Para mim, o melhor Almodóvar, já longe dos
destrambelhamentos da Movida mas ainda sem as amarguras da idade. Para mim, a
melhor Penélope Cruz, já mulher feita e atriz plena, mas antes dos Woody Allens
insonsos, a fazer de espanhola pitoresca, a jeito para o postal ilustrado. Uma
flor de maturidade cinematográfica, que sabe bem rever, um clímax, a obra-prima
de Almodóvar, sem sombra de dúvida.
Volver significa
voltar, e a palavra, em espanhol, tem notórias características eufónicas. Há
algo de circular na palavra, que Almodóvar faz refletir no filme, um pouco na
lógica do eterno retorno, da necessária circularidade da vida, na inutilidade
da fuga e na redenção que a mortalidade pressupõe. O filme é, acima de tudo,
uma parábola sobre a transmissão da cultura entre gerações, não só entre quatro
gerações de mulheres, mas da Espanha para si própria. E é sobretudo esta
característica que faz do filme uma obra-prima, um símbolo narrativo da
história contemporânea de um país. Senti desde logo, ao vê-lo e ao revê-lo, que
é um filme profundamente espanhol: da minha parca experiência de travessias espanholas
ao volante, reconheci a imensa meseta ibérica, com a sua planura batida pelo
vento pressagiador da demência e as localidades semiabandonadas, de uma
inenarrável desolação, entregues a não sei que fantasmas. Mas também perpassa
ciclicamente pelo filme um dos grandes mitos da Espanha: Almodóvar, que já
havia tratado a figura do toureiro (ou, mais propriamente, da toureira), evoca
agora D. Quixote, pós-modernamente, nos aerogeradores que separam Madrid do
lugarejo manchego, traços de união entre as duas Espanhas, a cosmopolita e a
tradicional.
Almodóvar sabe criar imagens oníricas a partir de
realidades quotidianas e, por vezes, sórdidas. Em Tudo Sobre a Minha Mãe transforma um corrupio de carros em redor de
um grupo de prostitutas numa belíssima dança noturna; aqui, cria um limbo entre
a vida e a morte, num pátio azulejado do sul, numa daquelas casas povoadas de
recordações e mistérios. A casa da tia Paula, no filme é, portanto, a própria
Espanha, com os seus mal arrumados passados violentos, feitos de múltiplas
violações e castrações, os seus assassinatos e as suas traições. E depois há,
claro, os temas habituais no realizador, que já não são surpresa alguma,
essencialmente plasmados no universo feminino. Até nisso o filme correspondente
ao zénite da carreira de Almodóvar: aquele momento em que o realizador já havia
criado o seu quadro de referência artístico original, mas em que o pedantismo
ainda não lhe permitia comprazer-se na mera citação de si próprio. Assim, há os
habituais intertextos cinematográficos, o fascínio pelas margens da sociedade e
a gastronomia: são sempre encantadoras as sequências de cortes de legumes,
particularmente os tomates, com a sua simbólica tonalidade vermelha. E claro,
as mulheres que são, nas nossas culturas sul-europeias só epidermicamente
patriarcais, as verdadeiras transmissoras da cultura entre gerações. São elas
que calam, são elas que contam as histórias, são elas que redimem.
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