descomprometida. De facto, o espaço e o
tempo minhotos dão-se mal com o silêncio, assim exigindo uma contínua
verbalização ao mesmo tempo que resistem, pela surpreendente fluidez, a essa
mesma cristalização representacional: diz-se e fala-se porque tem de se falar,
mas já não é bem isso que se pretende dizer, se é que em algum momento houve
uma verdadeira intencionalidade comunicativa. O vinho verde é, a esse respeito,
o mais acabado símbolo do Minho: eternamente incompleto na sua borbulhante imaturidade,
ruidoso ao cair no copo, vigoroso no pique mas leve no álcool, o vinho verde é
bom porque admite francamente que nunca
será o que ainda não é: um vinho
mesmo. Ao invés, é um vinho leve e festivo que, como Torga diz a certa altura, “bebe-se
e mija-se logo”. A vivência do tempo no Minho compreende, assim, tudo: passado,
presente e futuro mesclam-se numa cadência imediata, curta e amiúde frenética,
em que nada é para levar demasiado a sério, numa construção identitária cujo
traço central é a fluidez.
Tudo
isto surge a propósito de um passeio a pé ao longo de um curto trecho do rio
Vizela. A impressão geral é a de uma paisagem híbrida, mas essa é uma
caracterização que peca por defeito. Trata-se, de facto, de um hibridismo
dinâmico em que os diversos elementos que a compõem se confundem num jogo
caleidoscópico de identidades sempre parciais e nunca inteiramente assumidas. A
única constante é mesmo a natureza profusa, verde de um viço urgente, que se
insinua por todo o lado. O verde engole os passos dos passeantes a ponto de,
por vezes, os envolver por inteiro, como quando se passa pela sombra convidativa
de uma latada opulenta de parra. O milho cresce a um ritmo alucinante, com o
vento ondulando-lhe ruidosamente as folhas, enquanto os renques de árvores
marcam o rendilhado intrincado da propriedade. O rio tem algo de carnavalesco
nas máscaras que continuamente troca: umas vezes apressa-se em rápidos que
cantam em pequenos açudes, outras demora-se liricamente em frondosas ilhas de
namorados; umas vezes deixa-se bordear de laboriosos campos agrícolas, outras
torneia pesados e lúgubres edifícios industriais arruinados. Na voragem das
suas mil e uma faces, o rio Vizela nunca se deixa captar por um rótulo
representativo estável, porquanto cada uma das suas máscaras desmente as
outras. Como se concilia o idílio lírico com a ruína industrial? E como
explicar o vago tom avermelhado das águas face à ruína industrial? E o
recorrente fulgor da biodiversidade do rio, como é que ele resiste à poluição?
E a agricultura que convive com a indústria? E o lazer, e a vida noturna que
complementam a alma termal da localidade? Que síntese é possível fazer de tudo
isto quando todos estes elementos se reinventam continuamente, quando a única
permanência na paisagem é o próprio fluir das águas?
O mimo das hortas e os exíguos limites da propriedade.
Entre espinhos e flores: história de uma (des)industrialização.
A presença desordenada da indústria.
A fábrica e as flores: quem engole quem?
Crise e abandono.
Rio, ribeira ou plantas: o vigor quase excessivo da vegetação.
Cores bizarras num pequeno açude.
Entre vinhas e moinhos de água, uma velha aliança esquecida.
A imersão no verde.
Indiferente às descargas poluentes, uma cobra de água vai fazendo pela vida.
A precariedade dos percursos: o apelo de uma tasca reunindo os homens.
Pesca: um homem exibe o seu troféu.
Idílio: a Ilha dos Amores, local de evasão erótica dos termalistas.
Murmúreos do Vizela: inspiraração para poetas, pintores e músicos.
Se houve um elemento verdadeiramente fulcral na construção da(s) sociedade(s) europeia(s) ao longo do período que se estende do pós-guerra até ao final da década de oitenta esse elemento é o medo. O medo foi o verdadeiro catalisador de todos os projetos unificadores na Europa, projetos esses que se dividem em duas frentes de intervenção principais: por um lado, toda a linha que começa com a cooperação comercial entre estados e que se estende até ao esboço de uma unidade política europeia; por outro, a construção, diversamente empreendida pelos diferentes países, de um modelo social que entendemos como especificamente Europeu. Em ambas as frentes, a energia política que possibilitou a construção de edifícios institucionais tão substanciais e historicamente tão improváveis veio do medo: medo dos tanques soviéticos que estavam logo ali, estacionados em Berlim; medo das próprias animosidades internas europeias, notavelmente a rivalidade franco-alemã, que já haviam conduzido a duas guerras colossais; medo da degradação económica e das desigualdades sociais que nutrem as sublevações dos povos, particularmente quando por todo o mundo vibrava o rastilho da bandeira vermelha. Em suma, medo.
