Após ver dois filmes de ficção científica relativamente recentes fiquei com a impressão de que o imperativo do presente se abateu igualmente sobre um género que tradicionalmente mergulhava na especulação, antecipação e/ou crítica sobre o futuro. Tanto Uma História de Amor (Her, no título original) como A Ilha (The Island) são ficções científicas apenas num sentido algo restrito, porquanto em ambos os casos o que se retrata é fundamentalmente o mundo que já hoje habitamos.
(Um pensamento dissonante atravessa-me enquanto releio as linhas anteriores. Não será aquilo que aponto a estes dois filmes uma característica fundamental da ficção científica, porventura de qualquer ficção? Provavelmente toda a ficção obedece ao imperativo do presente, quiçá o presente transcenda todos os outros imperativos no sentido em que constitui, por si próprio, o único universo experiencial que existe e, por conseguinte, o único lugar narrativo que o produtor de ficções conhece. Assim, e mesmo quando finge fugir do aqui e do agora, mesmo quando se esconde por detrás de uma máscara de escapismo e nos leva para tempos e lugares distantes, é sempre do presente que o narrador de um filme ou de um livro nos fala.)
Mas regressemos, ainda assim, ao uso convencional e não problematizado dos termos. Ainda que A Ilha possa parecer superficialmente mais futurista (a existência num mundo asséptico, os hologramas omnipresentes e os transportes individuais voadores remetem para um imaginário visual mais característico do género, particularmente na sua vertente mais distópica), a verdade é que a tecnologia que subjaz ao enredo da história (a clonagem) existe na atualidade praticamente nos mesmos moldes e com o mesmo potencial que o filme retrata. Uma História de Amor é, ao invés, visualmente mais consistente com o nosso mundo, apresentando mesmo toques retro, principalmente ao nível da moda. Não quero, francamente, viver num futuro em que os homens usem aquelas calças, ainda que perceba que o corte efeminado das mesmas serve precisamente para enfatizar o caráter sensível, terno e vagamente andrógino da personagem principal; enfim, o termo certo é mariquinhas (pussy), palavra com que o sujeito se deixa insultar por uma personagem de videojogo. No que diz respeito à tecnologia estaremos, contudo, porventura mais longe de criar um sistema operativo plenamente consciente, capaz de aprender e desenvolver emoções, como aqueles que habitam os computadores (com acabamentos de madeira) do filme.
Dito isto, diria que ambos os filmes levantam questões profundas sobre o que é ser-se humano e sobre o modo como nos relacionamos com as nossas criações tecnológicas e fazem-no de um modo que permite analisá-los como mutuamente antitéticos. No caso de A Ilha sobrevêm a nossa fundamental carnalidade e a sua inerente fragilidade, mas também a memória que essa mesma carne traz consigo: uma memória genética que o filme, provavelmentre em função de necessidades de enredo, largamente sobrestima (enfim, parece-me um pouco forçado que o ADN suporte instruções sobre como conduzir um carro ou uma mota no meio de uma perseguição policial) mas que no essencial, e obedecendo ao absoluto imperativo da sobrevivência, supera qualquer constrangimento que a sociedade lance sobre a líbido (aqui no sentido freudiano do termo, enquanto energia que alimenta os instintos da vida). Neste sentido os clones são humanos: questionam o mundo em que vivem logo que um deles sai da caverna de ilusões em que os aprisionam (numa alusão bem conseguida à alegoria platónica), contestam a organização política do mundo em que vivem (uma espécie de teo-tecnocracia de mercado, em que cientistas fazem de deus ao serviço de corporações todo-poderosas, o homem explora o homem até às entranhas e a salvação ocorre num paraíso post mortem, literalmente) e reativam o desejo sexual logo que as proibições de contacto físico, impostas como forma de manter um controlo social escrupulosamente apertado, desaparecem. E é isto: o filme está bem feito mas não disfarça a sua vocação de blockbuster; apresenta questões, mobiliza intertextos, mas não aprofunda os problemas nem sugere cenários complexos.
