quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Sangue do meu Sangue, João Canijo (2011)




                  O Cineclube de Guimarães tenta, sempre que possível, contribuir para a superação do preconceito que os espectadores manifestam, habitualmente, em relação ao cinema português. Tenta mesmo, aliás, estão sempre a dizê-lo. Desta vez as coisas correram bastante bem: a sala do Pequeno Auditório (quiçá escolhida para evitar clareiras demasiado óbvias) quase não chegava para acolher toda a gente que veio ver este filme. De resto, e os circuitos cinematográficos alternativos têm este tipo de vantagem, a sessão ficou enriquecida com a presença do realizador, que conversou um pouco sobre o filme com os espectadores no final da sessão. Como sempre acontece nestas situações, a conversa foi interessante não tanto pelo que o realizador disse mas, essencialmente, pelas opiniões que os espectadores verbalizaram em relação ao que tinham acabado de ver.
                O filme propriamente dito é globalmente bom, embora esteja algo longe de ser, como aparentemente alguns críticos mais relaxados o classificaram, uma obra-prima. A espaços, e principalmente no início, parece que se encaminha nessa direção, mas quando a narrativa se adensa a riqueza de pormenores que faz a delícia do espectador até sensivelmente ao intervalo torna-se mais rarefeita, e o filme perde interesse. Um pouco como Romeu e Julieta, Sangue do meu Sangue começa por ser uma boa comédia que acaba como uma tragédia insossa, ainda por cima enfraquecida pela envolvência etnográfica que dilui o universal humano, essencial nesse género dramático. Há personagens deliciosas no filme que são abandonadas ou se perdem na atmosfera crescentemente negra que se vai criando à medida que a narrativa avança: a mãe (sem dúvida o melhor do filme, protagonizada por uma sempre excelente Rita Blanco), o dueto composto pelo namorado segurança e o irmão ladrãozeco que chega a lembrar Tom and Jerry, a namorada negra sorumbática que não abre a boca o filme todo… 
                Outro ponto forte do filme é a forma como nele é retratada a vida quotidiana ao nível familiar. A composição hiper-realista dos diálogos simultâneos, forçando o espectador a escolher qual deles quer ouvir, além de formalmente inovadora, ecoa metaforicamente a necessidade de fazer escolhas com que as personagens do filme se deparam. Também gostei da forma como o som de fundo das televisões foi usado: a única banda-sonora do filme são os relatos televisivos dos jogos de Portugal no mundial de 2010 e as notícias do telejornal que nos falam da entrevista do Teixeira dos Santos à CNN. Passou apenas um ano, e parece que já foi há tanto tempo! O filme mostra bem como, nestes dias, o presente passa à história diante dos nossos olhos confusos e aterrados. E depois, há o bairro Padre Cruz, que é uma personagem da história de pleno direito.
            Acontece que eu, curiosamente, conheço o bairro Padre Cruz: essa localização chamou-me de imediato a atenção quando li algo sobre o filme. O bairro Padre Cruz é um bairro social lisboeta, ao pé da Pontinha. Seria uma geografia que nada me diria, como não dizia à plateia na sessão, se não se desse a circunstância de eu, por acaso, o conhecer. E isso seria já de si interessante, nem que fosse simplesmente pela possibilidade de ver em cinema um local que conheço na realidade. Já tinha visto o Azibo, a linha do Tua (não, não foi no Pare, Escute e Olhe) e até uma certa rua de Paris, mas tudo de um modo meio acidental e algo fugaz. O bairro Padre Cruz, no entanto, irrompe por este filme adentro, com as suas vielas estandardizadas simulando, em mau urbanismo, o mapa hidrográfico português; os cães que não param de ladrar; os escarros profundos que rasgam a noite; o ensurdecedor ruído das vidas dos vizinhos, cujas trajetórias parecem poder ser narradas recorrendo apenas ao parco vocabulário constituído por meia dúzia de palavrões constantemente repetidos; a inacreditável pequenez das casas; a estranha consistência de lata e vidro velho que todo o bairro parece ter, que se cola aos ouvidos, às mãos, aos olhos; o bizarro caldo de cultura feito de transmontanos, beirões, alentejanos, guineenses, cabo-verdianos, angolanos, brasileiros e ciganos; o perverso sentimento de comunidade que causa um estranho desconforto a quem entre no bairro vindo de fora dele; o café esquálido, único num raio de quilómetros, no qual a hora de fecho é apressada varrendo priscas quase por entre as pernas dos clientes; e as vistas sobre os arrabaldes lisboetas que se tem da estrada onde se apanha o autocarro, a meio caminho entre uma paisagem urbana com ressonâncias árabes e mexicanas e um surreal deserto feito de precários casinhotos com enormes blocos de apartamentos sem varandas ao fundo.  