Os europeus tinham, nesses anos, e apesar de hoje olharmos esses tempos como uma espécie de era dourada (os trente glorieuses, na famosa formulação francesa, mas também o Wirtschaftswunder alemão e o miracolo economico italiano) uma consciência aguda da sua precariedade e da sua crescente insignificância num mundo que, de quintal europeu, passara a albergar diversas alternativas à narrativa progressista ocidental. Os líderes europeus de então tinham a plena noção de que navegavam entre Cila e Caríbdis, e agiam com uma clara consciência moral das suas responsabilidades que eram, essencialmente, criar razões para viver no medo, sem o perder de vista, mas estimulando a agregação e coesão das sociedades, assim mantendo viva uma narrativa de destino comum que pudesse criar uma alternativa à agressividade dos nacionalismos europeus tradicionais. De uma forma algo prosaica, consistentemente pouco inspiradora e pouco afoita a aventuras imprevisíveis a Europa manteve-se. Prudentemente, ela sobreviveu à queda dos impérios, à destruição da guerra, ao espectro das revoluções. Sobreviveu essencialmente porque soube olhar nos olhos o medo, e fê-lo com a energia que lhe advinha das suas duas principais grandes narrativas históricas: a construção comunitária continental e o modelo social europeu.
É fácil acharmos, hoje, que o facto de vivermos na região do mundo humanamente mais desenvolvida é um dado adquirido, uma coisa perfeitamente normal, uma inelutabilidade histórica: nas ruínas de Berlim em 1945, nos campos de concentração polacos, nas ditaduras ibéricas, nos Anos de Chumbo de Itália, nas revoltas estudantis francesas, na depressiva austeridade pós-imperial britânica, em todas estas crises e em muitas mais nada havia, contudo, de particularmente prometedor. Este livro pode ser lido, assim, como uma crónica da perda do medo e do abandono quase generalizado da prudência. Tony Judt é, a esse respeito, um herdeiro fiel de um certo tipo de pensamento político inglês: uma linha que passa por Edmund Burke, por exemplo, e que basicamente defende que as instituições que já sobreviveram a muitas mudanças não devem, em caso algum, ser descartadas de ânimo leve. A construção europeia e o modelo social europeu (a proteção social, os serviços públicos, a taxação progressiva, etc.) serviram-nos admiravelmente ao longo de toda uma era de medo. Mas depois perdemos o medo: os tanques soviéticos foram-se embora, as narrativas revolucionárias supostamente falharam, a prosperidade eterna parecia assegurada pelo novo capitalismo financeiro triunfante e a guerra entre europeus parecia indefinidamente remetida para o ersatz agónico dos campeonatos de futebol. A ausência do medo permitiu-nos tudo durante duas décadas loucas: no meio da exaltação generalizada do indivíduo absoluto generalizou-se a opinião de que as formas de provisão coletivas mais não eram do que um empecilho, e de que a política se resumia à libertação infinita do novo Homem privado. Identidades, sexualidades e demais subjetividades individuais tomaram de assalto o espaço público: falar de poder, desigualdade, redistribuição, coesão e coletivo simplesmente deixou de ser cool. A pulverização pós-moderna das subjetividades, assim trazida para o meio da polis, redundou num niilismo político hegemónico e num esvaziamento semântico dos estandartes ideológicos: com o tempo, fomos perdendo a capacidade de pensar e falar politicamente.
É neste ambiente atual, em que os políticos estão reduzidos a papagaios e os cidadãos a consumidores que o medo regressa e nos apanha desprevenidos. Terrorismo, crise económica, desemprego, desagregação financeira, globalização, catástrofe ecológica iminente, ameaças muito piores do que os tanques soviéticos ou a revolução vermelha, incertezas que nos atingem naquilo que mais profundamente nos define: o nosso quotidiano, a nossa mesa, as nossas poupanças, a nossa subitamente redescoberta fragilidade enquanto indivíduos insignificantes que verdadeiramente nunca deixámos de ser. As armas para enfrentar este medo têm de estar, como sempre estiveram, na reinvenção de uma linguagem coletiva: uma verdadeira linguagem que possa ser a semente da ação.