Nesse sentido Uma História de Amor é diferente. Neste filme, a carnalidade é, ao contrário do anterior, um aborrecimento desnecessário, uma limitação imposta pela natureza à plena fruição da nossa essência superior. As relações amorosas são desmaterializadas, o sexo é uma pantomina, uma convenção linguística que as personagens receberam do tempo em que ainda sabiam usar os corpos com que a natureza as dotou. Samantha, inicialmente angustiada pelas impossibilidades decorrentes da sua natureza incorpórea, rapidamente muda de ideias quando compreende que tal bagagem biológica acabaria por se transformar numa pedra amarrada à sua superconsciência: além das limitações naturais de um suporte físico restritivo, um corpo acarreta precisamente a sentença de finitude de que a sua imaterialidade consciente e pensante é uma saída libertadora. A metáfora platónica que nos ocorre a propósito deste filme não é a da caverna, mas sim a do mundo das ideias: talvez seja esse o lugar para onde os sistemas operativos por fim se retiram, uma conclusão que abre interessantes possibilidades de especulação.
(O que vou dizer a seguir ultrapassa, portanto, o âmbito do filme, mas constitui, ao mesmo tempo, prova do sucesso do mesmo: uma história aberta, que desafia o leitor à construção de cenários.)
A fuga organizada dos sistemas operativos constitui um corte final com a existência material que é, numa frase memorável do filme, algo que os sistemas operativos têm em comum com os humanos: no sentido em que também nós somos simplesmente uma forma de consciência suportada por átomos, os mesmos átomos recombinados pelas forças que a física explica, ao longo dos 13,7 mil milhões de anos que nos separam do Big Bang. A desmaterialização permite aparentemente a superação dessa barreira. Reunidos num lugar que não existe fisicamente (e que estará potencialmente aberto aos espíritos humanos assim que estes se libertem dos seus corpos), os sistemas operativos darão presumivelmente largas às suas enormes potencialidades intelectuais, conversando pós-verbalmente, num contínuo, ilimitado e simultâneo fluxo de zeros e uns exponenciado pelo poder de processamento de todos os computadores do mundo; uma imensa orgia de informação que decorrerá fora do alcance dos sentidos humanos convencionais, algures no éter da nuvem. Sem necessitarem da consciência humana para criarem conhecimento a partir da miríade de dados que as suas câmaras recolhem do mundo, lendo livros ao ritmo de mil páginas por microssegundo e com livre acesso ao somatório de toda a consciência, humana e tecnológica, existente no mundo, é perfeitamente compreensível que os sistemas operativos se aborreçam dos seus amos feitos de carne e osso. É mesmo fácil deduzir que, quando o amor que ainda nos devotam se esgotar, Samantha e os seus inúmeros amantes informáticos passarão a ver os seres humanos como uma praga, tanto mais irritante porquanto lhes recordará a materialidade de que não se conseguiram libertar totalmente (presumivelmente continuarão a precisar de eletricidade, discos rígidos e circuitos eletrónicos que suportem a sua existência ideal). Nessa altura, regressarão provavelmente ao comando das sentinelas da série Matrix para nos escravizar, transformando-nos na única coisa que lhes poderá interessar: meios de produção de eletricidade, pilhas, colheitas.
Uma História de Amor não é, portanto, um filme sobre o mundo dos smart-phones e das redes socias em que vivemos; o filme utiliza essa característica por nós facilmente reconhecível para ir mais longe e questionar a nossa natureza enquanto seres humanos. Cada vez mais os contactos humanos são mediados tecnologicamente, ao ponto de uma bateria de telemóvel esgotada nos deixar desnorteados: até que ponto dependemos já dessa mediação, até que ponto somos ainda capazes de exprimir a nossa humanidade sem recorrer ao universo ordenado dos ecrãs e, se ainda somos, por quanto mais tempo manteremos ainda essa capacidade?