sexta-feira, 29 de junho de 2012

Tony Judt, Ill Fares the Land (Um Tratado Sobre os Nossos Atuais Descontentamentos), 2010


           Se houve um elemento verdadeiramente fulcral na construção da(s) sociedade(s) europeia(s) ao longo do período que se estende do pós-guerra até ao final da década de oitenta esse elemento é o medo. O medo foi o verdadeiro catalisador de todos os projetos unificadores na Europa, projetos esses que se dividem em duas frentes de intervenção principais: por um lado, toda a linha que começa com a cooperação comercial entre estados e que se estende até ao esboço de uma unidade política europeia; por outro, a construção, diversamente empreendida pelos diferentes países, de um modelo social que entendemos como especificamente Europeu. Em ambas as frentes, a energia política que possibilitou a construção de edifícios institucionais tão substanciais e historicamente tão improváveis veio do medo: medo dos tanques soviéticos que estavam logo ali, estacionados em Berlim; medo das próprias animosidades internas europeias, notavelmente a rivalidade franco-alemã, que já haviam conduzido a duas guerras colossais; medo da degradação económica e das desigualdades sociais que nutrem as sublevações dos povos, particularmente quando por todo o mundo vibrava o rastilho da bandeira vermelha. Em suma, medo. 
              Os europeus tinham, nesses anos, e apesar de hoje olharmos esses tempos como uma espécie de era dourada (os trente glorieuses, na famosa formulação francesa, mas também o Wirtschaftswunder alemão e o miracolo economico italiano) uma consciência aguda da sua precariedade e da sua crescente insignificância num mundo que, de quintal europeu, passara a albergar diversas alternativas à narrativa progressista ocidental. Os líderes europeus de então tinham a plena noção de que navegavam entre Cila e Caríbdis, e agiam com uma clara consciência moral das suas responsabilidades que eram, essencialmente, criar razões para viver no medo, sem o perder de vista, mas estimulando a agregação e coesão das sociedades, assim mantendo viva uma narrativa de destino comum que pudesse criar uma alternativa à agressividade dos nacionalismos europeus tradicionais. De uma forma algo prosaica, consistentemente pouco inspiradora e pouco afoita a aventuras imprevisíveis a Europa manteve-se. Prudentemente, ela sobreviveu à queda dos impérios, à destruição da guerra, ao espectro das revoluções. Sobreviveu essencialmente porque soube olhar nos olhos o medo, e fê-lo com a energia que lhe advinha das suas duas principais grandes narrativas históricas: a construção comunitária continental e o modelo social europeu. 
            É fácil acharmos, hoje, que o facto de vivermos na região do mundo humanamente mais desenvolvida é um dado adquirido, uma coisa perfeitamente normal, uma inelutabilidade histórica: nas ruínas de Berlim em 1945, nos campos de concentração polacos, nas ditaduras ibéricas, nos Anos de Chumbo de Itália, nas revoltas estudantis francesas, na depressiva austeridade pós-imperial britânica, em todas estas crises e em muitas mais nada havia, contudo, de particularmente prometedor. Este livro pode ser lido, assim, como uma crónica da perda do medo e do abandono quase generalizado da prudência. Tony Judt é, a esse respeito, um herdeiro fiel de um certo tipo de pensamento político inglês: uma linha que passa por Edmund Burke, por exemplo, e que basicamente defende que as instituições que já sobreviveram a muitas mudanças não devem, em caso algum, ser descartadas de ânimo leve. A construção europeia e o modelo social europeu (a proteção social, os serviços públicos, a taxação progressiva, etc.) serviram-nos admiravelmente ao longo de toda uma era de medo. Mas depois perdemos o medo: os tanques soviéticos foram-se embora, as narrativas revolucionárias supostamente falharam, a prosperidade eterna parecia assegurada pelo novo capitalismo financeiro triunfante e a guerra entre europeus parecia indefinidamente remetida para o ersatz agónico dos campeonatos de futebol. A ausência do medo permitiu-nos tudo durante duas décadas loucas: no meio da exaltação generalizada do indivíduo absoluto generalizou-se a opinião de que as formas de provisão coletivas mais não eram do que um empecilho, e de que a política se resumia à libertação infinita do novo Homem privado. Identidades, sexualidades e demais subjetividades individuais tomaram de assalto o espaço público: falar de poder, desigualdade, redistribuição, coesão e coletivo simplesmente deixou de ser cool. A pulverização pós-moderna das subjetividades, assim trazida para o meio da polis, redundou num niilismo político hegemónico e num esvaziamento semântico dos estandartes ideológicos: com o tempo, fomos perdendo a capacidade de pensar e falar politicamente. 
          É neste ambiente atual, em que os políticos estão reduzidos a papagaios e os cidadãos a consumidores que o medo regressa e nos apanha desprevenidos. Terrorismo, crise económica, desemprego, desagregação financeira, globalização, catástrofe ecológica iminente, ameaças muito piores do que os tanques soviéticos ou a revolução vermelha, incertezas que nos atingem naquilo que mais profundamente nos define: o nosso quotidiano, a nossa mesa, as nossas poupanças, a nossa subitamente redescoberta fragilidade enquanto indivíduos insignificantes que verdadeiramente nunca deixámos de ser. As armas para enfrentar este medo têm de estar, como sempre estiveram, na reinvenção de uma linguagem coletiva: uma verdadeira linguagem que possa ser a semente da ação.  
 

