Se houve um elemento verdadeiramente fulcral na construção da(s) sociedade(s) europeia(s) ao longo do período que se estende do pós-guerra até ao final da década de oitenta esse elemento é o medo. O medo foi o verdadeiro catalisador de todos os projetos unificadores na Europa, projetos esses que se dividem em duas frentes de intervenção principais: por um lado, toda a linha que começa com a cooperação comercial entre estados e que se estende até ao esboço de uma unidade política europeia; por outro, a construção, diversamente empreendida pelos diferentes países, de um modelo social que entendemos como especificamente Europeu. Em ambas as frentes, a energia política que possibilitou a construção de edifícios institucionais tão substanciais e historicamente tão improváveis veio do medo: medo dos tanques soviéticos que estavam logo ali, estacionados em Berlim; medo das próprias animosidades internas europeias, notavelmente a rivalidade franco-alemã, que já haviam conduzido a duas guerras colossais; medo da degradação económica e das desigualdades sociais que nutrem as sublevações dos povos, particularmente quando por todo o mundo vibrava o rastilho da bandeira vermelha. Em suma, medo.
Os europeus tinham, nesses anos, e apesar de hoje olharmos esses tempos como uma espécie de era dourada (os trente glorieuses, na famosa formulação francesa, mas também o Wirtschaftswunder alemão e o miracolo economico italiano) uma consciência aguda da sua precariedade e da sua crescente insignificância num mundo que, de quintal europeu, passara a albergar diversas alternativas à narrativa progressista ocidental. Os líderes europeus de então tinham a plena noção de que navegavam entre Cila e Caríbdis, e agiam com uma clara consciência moral das suas responsabilidades que eram, essencialmente, criar razões para viver no medo, sem o perder de vista, mas estimulando a agregação e coesão das sociedades, assim mantendo viva uma narrativa de destino comum que pudesse criar uma alternativa à agressividade dos nacionalismos europeus tradicionais. De uma forma algo prosaica, consistentemente pouco inspiradora e pouco afoita a aventuras imprevisíveis a Europa manteve-se. Prudentemente, ela sobreviveu à queda dos impérios, à destruição da guerra, ao espectro das revoluções. Sobreviveu essencialmente porque soube olhar nos olhos o medo, e fê-lo com a energia que lhe advinha das suas duas principais grandes narrativas históricas: a construção comunitária continental e o modelo social europeu.
É fácil acharmos, hoje, que o facto de vivermos na região do mundo humanamente mais desenvolvida é um dado adquirido, uma coisa perfeitamente normal, uma inelutabilidade histórica: nas ruínas de Berlim em 1945, nos campos de concentração polacos, nas ditaduras ibéricas, nos Anos de Chumbo de Itália, nas revoltas estudantis francesas, na depressiva austeridade pós-imperial britânica, em todas estas crises e em muitas mais nada havia, contudo, de particularmente prometedor. Este livro pode ser lido, assim, como uma crónica da perda do medo e do abandono quase generalizado da prudência. Tony Judt é, a esse respeito, um herdeiro fiel de um certo tipo de pensamento político inglês: uma linha que passa por Edmund Burke, por exemplo, e que basicamente defende que as instituições que já sobreviveram a muitas mudanças não devem, em caso algum, ser descartadas de ânimo leve. A construção europeia e o modelo social europeu (a proteção social, os serviços públicos, a taxação progressiva, etc.) serviram-nos admiravelmente ao longo de toda uma era de medo. Mas depois perdemos o medo: os tanques soviéticos foram-se embora, as narrativas revolucionárias supostamente falharam, a prosperidade eterna parecia assegurada pelo novo capitalismo financeiro triunfante e a guerra entre europeus parecia indefinidamente remetida para o ersatz agónico dos campeonatos de futebol. A ausência do medo permitiu-nos tudo durante duas décadas loucas: no meio da exaltação generalizada do indivíduo absoluto generalizou-se a opinião de que as formas de provisão coletivas mais não eram do que um empecilho, e de que a política se resumia à libertação infinita do novo Homem privado. Identidades, sexualidades e demais subjetividades individuais tomaram de assalto o espaço público: falar de poder, desigualdade, redistribuição, coesão e coletivo simplesmente deixou de ser cool. A pulverização pós-moderna das subjetividades, assim trazida para o meio da polis, redundou num niilismo político hegemónico e num esvaziamento semântico dos estandartes ideológicos: com o tempo, fomos perdendo a capacidade de pensar e falar politicamente.
É neste ambiente atual, em que os políticos estão reduzidos a papagaios e os cidadãos a consumidores que o medo regressa e nos apanha desprevenidos. Terrorismo, crise económica, desemprego, desagregação financeira, globalização, catástrofe ecológica iminente, ameaças muito piores do que os tanques soviéticos ou a revolução vermelha, incertezas que nos atingem naquilo que mais profundamente nos define: o nosso quotidiano, a nossa mesa, as nossas poupanças, a nossa subitamente redescoberta fragilidade enquanto indivíduos insignificantes que verdadeiramente nunca deixámos de ser. As armas para enfrentar este medo têm de estar, como sempre estiveram, na reinvenção de uma linguagem coletiva: uma verdadeira linguagem que possa ser a semente da ação.