segunda-feira, 28 de março de 2011

O castanheiro de Anne Frank


      A memória só se cumpre se nos ensinar algo sobre o presente. Uma parte significativa da minha ideia de Europa (aludo aqui, obviamente, ao ensaio de George Steiner) foi construída lendo o Diário de Anne Frank. Ocorre-me isto lendo, sobre o pano de fundo da actual crise europeia, sobre o castanheiro que Anne Frank mencionou, por diversas vezes, no seu diário, ao longo dos anos negros do domínio continental da Alemanha Nazi. A árvore morreu em Agosto do ano passado, derrubada por uma tempestade (afinal, nem todas as árvores morrem de pé), tendo vários rebentos sido espalhados por diversos locais nos Estados Unidos (no fim de contas, a par de Israel, o percurso normal para muitos judeus europeus depois da guerra). Agora que a Primavera regressa apetece citar as linhas da jovem judia alemã, numa manhã de finais de Fevereiro de 1944: “Quase todas as manhãs vou ao sótão tirar a poeira dos meus pulmões. Do meu lugar favorito no chão, olho para o céu azul e o castanheiro desfolhado, em cujos galhos brilham pequenas gotas de chuva, como prata, vejo ainda gaivotas e outros pássaros que deslizam no vento. Enquanto isto existir, e quero viver para ver, estes raios de sol o céu azul - enquanto isto durar, não poderei ser infeliz.”
        A árvore caiu, mas a torre da Westerkerk continua, certamente, a fazer soar as horas em Amesterdão, ecoando palavras escritas, no auge da guerra e do horror: “corações ao alto”, melhores tempos virão. Dá, certamente, para fazer corar de vergonha os europeus de hoje, aflitos com a crise das dívidas soberanas…

segunda-feira, 7 de março de 2011

Considerações a propósito dos caretos de Podence


         O turismo pode fossilizar, através de uma certa romantização, a cultura de um determinado local ou comunidade, transformando-os numa espécie de museu ou parque temático. A consagração de uma “geografia de atracções” e a criação de “parques temáticos etnográficos” têm esse efeito perverso de desvitalizar a cultura, precisamente pela obsessão na sua conservação.
      É mais ou menos isto que retiro dum parágrafo do livro “Issues in Cultural Tourism Studies”, de Melanie K. Smith, que ando a ler como parte de um safari académico com vista à preparação da minha dissertação de mestrado. A experiência permite-me, em simultâneo, um contraponto interessante: estive, ontem, em Podence, a propósito do Carnaval dos Caretos.
         Os caretos de Podence (na foto) são uma reminiscência comunitária de um certo paganismo transmontano que assume, ainda hoje, muitas formas. Trata-se, tradicionalmente, de um rito de passagem, em que os rapazes, mascarados, corriam a aldeia em busca de mulheres solteiras, com o objectivo de as chocalhar. Há vários Entrudos deste género em Trás-os-Montes, Beiras e Galiza, mas o de Podence tem sido, nos últimos anos, amplamente divulgado enquanto objecto de interesse turístico. As linhas estruturantes dessa divulgação radicam nas noções de genuinidade (Carnaval Genuíno, lê-se nos cartazes), sendo que à crescente popularidade deste evento não será certamente estranha alguma espécie de reacção àquilo que muitos vêm como uma espécie de neo-colonialismo invertido por parte do Brasil. De facto, cresce alguma irritação com o modelo que pretende transformar, contra todas as evidências (não só de índole cultural como também de natureza climatérica), as nossas cidades ainda invernais em pequenos Rios de Janeiro.
       Um visitante poderia então, romântica e ingenuamente, esperar uma Podence virginal, aninhada no Trás-os-Montes profundo, chocalhando furiosamente em honra dos antepassados. Se fosse um pouco menos ingénuo e mais realista, poderia compreender que as barraquinhas de venda de produtos tradicionais são uma saudável concessão ao moderno capitalismo (afinal, os aldeões também precisam de viver). Após um passeio pela aldeia, poderia sobrevir um certo desapontamento: tudo isto é divertidíssimo, é certo, mas então e esta nítida impressão de que os caretos chocalham para turista ver?
       E aqui, a inocência deveria cair. Nesse momento, um visitante pouco inteligente sentir-se-ia algo defraudado. O momento mais interessante para um visitante mais informado e reflexivo estaria, no entanto, ainda para chegar: o instante em que o fatigado careto tira o colorido fato de lã, guarda a máscara e entra no BMW para regressar ao Porto. OK, e então? Os caretos também precisam de ganhar a vida, e as oportunidades de emprego no interior não são as melhores…
        Se o turismo cultural é uma forma de desvendar e desenvolver identidades (e não apenas um afago existencial a um turista que chega, essencialmente, para confirmar os seus próprios preconceitos), então posso considerar o Carnaval de Podence um bom exemplo dessa tendência. Se viajamos para aprender a fazer perguntas sobre o Outro, e não apenas para construirmos respostas apressadas sobre nós próprios, então pode ser que aprendamos algo em Podence. O que representa melhor o Trás-os-Montes actual: a suposta genuinidade de um rito ancestral ou a participação, aos fins-de-semana, na vida da terra de pessoas que trabalham no litoral? Existe uma tensão entre o antigo e o moderno, ou é o moderno que se define e constrói com recurso ao antigo? Qual é a verdadeira geografia de Trás-os-Montes: o proverbial isolamento, moderna e mediaticamente revisitado em estradas inadequadas e caminhos-de-ferro encerrados, ou a revisitação pendular dos filhos da terra que regressam, nas férias e nos fins-de-semana, para fazer coisas outrora inimagináveis? O que é, então, a cultura: um conjunto de tradições semi-esquecidas e marginalizadas, ou o tecido social vivo que flui e reflui, de uma forma cada vez mais móvel e imprevisível?
                 Serão estes caretos pós-modernos menos genuínos? Sou eu menos transmontano do que um pastor de uma qualquer aldeia do distrito de Bragança? Não me parece.


                    Bibliografia: SMITH, Melanie K. (2009). Issues in Cultural Tourism Studies. Abingdon: Routledge