segunda-feira, 7 de março de 2011

Considerações a propósito dos caretos de Podence


         O turismo pode fossilizar, através de uma certa romantização, a cultura de um determinado local ou comunidade, transformando-os numa espécie de museu ou parque temático. A consagração de uma “geografia de atracções” e a criação de “parques temáticos etnográficos” têm esse efeito perverso de desvitalizar a cultura, precisamente pela obsessão na sua conservação.
      É mais ou menos isto que retiro dum parágrafo do livro “Issues in Cultural Tourism Studies”, de Melanie K. Smith, que ando a ler como parte de um safari académico com vista à preparação da minha dissertação de mestrado. A experiência permite-me, em simultâneo, um contraponto interessante: estive, ontem, em Podence, a propósito do Carnaval dos Caretos.
         Os caretos de Podence (na foto) são uma reminiscência comunitária de um certo paganismo transmontano que assume, ainda hoje, muitas formas. Trata-se, tradicionalmente, de um rito de passagem, em que os rapazes, mascarados, corriam a aldeia em busca de mulheres solteiras, com o objectivo de as chocalhar. Há vários Entrudos deste género em Trás-os-Montes, Beiras e Galiza, mas o de Podence tem sido, nos últimos anos, amplamente divulgado enquanto objecto de interesse turístico. As linhas estruturantes dessa divulgação radicam nas noções de genuinidade (Carnaval Genuíno, lê-se nos cartazes), sendo que à crescente popularidade deste evento não será certamente estranha alguma espécie de reacção àquilo que muitos vêm como uma espécie de neo-colonialismo invertido por parte do Brasil. De facto, cresce alguma irritação com o modelo que pretende transformar, contra todas as evidências (não só de índole cultural como também de natureza climatérica), as nossas cidades ainda invernais em pequenos Rios de Janeiro.
       Um visitante poderia então, romântica e ingenuamente, esperar uma Podence virginal, aninhada no Trás-os-Montes profundo, chocalhando furiosamente em honra dos antepassados. Se fosse um pouco menos ingénuo e mais realista, poderia compreender que as barraquinhas de venda de produtos tradicionais são uma saudável concessão ao moderno capitalismo (afinal, os aldeões também precisam de viver). Após um passeio pela aldeia, poderia sobrevir um certo desapontamento: tudo isto é divertidíssimo, é certo, mas então e esta nítida impressão de que os caretos chocalham para turista ver?
       E aqui, a inocência deveria cair. Nesse momento, um visitante pouco inteligente sentir-se-ia algo defraudado. O momento mais interessante para um visitante mais informado e reflexivo estaria, no entanto, ainda para chegar: o instante em que o fatigado careto tira o colorido fato de lã, guarda a máscara e entra no BMW para regressar ao Porto. OK, e então? Os caretos também precisam de ganhar a vida, e as oportunidades de emprego no interior não são as melhores…
        Se o turismo cultural é uma forma de desvendar e desenvolver identidades (e não apenas um afago existencial a um turista que chega, essencialmente, para confirmar os seus próprios preconceitos), então posso considerar o Carnaval de Podence um bom exemplo dessa tendência. Se viajamos para aprender a fazer perguntas sobre o Outro, e não apenas para construirmos respostas apressadas sobre nós próprios, então pode ser que aprendamos algo em Podence. O que representa melhor o Trás-os-Montes actual: a suposta genuinidade de um rito ancestral ou a participação, aos fins-de-semana, na vida da terra de pessoas que trabalham no litoral? Existe uma tensão entre o antigo e o moderno, ou é o moderno que se define e constrói com recurso ao antigo? Qual é a verdadeira geografia de Trás-os-Montes: o proverbial isolamento, moderna e mediaticamente revisitado em estradas inadequadas e caminhos-de-ferro encerrados, ou a revisitação pendular dos filhos da terra que regressam, nas férias e nos fins-de-semana, para fazer coisas outrora inimagináveis? O que é, então, a cultura: um conjunto de tradições semi-esquecidas e marginalizadas, ou o tecido social vivo que flui e reflui, de uma forma cada vez mais móvel e imprevisível?
                 Serão estes caretos pós-modernos menos genuínos? Sou eu menos transmontano do que um pastor de uma qualquer aldeia do distrito de Bragança? Não me parece.


                    Bibliografia: SMITH, Melanie K. (2009). Issues in Cultural Tourism Studies. Abingdon: Routledge

2 comentários:

  1. Saúdo a tua reflexão! No entanto, fica uma pergunta por fazer: chegaste a te mascarar?
    Assim já seria do âmbito do turismo experiencial. No entanto, não sei como as raparigas solteiras da aldeia encarariam essa invasão de Outros a chocalha-las. Ou pior, como seria a reacção dos rapazes? Essoutro que experimenta ainda estaria sujeito a umas pauladas!

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  2. Olá, Miguel. Não, não cheguei a fazer o upgrade para o turismo experiencial. Na prática, já há poucas raparigas solteiras na aldeia (e rapazes também), pelo que a esmagadora maioria das chocalhadas são também Outras. A aldeia acaba, assim, por ser o local de encontro e troca de alteridades (não é isso, afinal, o Carnaval?), sendo que há muito que, e é isso que pretendo dizer no post, a festa ultrapassou as suas premissas tradicionais. De resto, a sociedade evoluiu, também em Podence, e agora já se chocalha mulheres casadas, divorciadas, viúvas e mesmo homens. Sinais dos tempos...

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