Lembrei-me vagamente da peça The Birthday Party, de Harold Pinter a propósito deste filme. De facto, há algo que o coloca no âmbito do teatro do absurdo, com personagens-tipo algo lisas, situações bizarras e inexplicadas e uma linha narrativa despojada de praticamente qualquer vestígio de contextualização. Tal como a peça, o filme gira em torno da relação entre dois torcionários e as suas vítimas: torturadores verbalmente articulados e caracteristicamente opostos, um mais elegante e sardónico e outro mais emocional e boçal, e vítimas casuais, sem relação aparente com os agressores, que procuram diversa e inutilmente resistir-lhes. Em ambos os casos a violência é gradual, afirmando-se na ação paulatinamente e ao longo de passos lógicos, de ação-reação: violência arbitrária, ainda assim, mas ridiculamente mascarada por uma suposta necessidade superior, como se ela fosse mais penosa para os torturadores do que para as vítimas, como se, por qualquer razão que desconhecemos, tivesse de ser.
Já conhecia alguns filmes do realizador Michael Haneke. Já esperava algo do género, portanto. A certa altura, ainda nas sequências iniciais do filme, a impressão vaga de uma incerteza: estas pessoas são realmente sinistras ou são simplesmente austríacas? Música clássica, lagos alpinos, casas demasiado bonitas, natureza suspeitamente idílica, vizinhos estranhamente simpáticos… Há um texto de Freud (outro austríaco) que ando para ler, Civilization and Its Discontents, que nos fala dos diversos descontentamentos da civilização: genericamente, a fragilidade do verniz de civilidade e a forma como a própria civilização pode, por outro lado, refinar a animalidade cruel que se esconde por baixo desse mesmo verniz (a esse respeito há a substituição inesperada da música clássica por death metal logo nas cenas iniciais, bem como a própria quebra dos ovos). De certo modo, é disso que o filme trata: de uma violência civilizada, de uma crueldade fruída, de simples brincadeira, em suma, de jogo. De particularmente interessante, há o convite ao expectador (nós, do outro lado da tela) a participar no jogo de tortura: o torcionário bem-parecido pisca-nos olhos, fala connosco, aposta connosco sobre a vida das vítimas, ri-se para nós. O que abre outras linhas interpretativas, que me surgiram continuamente ao longo da experiência desagradável que foi ver o filme, nomeadamente aquelas que se relacionam com a nossa própria conivência com a violência. O filme pode ser visto, deste modo, como uma metáfora mais geral para a sociedade e, nessa linha, os torcionários podem ser muita coisa, desde o estado, com o seu monopólio da violência, passando pela religião, que faz a vítima pedir perdão pela sua própria execução, até à representação artística em geral e ao cinema em particular. Com respeito a este último há a curiosa cena do rewind, momento em que definitivamente percebemos que não há nada a fazer pelas vítimas; ou mesmo a faca que fica no barco, último lampejo de esperança, e que depois não serve para nada: mais uma achega para a desorientação, a confirmação final de que não há nada a esperar de um enredo, aliás, de qualquer teleologia. Nada serve para nada, e esta convicção está intimamente ligada ao (e é característica do) espaço híper-civilizado centro-europeu: afinal, só mesmo quem tem tudo é que pode chegar a tal conclusão; só mesmo quem chegou aos pináculos do bem-estar pode sentir a necessidade de recriar metodicamente o caos, como os alemães fizeram nos campos de concentração. Digo alemães, e não nazis, porque os nazis eram efetivamente alemães; e os austríacos também são alemães, e foram, vale a pena recordar, mais entusiasticamente nazis do que os próprios nazis.
No meio de tudo isto a questão que sobra é, portanto, para que raio havemos nós de querer ver estes filmes? Que tipo de consciência atira, assim, com uma coisa destas para cima do espectador de cinema? E com que objetivo? Bem, com Haneke não é fácil responder a estas perguntas. E, contudo, não consigo não gostar do que ele faz. A forma como nos deixa maldispostos, desorientados, imbecilmente à espera de respostas, perdidos na tela como crianças e mesmo completamente zangados traduz, no fim de contas, uma suprema ironia artística. E, no fundo, não há como culpá-lo, pois ele simplesmente nos mostra o outro lado da razão: os monstros que o seu sono produz (Goya). Como dizem os ingleses, you don’t shoot the messenger.
Outra pergunta que legitimamente se pode fazer é: porque raio se deu Haneke ao trabalho de fazer um remake com atores de Hollywood? Que tal obrigar os americanos a ler legendas?
