Num
livro de que já falei neste blogue, Portugal
– O Sabor da Terra, é a certa altura introduzida a distinção entre o tempo
curto e o tempo longo. Esta divisão é interessante na medida em que nos permite
entender o espaço e o tempo de uma forma mutuamente implicada. De facto, o
tempo plasma-se no espaço, assim o criando na exata medida em que ele próprio é
espacialmente representado.
O território
português, na representação cultural que nos permite, enquanto povo, apropriá-lo,
pode portanto ser pensado à luz desta forma dicotómica de representar o tempo. O
tempo longo encontramo-lo assim, notavelmente, em Trás-os-Montes: na paisagem
agreste, muitas vezes dura e amiúde desumanizada, nas pedras cifradas que, principalmente
no distrito de Vila Real, compõem o espaço do olhar e dos passos humanos, ou (e
referimo-nos aqui à compleição mais mimosa do distrito de Bragança) na imensidão
inefável da paisagem, no largo e lento rendilhado dos campos que da elevada singeleza
de um santuário roqueiro se lobriga. Nas diversas formas espaciais (espaço natural, espaço público, espaço social,
etc.) que o tempo plasmou em Trás-os-Montes nota-se, portanto, uma cadência
lenta, uma reverberação primordial de um tempo que não é simplesmente o tempo da
existência humana historicamente narrável. Como na experiência da mamoa sobre aqual aqui escrevi anteriormente, há um tempo a-histórico em Trás-os-Montes que continuamente espreita no reverso
do tempo empírico: um tempo mítico,
se quisermos, um tempo do sonho, um illo tempore pagão, o que for.
O Minho
é o oposto de tudo isto: na textura do espaço vivido sente-se uma contínua efervescência
temporal à medida que as realidades empíricas são vorazmente engolidas umas
pelas outras. Nas representações culturais minhotas impera a imediatez sensível
e uma certa provisoriedade: o minhoto vive para um quotidiano esfuziante e tem
uma instintiva leveza alegre que se lhe plasma no discurso cantado e
repioqueiro, um discurso dominado por códigos de uma masculinidade verbosa, vagamente
bulhenta, mas sempre superficial e descomprometida. De facto, o espaço e o
tempo minhotos dão-se mal com o silêncio, assim exigindo uma contínua
verbalização ao mesmo tempo que resistem, pela surpreendente fluidez, a essa
mesma cristalização representacional: diz-se e fala-se porque tem de se falar,
mas já não é bem isso que se pretende dizer, se é que em algum momento houve
uma verdadeira intencionalidade comunicativa. O vinho verde é, a esse respeito,
o mais acabado símbolo do Minho: eternamente incompleto na sua borbulhante imaturidade,
ruidoso ao cair no copo, vigoroso no pique mas leve no álcool, o vinho verde é
bom porque admite francamente que nunca
será o que ainda não é: um vinho
mesmo. Ao invés, é um vinho leve e festivo que, como Torga diz a certa altura, “bebe-se
e mija-se logo”. A vivência do tempo no Minho compreende, assim, tudo: passado,
presente e futuro mesclam-se numa cadência imediata, curta e amiúde frenética,
em que nada é para levar demasiado a sério, numa construção identitária cujo
traço central é a fluidez.
Tudo
isto surge a propósito de um passeio a pé ao longo de um curto trecho do rio
Vizela. A impressão geral é a de uma paisagem híbrida, mas essa é uma
caracterização que peca por defeito. Trata-se, de facto, de um hibridismo
dinâmico em que os diversos elementos que a compõem se confundem num jogo
caleidoscópico de identidades sempre parciais e nunca inteiramente assumidas. A
única constante é mesmo a natureza profusa, verde de um viço urgente, que se
insinua por todo o lado. O verde engole os passos dos passeantes a ponto de,
por vezes, os envolver por inteiro, como quando se passa pela sombra convidativa
de uma latada opulenta de parra. O milho cresce a um ritmo alucinante, com o
vento ondulando-lhe ruidosamente as folhas, enquanto os renques de árvores
marcam o rendilhado intrincado da propriedade. O rio tem algo de carnavalesco
nas máscaras que continuamente troca: umas vezes apressa-se em rápidos que
cantam em pequenos açudes, outras demora-se liricamente em frondosas ilhas de
namorados; umas vezes deixa-se bordear de laboriosos campos agrícolas, outras
torneia pesados e lúgubres edifícios industriais arruinados. Na voragem das
suas mil e uma faces, o rio Vizela nunca se deixa captar por um rótulo
representativo estável, porquanto cada uma das suas máscaras desmente as
outras. Como se concilia o idílio lírico com a ruína industrial? E como
explicar o vago tom avermelhado das águas face à ruína industrial? E o
recorrente fulgor da biodiversidade do rio, como é que ele resiste à poluição?
E a agricultura que convive com a indústria? E o lazer, e a vida noturna que
complementam a alma termal da localidade? Que síntese é possível fazer de tudo
isto quando todos estes elementos se reinventam continuamente, quando a única
permanência na paisagem é o próprio fluir das águas?
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O mimo das hortas e os exíguos limites da propriedade. |
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Entre espinhos e flores: história de uma (des)industrialização. |
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A presença desordenada da indústria. |
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A fábrica e as flores: quem engole quem? |
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Crise e abandono. |
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Rio, ribeira ou plantas: o vigor quase excessivo da vegetação. |
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Cores bizarras num pequeno açude. |
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Entre vinhas e moinhos de água, uma velha aliança esquecida. |
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A imersão no verde. |
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Indiferente às descargas poluentes, uma cobra de água vai fazendo pela vida. |
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A precariedade dos percursos: o apelo de uma tasca reunindo os homens. |
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Pesca: um homem exibe o seu troféu. |
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Idílio: a Ilha dos Amores, local de evasão erótica dos termalistas. |
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Murmúreos do Vizela: inspiraração para poetas, pintores e músicos. |
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Tarde de Domingo. |
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