terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Memória e Fantasmas em Berlim


       
Kaiser Wilhelm Gedächtniskirche

       Numa “anatomia da memória, política e lugar” da nova Berlim K. E. Till escreve sobre “fantasmas” e lugares de memória que são “criados (…) para dar formas a ausências sentidas, medos e desejos que assombram a sociedade contemporânea e através dos quais sonhos contemporâneos de futuros nacionais são imaginados”. Este trecho, citado noutro livro, trouxe-me à memória impressões de uma viagem à capital alemã que fiz há uns anos. De facto, Berlim é uma cidade que ilustra bem a relação da sociedade europeia com os seus passados, entre a destruição e a obsessão, entre a fuga e a atração. E, no entanto, o passado está sempre, em Berlim, oculto por uma camada difusa de modernidade e pós-modernidade confusa e, por vezes, desconcertante. A memória, em Berlim, é sempre uma memória relutante, por vezes mais empenhada em esquecer do que em evocar o passado. Seria demasiado fácil ceder à tentação de explicar esta disposição à luz da peculiaridade da experiência histórica alemã, mas a impressão que sobra de uma visita à cidade é de que se trata de algo mais profundo. Talvez a inclinação para a transitoriedade dos passados que se sobrepõem uns aos outros assim se destruindo mutuamente tenha uma origem quase geológica, evocando um nome depreciativo pelo qual a Prússia era conhecida há uns séculos atrás: a caixa de areia da Europa. Para lá, portanto, da composição dos terrenos em que assenta, a cidade dá ocasionalmente a impressão de ser um deserto, ou uma praia, em que os presentes escritos na areia desaparecem antes de se tornarem passado. Ou, como disse Karl Scheffler a esse propósito, “Berlin ist eine Stadt, verdammt dazu, ewig zu werden, niemals zu sein” (Berlim é uma cidade condenada sempre a tornar-se, nunca a ser).
        A impressão, no entanto, que um circuito das atrações individuais dá, parece ser a contrária. A Gedächtniskirche (igreja da memória) é um memento da destruição da guerra, com a sua mole arruinada lançando uma sombra sobre as animadas ruas comerciais do Kurfurstendam. A demolição do Palast der Republik, antigo parlamento da R.D.A., pode à primeira vista parecer um atentado à memória histórica da cidade, mas a destruição desse passado é feita em nome da recuperação de um passado ainda mais antigo, nomeadamente para proceder à reconstrução do Stadtschloss, o palácio real dos Hohenzollern destruído durante a 2.ª Guerra Mundial. 

Demolição do Palast der Republik, com a Dom (Catedral) ao fundo

Suponho que os planeadores do mix de memória de Berlim terão achado que a Fernsehturm, construída pelos comunistas em Berlim oriental (que ironicamente reflete uma cruz quando o sol incide nela) e o próprio muro já representam suficientemente esse período da história. E depois há, claro, a representação kitsch da memória, mercadorizada para turista comprar, como os pedacinhos de muro, os soldados soviéticos ou os gorros de pele de urso russos.

Checkpoint Charlie
      
 O conjunto, no entanto, é algo que impressiona precisamente pela construção e pela certeza que transmite de que nada, naquela cidade, pretende comunicar qualquer ilusão de permanência ou mesmo autenticidade. Berlim é um jogo pós-moderno, um laboratório de identidades fragmentadas, em que o passado e o presente se misturam num sonho inarticulado de futuro. Por vezes, Berlim recusa-se a esperar por esse futuro, como no Sony Center/Potsdammer Platz. Aí edifícios futuristas criam uma ambiência cyberpunk, sem conseguirem fazer esquecer por completo um dos locais mais emblemáticos da cidade novecentista, posteriormente rasgado pela fronteira entre as duas Europas e agora ressuscitado como símbolo de uma globalização hipertecnológica. 