Andava há muito a
resistir ao filme. Tinha vindo com uma revista, uma oferta que, no caso, não
desejava. De facto, havia mesmo comprado a revista pela revista, e não pelo
filme que a ela vinha acoplado: uma película que desconhecia e a que
rapidamente colei o rótulo de comédia romântica insonsa. O filme andou perdido
durante largos meses por entre as séries Y do Público (em que se deu o caso
inverso, ou seja, comprei o jornal por causa dos filmes) que, de resto, se têm
tornado elas mesmas crescentemente insonsas. Aqui há dias lá acabei por ver o
filme, após esgotar tudo o que havia das séries Y, terminando com um filme do Haneke a que, compreensivelmente, também andava a resistir. E, claro, era
efetivamente uma comédia romântica, ainda que não tão insonsa assim. Ou melhor,
insonsa na medida estrita da necessidade da sua função comunicativa. Ora vejamos…
A comédia romântica
mediana americana é um produto cultural que, apesar da sua estandardizada
previsibilidade narrativa (ou, porventura, precisamente por causa dela), tem uma
força ideológica impressionante. Há invariavelmente uma série de elementos
dados à partida entre os quais, inspirado por este filme, destaco dois. Há, por
um lado, o jovem que quer redescobrir as suas origens, neste caso (e como é
muito habitual nestes filmes) com a intenção meta-narrativa de escrever um
romance. As origens são, claro, familiares, porquanto estas são as únicas que a
psique americana é, na prática, capaz de conceber. Há, depois, e por outro
lado, a difusa ética romântica que anula o espaço da sexualidade, bem como a
configuração, de inspiração marcadamente protestante, dessa ética na forma de um
caminho messiânico: a lógica da pessoa certa que para nós que virá ou que já
está à espera algures e que se procura. Ou seja, as relações românticas funcionam,
nestes filmes, como um ersatz para a
busca ou a contemplação espirituais e religiosas. Estas duas lógicas
combinam-se numa mistura curiosa de construção identitária e coerção
inconsciente do indivíduo por si mesmo: procurando-se, estas personagens
encontram apenas o que a configuração moral da sociedade já tem preparado para
elas. Assim, a mulher suburbana de meia-idade acaba por se culpar a si mesma
pelo affair do seu marido, sentindo
que a vida de mãe a tempo inteiro a deserotiza para lá de qualquer
possibilidade de hétero e auto-valorização. Ao mesmo tempo, e de uma forma que
coincide com a própria ação, ela reafirma-se como a guardiã das regras morais
familiares, privando-se de uma aventura sexual equivalente. A sua filha
adolescente, por seu lado, e apesar das críticas à mãe, mostra ter entendido
bem a mensagem ao correr para os braços de um self-made man em potência que, na devida altura, a tratará também de suburbanizar arranjando o seu próprio affair. Quanto ao catalisador de tudo aquilo, damos com ele no final
do filme, aflito porque ainda não se casou (a tanto se resumia a sua busca identitária), mas a tratar do assunto com uma
empregada de mesa daquelas que andam sempre a despejar café solúvel nas canecas
dos clientes.
A função essencial de
uma ética religiosa mantém-se, assim, através destes objetos culturais
aparentemente insignificantes e manifestamente profanos. Os americanos são, de
resto, muito bons nisto: no limite, e como bons protestantes que são, tudo para
eles é, no fundo, religioso. Nada, em última instância, é inteiramente insonso,
nenhum objeto cultural é realmente inocente: tudo quer dizer alguma coisa, e é muitas
vezes nos filmes aparentemente mais pueris que encontramos as mensagens mais eficientes.
Da primeira vez que a vi, única que estive ao pé
dela, um vento malévolo rasgava as rochas. À beira da estrada nacional uma
placa castanha indicava-a: de tantas vezes ignorar o seu apelo decidi
aceitá-lo. A subida da encosta por um trilho de pedras ladeava uma sucata. O
limiar da aldeia, triste como o abandono, era um convite ao insondável. O vento
doía-me na pele à medida que subia, o frio gelando o suor dos passos. Plantas
rasteiras para lá do estreito trilho de pedras, duras como as próprias pedras;
pesando sobre mim, a ameaça de um céu pesado, obscuro como a cúpula vazia de
uma catedral. E então vi-a. Discreta elevação tumular, calhaus soltos, ventre
telúrico, estranho mistério. Rodeando-a, apenas o tempo, eterno como as
montanhas.
Passo
muitas vezes na autoestrada que a contorna. Procuro, com o olhar, discernir um
ponto longínquo, um lugar para lá da velocidade circunstancial da minha
existência. Procuro-lhe o perfil, um seio destacado do contorno ígneo do
crepúsculo, envolto no afago agreste do vento. Ela lá está, por detrás da
estação de serviço, sinalizando a porta que se abre para o outro lado do tempo.