terça-feira, 26 de junho de 2012

Funny Games (Brincadeiras Perigosas), Michael Haneke (1997)


          
              Lembrei-me vagamente da peça The Birthday Party, de Harold Pinter a propósito deste filme. De facto, há algo que o coloca no âmbito do teatro do absurdo, com personagens-tipo algo lisas, situações bizarras e inexplicadas e uma linha narrativa despojada de praticamente qualquer vestígio de contextualização. Tal como a peça, o filme gira em torno da relação entre dois torcionários e as suas vítimas: torturadores verbalmente articulados e caracteristicamente opostos, um mais elegante e sardónico e outro mais emocional e boçal, e vítimas casuais, sem relação aparente com os agressores, que procuram diversa e inutilmente resistir-lhes. Em ambos os casos a violência é gradual, afirmando-se na ação paulatinamente e ao longo de passos lógicos, de ação-reação: violência arbitrária, ainda assim, mas ridiculamente mascarada por uma suposta necessidade superior, como se ela fosse mais penosa para os torturadores do que para as vítimas, como se, por qualquer razão que desconhecemos, tivesse de ser. 
           Já conhecia alguns filmes do realizador Michael Haneke. Já esperava algo do género, portanto. A certa altura, ainda nas sequências iniciais do filme, a impressão vaga de uma incerteza: estas pessoas são realmente sinistras ou são simplesmente austríacas? Música clássica, lagos alpinos, casas demasiado bonitas, natureza suspeitamente idílica, vizinhos estranhamente simpáticos… Há um texto de Freud (outro austríaco) que ando para ler, Civilization and Its Discontents, que nos fala dos diversos descontentamentos da civilização: genericamente, a fragilidade do verniz de civilidade e a forma como a própria civilização pode, por outro lado, refinar a animalidade cruel que se esconde por baixo desse mesmo verniz (a esse respeito há a substituição inesperada da música clássica por death metal logo nas cenas iniciais, bem como a própria quebra dos ovos). De certo modo, é disso que o filme trata: de uma violência civilizada, de uma crueldade fruída, de simples brincadeira, em suma, de jogo. De particularmente interessante, há o convite ao expectador (nós, do outro lado da tela) a participar no jogo de tortura: o torcionário bem-parecido pisca-nos olhos, fala connosco, aposta connosco sobre a vida das vítimas, ri-se para nós. O que abre outras linhas interpretativas, que me surgiram continuamente ao longo da experiência desagradável que foi ver o filme, nomeadamente aquelas que se relacionam com a nossa própria conivência com a violência. O filme pode ser visto, deste modo, como uma metáfora mais geral para a sociedade e, nessa linha, os torcionários podem ser muita coisa, desde o estado, com o seu monopólio da violência, passando pela religião, que faz a vítima pedir perdão pela sua própria execução, até à representação artística em geral e ao cinema em particular. Com respeito a este último há a curiosa cena do rewind, momento em que definitivamente percebemos que não há nada a fazer pelas vítimas; ou mesmo a faca que fica no barco, último lampejo de esperança, e que depois não serve para nada: mais uma achega para a desorientação, a confirmação final de que não há nada a esperar de um enredo, aliás, de qualquer teleologia. Nada serve para nada, e esta convicção está intimamente ligada ao (e é característica do) espaço híper-civilizado centro-europeu: afinal, só mesmo quem tem tudo é que pode chegar a tal conclusão; só mesmo quem chegou aos pináculos do bem-estar pode sentir a necessidade de recriar metodicamente o caos, como os alemães fizeram nos campos de concentração. Digo alemães, e não nazis, porque os nazis eram efetivamente alemães; e os austríacos também são alemães, e foram, vale a pena recordar, mais entusiasticamente nazis do que os próprios nazis. 
           No meio de tudo isto a questão que sobra é, portanto, para que raio havemos nós de querer ver estes filmes? Que tipo de consciência atira, assim, com uma coisa destas para cima do espectador de cinema? E com que objetivo? Bem, com Haneke não é fácil responder a estas perguntas. E, contudo, não consigo não gostar do que ele faz. A forma como nos deixa maldispostos, desorientados, imbecilmente à espera de respostas, perdidos na tela como crianças e mesmo completamente zangados traduz, no fim de contas, uma suprema ironia artística. E, no fundo, não há como culpá-lo, pois ele simplesmente nos mostra o outro lado da razão: os monstros que o seu sono produz (Goya). Como dizem os ingleses, you don’t shoot the messenger