Sony Center/Potsdammer Platz

Outras vezes simplesmente anula o tempo e o próprio espaço, como no memorial do holocausto, perto do Reichstag (ele próprio um interessante híbrido de passado e presente). Ambos estiveram, aquando da sua construção, envoltos em polémica, como convém a uma cidade onde se joga muito da futura identidade europeia. Ambos são, no entanto, monumentos muito bem conseguidos. No caso do parlamento, a cúpula corporiza os valores de transparência indispensáveis à democracia; percorrer o memorial dá ao visitante, à medida que o chão afunda, a sensação de caminhar no nada, num lugar sem referências, sem marcas humanas, sem esperança. Sem fantasmas, sequer.

Holocaust-Mahnmal (Memorial do Holocausto) com o Reichstag ao fundo

    No entretanto, em Berlim, os fantasmas existem, notavelmente discretos, emergindo ocasionalmente por entre o som dos passos do visitante ecoando na calçada. E, mesmo não sabendo alemão, é fácil reconhecer o apelido judaico e as palavras deportiert e Auschwitz

Brückenstrasse
     Bibliografia: TILL, K. E. (2005). The New Berlin: Memory, Politics, Place. Minneapolis: University of Minnesota Press

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

La Meglio Giuventù (A Melhor Juventude), Marco Tullio Giordana (2003)



                 Por vezes o cinema apenas entretém, por vezes nem isso, por vezes faz-nos pensar, outras vezes, no entanto, inspira-nos e comove-nos, faz vibrar em nós cordas que o quotidiano apressado tenta emudecer. La meglio giuventù é um destes filmes: um longo intervalo no quotidiano apressado, forçado pelos seus 366 minutos de duração, tão densos de emoção e temas fortes que passam num ápice. Tinha-o visto há não muito tempo, mas uma viagem até Itália entretanto feita suscitou-me a vontade de o rever.
                O filme é tributário da longa tradição neorrealista italiana, dando continuidade aos dramas familiares habituais no cinema transalpino (e suas ramificações, porventura mais conhecidas, como O Padrinho de Copolla) e eloquentemente demostrando, a esse respeito, a vitalidade da tradição (de facto, o único momento em que se introduz um pouco de realismo mágico à maneira sul-americana acaba por ser comparativamente embaraçoso: a sério, deixem isso para o Almodóvar…). De resto, o filme é um excelente exemplo da sensibilidade humana que aprendemos a apreciar (e a esperar) no cinema italiano. Folhetinesco no melhor sentido da palavra, La meglio giuventù é essencialmente um filme sobre a Itália, feito sem grandes preocupações de inovação formal e colocando toda a ênfase naquilo que é realmente fundamental em cinema: a arte de bem contar boas histórias. O registo vagamente épico, com ecos homéricos entrecruzados com diversas referências culturais italianas, consegue produzir uma síntese credível entre a história contemporânea de Itália e o percurso das personagens. Das cheias de Florença à luta contra a máfia, das manifestações estudantis à integração europeia, do terrorismo vermelho aos desapontamentos da globalização, o filme é um belo e absorvente fresco de uma juventude que efetivamente mudou o mundo, mudando-se a si própria no caminho. De o rever sobrou-me, no entanto, a impressão reforçada de que o cinema não é História, mas sim Arte (até porque há histórias na História que só a Arte pode contar). E, com efeito, o filme transcende largamente a narração e revisitação históricas para almejar a algo muito superior, que é aquela indefinível, inefável, inenarrável chama que anima a vida a que, por falta de uma palavra melhor, chamamos sonho.
                Esta crítica poderia, portanto, começar no fim do filme, no Cabo Norte, no sítio onde o mundo, o tempo e os homens reencontram a sua ilusória circularidade e em que o sol da meia-noite, levemente afagando a fria superfície do oceano para de novo se erguer traduz não um verdadeiro fim: apenas um reinício, uma simbólica continuidade, o ténue fio tecido de memória e esquecimento, preservação e destruição, que liga as gerações entre si.