É
muito difícil captar num simples artigo toda a riqueza simbólica presente neste
filme documental. De facto, quase todas as sequências motivariam, assim se
quisesse, um ensaio. Tudo parte, no entanto, de uma obra artística: uma gruta
no sul de França cujas paredes se encontram cobertas de pinturas do
paleolítico, as mais antigas de que há conhecimento. O filme, com efeito,
reinterpreta essa obra numa lógica intertextual, fazendo a ponte entre os
primórdios da figuração e a arte cinematográfica. Parece descabido? Não é, de
todo. A arte é fundamentalmente una, e se podemos descortinar traços de um
proto-cinema na Caverna dos Sonhos Esquecidos (a Gruta de Chauvet, no sul
calcário de França), também podemos gracejar a propósito da prevalência dos
padrões de beleza femininos das vénus paleolíticas nas séries americanas atuais
ou tocar o Star-Sprangled Banner numa flauta de osso pré-histórica.
A cor e o traço das
gravuras surpreendem de imediato. Estamos habituados a pensar neste tipo de
arte como uns “risquitos” (efeito Vale do Coa, certamente), mas aquilo
aproxima-se bem mais de uma Capela Sistina pré-histórica, uma espécie de catedral
das cavernas. O facto de a obra documentada ser de uma beleza efectivamente
desarmante não deve eclipsar o feito do realizador do filme. Num contexto de
extremas limitações técnicas, Herzog faz um filme incrivelmente belo, um
verdadeiro retoque artístico feito nas pinturas de há dezenas de milhar de anos
atrás. Não se podendo visitar a gruta, o filme fica, para o público em geral,
não como o retrato possível, mas sim como uma aula verdadeiramente magistral
sobre o sítio: Herzog revela-se, com efeito, um intérprete à altura do local
patrimonial, guiando-nos, à medida que ele mesmo se faz guiar, pelo estonteante
labirinto da gruta. O 3D, esse, revelou finalmente para que serve. A
tridimensionalidade das pinturas, que jogam com as irregularidades das paredes
da gruta, o brilho onírico das estalagmites e a voluptuosidade dos rendilhados
calcários que tecem o ambiente mágico da gruta, o subtil jogo de chiaroscuro reflectindo-se nas paredes e
nos rostos dos homens que perturbam o silêncio do local, tudo isso ganha uma
densidade notável, pontuando assertivamente o argumento artístico de Herzog: a
sala de cinema enquanto extensão da própria gruta, o filme como leitura
criativa da realidade.
Mas
vamos por partes (pois, como disse, há tanto a dizer sobre o filme que o melhor
mesmo é ir vê-lo). A entrada inicial na gruta sugere um tema clássico, o da
descida (o Hades, os poços, Viagem ao
Centro da Terra, o subconsciente, etc). A escuridão da gruta oculta os
sonhos, sonhos esses que, desde que Freud ensaiou a sua interpretação, sabemos
serem o único caminho para os recantos mais profundos da psique. A gruta é, ela
mesma, um percurso iniciático que é preciso percorrer ao contrário, retrospectivamente,
porque a entrada principal ruiu (tanto real como metaforicamente). Os
cientistas estudam o local, estudam o labirinto dos passos individuais na
gruta, descodificam pegadas, ossos e mãos, mas o mistério inelutável de nós
mesmos e da nossa perene humanidade só se dá a conhecer a quem sabe ouvi-lo. Há
uma sequência admirável, em que alguém convida os presentes a escutarem o
silêncio da gruta e a câmara oscila, poeticamente, entre as cores quentes e o
traço puro das pinturas e os rostos quietos dos espeleólogos: homens e mulheres,
com pálidas luzes nos capacetes, a humanidade frente ao espelho mágico da arte.
As pinturas representam animais*, em todas as mitologias os símbolos operativos
das características fundamentais do ser humano: leões, ursos, hienas,
rinocerontes e também outros entretanto perdidos na bruma do tempo, como o
grande veado irlandês, o mamute ou o auroque. Deuses selvagens, sim, que mais
tarde seriam humanizados e mesmo historicisados, mas ali, artisticamente
convocados em concílio, constituem um panteão do concreto, um mito tangível,
uma religião cujos sacramentos eram consubstanciais com a vida.
