Paris, Montmartre ao fim
da tarde, a noite cai gélida, colando às janelas vagos desejos que os turistas procuram
em vão guardar nas suas máquinas fotográficas digitais. A colina, encimada pela
massa irreal da Sacré-Coeur, oferece-nos a vista da cidade que se espraia em
luzes, lisa como a superfície de um lago quieto: torres de igrejas, flechas de
catedrais, a torre Eiffel rasgando sonhos no céu de pastel.
Revisito
mentalmente Montmartre pela voz de Aznavour. A canção fala-nos da arte, da
criação e da sua inebriante alegria, dos idealismos da juventude e seus vãos
sonhos de glória, e duma coisa mais vaga e indefinida que tudo permeia, vaga
como o ar e fugaz como o tempo: l’ air du
temps, o ar do tempo, algo a que os alemães (tão metafísicos que eles são)
chamam Zeitgeist, espírito do tempo.
O tempo é o verdadeiro tema da canção. Mas trata-se de um tempo especial, com
delimitadores bem marcados, um tempo transmutado em lugar, ou um lugar
conjugado no imperfeito: boémia, Montmartre.
Montmartre,
com efeito, é um passado suspenso, resquício inventado de outro tempo, sonho
ingénuo de turistas pós-modernos, pequeno delírio crepuscular da cultura,
cemitério kitsch da arte. Montmartre escreve-se no imperfeito, com a textura
rendilhada das suas ruas oferecendo-nos o prazer inconsequente dos versos
escritos pelos poêtes maudits e as
pedras da calçada as linhas limpas das telas modernistas. Paris, vista de
Montmartre é ela própria uma passante grácil e etérea, pequeno mundo
caleidoscópico, flâneuse de si mesma.
Os turistas, de máquina digital em punho, dão apenas a sequência possível à
história: passantes par excellence fazem,
de olhos no guia, um relaxado luto por uma civilização perdida, uma certa ideia
de Europa, se quisermos.
A
canção lamenta o tempo que passa, recusa a Montmartre atual, acha-a triste e
desleixada porque deixou morrer os amores-perfeitos. A poesia, de facto, só
reconhece perfeição aos amores pretéritos, um pouco como os casais que amam um
no outro as recordações da paixão que os une. Há, afinal, outra forma de amar? Não,
todo o amor é uma forma de narcisismo, ainda que partilhado. Como o amor
narcisista de Montmartre por si mesma, artística e, ainda que preteritamente miserável,
perenemente bela, orgulhosamente alçada acima das agitadas ruas parisienses.
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