              Outra pergunta que legitimamente se pode fazer é: porque raio se deu Haneke ao trabalho de fazer um remake com atores de Hollywood? Que tal obrigar os americanos a ler legendas?


segunda-feira, 25 de junho de 2012

In the Land of Women (No Mundo das Mulheres), Jon Kasdan (2007)


Andava há muito a resistir ao filme. Tinha vindo com uma revista, uma oferta que, no caso, não desejava. De facto, havia mesmo comprado a revista pela revista, e não pelo filme que a ela vinha acoplado: uma película que desconhecia e a que rapidamente colei o rótulo de comédia romântica insonsa. O filme andou perdido durante largos meses por entre as séries Y do Público (em que se deu o caso inverso, ou seja, comprei o jornal por causa dos filmes) que, de resto, se têm tornado elas mesmas crescentemente insonsas. Aqui há dias lá acabei por ver o filme, após esgotar tudo o que havia das séries Y, terminando com um filme do Haneke a que, compreensivelmente, também andava a resistir. E, claro, era efetivamente uma comédia romântica, ainda que não tão insonsa assim. Ou melhor, insonsa na medida estrita da necessidade da sua função comunicativa. Ora vejamos…
A comédia romântica mediana americana é um produto cultural que, apesar da sua estandardizada previsibilidade narrativa (ou, porventura, precisamente por causa dela), tem uma força ideológica impressionante. Há invariavelmente uma série de elementos dados à partida entre os quais, inspirado por este filme, destaco dois. Há, por um lado, o jovem que quer redescobrir as suas origens, neste caso (e como é muito habitual nestes filmes) com a intenção meta-narrativa de escrever um romance. As origens são, claro, familiares, porquanto estas são as únicas que a psique americana é, na prática, capaz de conceber. Há, depois, e por outro lado, a difusa ética romântica que anula o espaço da sexualidade, bem como a configuração, de inspiração marcadamente protestante, dessa ética na forma de um caminho messiânico: a lógica da pessoa certa que para nós que virá ou que já está à espera algures e que se procura. Ou seja, as relações românticas funcionam, nestes filmes, como um ersatz para a busca ou a contemplação espirituais e religiosas. Estas duas lógicas combinam-se numa mistura curiosa de construção identitária e coerção inconsciente do indivíduo por si mesmo: procurando-se, estas personagens encontram apenas o que a configuração moral da sociedade já tem preparado para elas. Assim, a mulher suburbana de meia-idade acaba por se culpar a si mesma pelo affair do seu marido, sentindo que a vida de mãe a tempo inteiro a deserotiza para lá de qualquer possibilidade de hétero e auto-valorização. Ao mesmo tempo, e de uma forma que coincide com a própria ação, ela reafirma-se como a guardiã das regras morais familiares, privando-se de uma aventura sexual equivalente. A sua filha adolescente, por seu lado, e apesar das críticas à mãe, mostra ter entendido bem a mensagem ao correr para os braços de um self-made man em potência que, na devida altura, a tratará também de suburbanizar arranjando o seu próprio affair. Quanto ao catalisador de tudo aquilo, damos com ele no final do filme, aflito porque ainda não se casou (a tanto se resumia a sua busca identitária), mas a tratar do assunto com uma empregada de mesa daquelas que andam sempre a despejar café solúvel nas canecas dos clientes.
A função essencial de uma ética religiosa mantém-se, assim, através destes objetos culturais aparentemente insignificantes e manifestamente profanos. Os americanos são, de resto, muito bons nisto: no limite, e como bons protestantes que são, tudo para eles é, no fundo, religioso. Nada, em última instância, é inteiramente insonso, nenhum objeto cultural é realmente inocente: tudo quer dizer alguma coisa, e é muitas vezes nos filmes aparentemente mais pueris que encontramos as mensagens mais eficientes.