E depois, há os
cavalos, alinhados como santos numa catedral gótica, mas infinitamente mais
ancestrais, mais profundos, mais significativos e incomensuravelmente mais
místicos, suspensos no tempo e no espaço, criados num perdido gesto
encantatório: a criação do espírito, da eterna e indizível interrogação que anima
o Homo Sapiens (que nome tão mal dado a uma criatura que sabe tão pouco, como
dizia um arqueólogo…). Os cavalos daquela gruta são uma linguagem sem palavras,
o arquétipo da construção simbólica. Algo difícil de referir, que deixo, como
tal, a quem sabe: Ted Hughes, The Horses,
poema aqui traduzido por mim, com um forte convite, a quem souber inglês, à
leitura do original.
Subi através dos bosques no escuro da
hora-antes-da-alva.
Ar malévolo, um silêncio de fazer geada,
Nenhuma folha, nenhum pássaro –
Um mundo moldado em geada. Saí, sobre o bosque
Onde o meu fôlego deixou tortuosas estátuas na luz
de ferro.
Mas os vales escoavam a escuridão
Até à linha dos montes – borras enegrecidas do
cinzento clareado –
Rasgando, adiante, o céu em dois. E vi os cavalos:
Enormes no cinzento denso – dez ao todo –
Imóveis megálitos. Respiravam, não se movendo,
Com crinas pendentes e cascos traseiros
inclinados,
Não fazendo um ruído.
Passei: nem um resfolegou, ou cabeceou.
Fragmentos cinzentos e silenciosos
De um mundo cinzento e silencioso.
Ouvi, vazio, no cume dos montes.
A lágrima da garça virou a sua face ao silêncio.
Lentamente, o detalhe folheado na escuridão.
Depois o sol
Laranja, vermelho, vermelho entrando em erupção
Silenciosamente, e rasgando até ao cerne e
espalhando as nuvens,
Fendeu o estreito, mostrou o azul,
E os grandes planetas pendentes –
Virei-me
Tropeçando na febre de um sonho, descendo,
Para os bosques, dos cumes tremeluzentes,
Até aos cavalos.
Ali estavam eles ainda,
Mas agora vaporando e reluzindo sob a corrente da
luz,
As suas crinas de pedra pendentes, os seus cascos
traseiros inclinados
Mexendo, derretendo, enquanto à sua volta
A geada mostrava as suas chamas. Mas eles ainda
não faziam um som
Nem um resfolegava ou patejava
As suas cabeças curvadas pacientes como os
horizontes
Sobrepondo-se aos vales, nos raios vermelhos que
alisam o chão –
No bulício das ruas atulhadas, indo pelos anos,
pelos rostos,
Possa eu ainda encontrar a minha memória em tão
solitário lugar
Entre os regatos e as nuvens vermelhas, ouvindo as
garças,
Ouvindo os horizontes durar.
* A quase exclusividade dos animais nas pinturas (de facto,
também havia símbolos abstractos, mãos em negativo, e mesmo uma representação
parcial de uma mulher) parece ter surpreendido a audiência. Escutei, a dada
altura, uma pergunta que também encontrei no IMDB: porque é que eles só desenhavam animais? Esta interrogação ilustra
bem a insensibilidade espiritual e natural (há verdadeira espiritualidade sem
natureza?) da contemporaneidade… Afinal, tão civilizados que somos, acabámos
por nos habituar a venerar carros, prédios, lojas, contas bancárias e
celebridades, ao mesmo tempo que metíamos os poucos animais que ainda
tolerávamos no jardim zoológico. Em termos de deuses ficamos, parece-me, muito pior na fotografia do que os
nossos antepassados…
Paris, Montmartre ao fim
da tarde, a noite cai gélida, colando às janelas vagos desejos que os turistas procuram
em vão guardar nas suas máquinas fotográficas digitais. A colina, encimada pela
massa irreal da Sacré-Coeur, oferece-nos a vista da cidade que se espraia em
luzes, lisa como a superfície de um lago quieto: torres de igrejas, flechas de
catedrais, a torre Eiffel rasgando sonhos no céu de pastel.
Revisito
mentalmente Montmartre pela voz de Aznavour. A canção fala-nos da arte, da
criação e da sua inebriante alegria, dos idealismos da juventude e seus vãos
sonhos de glória, e duma coisa mais vaga e indefinida que tudo permeia, vaga
como o ar e fugaz como o tempo: l’ air du
temps, o ar do tempo, algo a que os alemães (tão metafísicos que eles são)
chamam Zeitgeist, espírito do tempo.
O tempo é o verdadeiro tema da canção. Mas trata-se de um tempo especial, com
delimitadores bem marcados, um tempo transmutado em lugar, ou um lugar
conjugado no imperfeito: boémia, Montmartre.
Montmartre,
com efeito, é um passado suspenso, resquício inventado de outro tempo, sonho
ingénuo de turistas pós-modernos, pequeno delírio crepuscular da cultura,
cemitério kitsch da arte. Montmartre escreve-se no imperfeito, com a textura
rendilhada das suas ruas oferecendo-nos o prazer inconsequente dos versos
escritos pelos poêtes maudits e as
pedras da calçada as linhas limpas das telas modernistas. Paris, vista de
Montmartre é ela própria uma passante grácil e etérea, pequeno mundo
caleidoscópico, flâneuse de si mesma.
Os turistas, de máquina digital em punho, dão apenas a sequência possível à
história: passantes par excellence fazem,
de olhos no guia, um relaxado luto por uma civilização perdida, uma certa ideia
de Europa, se quisermos.
A
canção lamenta o tempo que passa, recusa a Montmartre atual, acha-a triste e
desleixada porque deixou morrer os amores-perfeitos. A poesia, de facto, só
reconhece perfeição aos amores pretéritos, um pouco como os casais que amam um
no outro as recordações da paixão que os une. Há, afinal, outra forma de amar? Não,
todo o amor é uma forma de narcisismo, ainda que partilhado. Como o amor
narcisista de Montmartre por si mesma, artística e, ainda que preteritamente miserável,
perenemente bela, orgulhosamente alçada acima das agitadas ruas parisienses.
Numa
“anatomia da memória, política e lugar” da nova Berlim K. E. Till escreve sobre
“fantasmas” e lugares de memória que são “criados (…) para dar formas a
ausências sentidas, medos e desejos que assombram a sociedade contemporânea e
através dos quais sonhos contemporâneos de futuros nacionais são imaginados”.
Este trecho, citado noutro livro, trouxe-me à memória impressões de uma viagem
à capital alemã que fiz há uns anos. De facto, Berlim é uma cidade que ilustra
bem a relação da sociedade europeia com os seus passados, entre a destruição e
a obsessão, entre a fuga e a atração. E, no entanto, o passado está sempre, em
Berlim, oculto por uma camada difusa de modernidade e pós-modernidade confusa e, por vezes, desconcertante. A memória, em Berlim, é sempre uma memória
relutante, por vezes mais empenhada em esquecer do que em evocar o passado.
Seria demasiado fácil ceder à tentação de explicar esta disposição à luz da
peculiaridade da experiência histórica alemã, mas a impressão que sobra de uma
visita à cidade é de que se trata de algo mais profundo. Talvez a inclinação para
a transitoriedade dos passados que se sobrepõem uns aos outros assim se destruindo mutuamente tenha uma origem quase geológica, evocando um nome depreciativo pelo qual a
Prússia era conhecida há uns séculos atrás: a caixa de areia da Europa. Para
lá, portanto, da composição dos terrenos em que assenta, a cidade dá
ocasionalmente a impressão de ser um deserto, ou uma praia, em que os presentes
escritos na areia desaparecem antes de se tornarem passado. Ou, como disse Karl Scheffler a esse propósito, “Berlin ist eine Stadt, verdammt dazu, ewig zu werden, niemals zu sein” (Berlim é uma cidade condenada sempre a tornar-se, nunca a ser).
A
impressão, no entanto, que um circuito das atrações individuais dá, parece ser
a contrária. A Gedächtniskirche (igreja da memória) é um memento da destruição
da guerra, com a sua mole arruinada lançando uma sombra sobre as animadas ruas
comerciais do Kurfurstendam. A demolição do Palast der Republik, antigo
parlamento da R.D.A., pode à primeira vista parecer um atentado à memória
histórica da cidade, mas a destruição desse passado é feita em nome da
recuperação de um passado ainda mais antigo, nomeadamente para proceder à
reconstrução do Stadtschloss, o palácio real dos Hohenzollern destruído durante
a 2.ª Guerra Mundial.
Demolição do Palast der Republik, com a Dom (Catedral) ao fundo
Suponho que os planeadores do mix de memória de Berlim
terão achado que a Fernsehturm, construída pelos comunistas em Berlim oriental
(que ironicamente reflete uma cruz quando o sol incide nela) e o próprio muro
já representam suficientemente esse período da história. E depois há, claro, a
representação kitsch da memória, mercadorizada para turista comprar, como os
pedacinhos de muro, os soldados soviéticos ou os gorros de pele de urso russos.
Checkpoint Charlie
O
conjunto, no entanto, é algo que impressiona precisamente pela construção e pela
certeza que transmite de que nada, naquela cidade, pretende comunicar qualquer
ilusão de permanência ou mesmo autenticidade. Berlim é um jogo pós-moderno, um
laboratório de identidades fragmentadas, em que o passado e o presente se
misturam num sonho inarticulado de futuro. Por vezes, Berlim recusa-se a
esperar por esse futuro, como no Sony Center/Potsdammer Platz. Aí edifícios
futuristas criam uma ambiência cyberpunk, sem conseguirem fazer esquecer por
completo um dos locais mais emblemáticos da cidade novecentista, posteriormente
rasgado pela fronteira entre as duas Europas e agora ressuscitado como símbolo
de uma globalização hipertecnológica.
Sony Center/Potsdammer Platz
Outras vezes simplesmente anula o tempo e
o próprio espaço, como no memorial do holocausto, perto do Reichstag (ele
próprio um interessante híbrido de passado e presente). Ambos estiveram, aquando da sua construção, envoltos em polémica, como convém a uma cidade onde se joga muito da futura identidade europeia. Ambos são, no entanto, monumentos muito bem conseguidos. No caso do parlamento, a cúpula corporiza os valores de transparência indispensáveis à democracia; percorrer o memorial dá ao visitante, à medida que o chão afunda, a sensação de caminhar no nada, num lugar sem referências, sem marcas humanas, sem esperança. Sem fantasmas, sequer.
Holocaust-Mahnmal (Memorial do Holocausto) com o Reichstag ao fundo
No
entretanto, em Berlim, os fantasmas existem, notavelmente discretos, emergindo
ocasionalmente por entre o som dos passos do visitante ecoando na calçada. E,
mesmo não sabendo alemão, é fácil reconhecer o apelido judaico e as palavras deportiert e Auschwitz.
Brückenstrasse
Bibliografia: TILL, K. E. (2005). The New Berlin: Memory, Politics, Place. Minneapolis: University of Minnesota Press
Por vezes o cinema
apenas entretém, por vezes nem isso, por vezes faz-nos pensar, outras vezes, no
entanto, inspira-nos e comove-nos, faz vibrar em nós cordas que o quotidiano
apressado tenta emudecer. La meglio
giuventù é um destes filmes: um longo intervalo no quotidiano apressado,
forçado pelos seus 366 minutos de duração, tão densos de emoção e temas fortes
que passam num ápice. Tinha-o visto há não muito tempo, mas uma viagem até
Itália entretanto feita suscitou-me a vontade de o rever.
O filme é tributário da longa tradição neorrealista
italiana, dando continuidade aos dramas familiares habituais no cinema
transalpino (e suas ramificações, porventura mais conhecidas, como O Padrinho de Copolla) e eloquentemente demostrando,
a esse respeito, a vitalidade da tradição (de facto, o único momento em que se
introduz um pouco de realismo mágico à maneira sul-americana acaba por ser
comparativamente embaraçoso: a sério, deixem isso para o Almodóvar…). De resto,
o filme é um excelente exemplo da sensibilidade humana que aprendemos a
apreciar (e a esperar) no cinema italiano. Folhetinesco no melhor sentido da
palavra, La meglio giuventù é
essencialmente um filme sobre a Itália, feito sem grandes preocupações de
inovação formal e colocando toda a ênfase naquilo que é realmente fundamental
em cinema: a arte de bem contar boas histórias. O registo vagamente épico, com
ecos homéricos entrecruzados com diversas referências culturais italianas,
consegue produzir uma síntese credível entre a história contemporânea de Itália
e o percurso das personagens. Das cheias de Florença à luta contra a máfia, das
manifestações estudantis à integração europeia, do terrorismo vermelho aos
desapontamentos da globalização, o filme é um belo e absorvente fresco de uma
juventude que efetivamente mudou o mundo, mudando-se a si própria no caminho. De
o rever sobrou-me, no entanto, a impressão reforçada de que o cinema não é
História, mas sim Arte (até porque há histórias na História que só a Arte pode
contar). E, com efeito, o filme transcende largamente a narração e revisitação
históricas para almejar a algo muito superior, que é aquela indefinível,
inefável, inenarrável chama que anima a vida a que, por falta de uma palavra
melhor, chamamos sonho.
Esta crítica poderia, portanto, começar no fim do
filme, no Cabo Norte, no sítio onde o mundo, o tempo e os homens reencontram a
sua ilusória circularidade e em que o sol da meia-noite, levemente afagando a
fria superfície do oceano para de novo se erguer traduz não um verdadeiro fim:
apenas um reinício, uma simbólica continuidade, o ténue fio tecido de memória e
esquecimento, preservação e destruição, que liga as gerações entre si.