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

The Adventures of Tintin: the Secret of the Unicorn, Steven Spielberg (2011)




                Sempre gostei de banda-desenhada em geral, e do Tintim em particular. Lembro-me bastante bem da primeira vez que li um livro da personagem, embora não tenha a certeza absoluta se era A Ilha Negra ou O Cetro de Ottokar. Dei com o álbum na biblioteca da escola preparatória, andava eu no 5.º ano, e daí foi certamente um passo rápido para o encantamento. Da linha, da cor, da aventura, mas essencialmente da viagem. E, fosse num país balcânico imaginário, fosse sob os céus plúmbeos da Escócia, soube-me bem viajar naquelas pausas antes das aulas da tarde, a seguir ao intragável almoço na cantina (sei que todos os alunos se queixam das cantinas mas, acreditem, eu tinha razões para isso).

A Ilha Negra (clique para aumentar)

           Não voltei a encontrar-me com o Tintim durante bastantes anos. De facto redescobri-o apenas quando o jornal Público disponibilizou, a preço de saldo, a coleção completa das suas aventuras. Nessa altura eu já não era propriamente uma criança. O encantamento, no entanto, permaneceu: com efeito o Tintim mostrou-me, para meu agrado, que a minha predisposição para o deleite só aumentou com os anos. E essa constatação dá-me argumentos para superar o habitual preconceito sobre o que é para crianças e jovens e o que é para adultos. De facto, porque é que aquilo que realmente nos deleitou em miúdos tem de ser tão implacavelmente deitado fora só porque nos tornamos adultos? Não, há coisas que o próprio tempo se encarrega de canonizar, e que assim transcendem essas catalogações fáceis. Portanto, continuei a deixar-me levar pelas aventuras do Tintim. Leio-as e releio-as avidamente, na realidade. E já cheguei, até, a escrever sobre elas, numa determinada altura: http://a-espera-de-godot.blogspot.com/2011_01_01_archive.html.
                   Conheço bastante bem, portanto, o universo das aventuras de Tintim. E, como tal, achei que não devia deixar de ver o recente filme da personagem. Sabia de antemão, como sempre acontece nestas coisas, que o produto podia não me agradar inteiramente, que o mais certo era mesmo não me agradar, mas enfim, deixei-me de purismos e lá pus, como os outros, os óculos 3D. Em último caso, o deleite dos álbuns já ninguém mo tira, pensei. Lembrei-me, no entanto, de umas linhas num ensaio de T. S. Eliot, Tradition and the Individual Talent, no qual é dito que não são apenas os clássicos que influenciam as variações que sobre eles são feitas: de facto, também essas variações moldam as leituras ulteriores dos próprios clássicos. Os álbuns, portanto, já não serão exatamente a mesma coisa depois disto…
            Façamos, portanto, uma apreciação do filme em termos positivos e negativos (atenção: daqui para a frente há spoilers). Comecemos pelos positivos. Graficamente, o filme é interessante. Ainda que não tenha gostado do retrato do Capitão Haddock (estático, exagerado e, face ao original, inexpressivo), a transposição para um modelo semirreal do Tintim está bastante bem feita. O boneco consegue uma síntese perfeita entre o seu original desenhado e o que seria o seu correspondente na vida real. A cena do retrato feito no mercado (não consegui confirmar se o retratista é o próprio Hergé, mas seria bastante inteligente que fosse) é particularmente feliz ao estabelecer essa ligação ao mesmo tempo que faz um tributo aos álbuns. O argumento, centrado nos álbuns O Segredo do Licorne e O Caranguejo das Tenazes de Ouro, parece-me também bastante bem-conseguido ao conseguir fazer referência a elementos de praticamente todos os álbuns. A junção mais forçada é a cena das bolas de bebida disputadas entre o Capitão e Milu, em que as quedas livres da aeronave simulam o efeito de ausência de gravidade que ocorre, na realidade, no álbum Explorando a Lua

Explorando a Lua (clique para aumentar)

Este é um exemplo de como a linha narrativa do filme caminha perigosamente perto de se transformar numa caldeirada de Tintim: penso, de qualquer modo, que tal não é o caso, e essa é definitivamente uma qualidade do argumento.
       No entanto, alguém que não tenha lido nenhum dos álbuns (e aqui entramos na crítica negativa) ficará, apesar disso, com uma visão profundamente errada do que é a série de álbuns do Tintim. A este respeito é interessante interrogar as pequenas diferenças: confesso que não resisti a folhear os dois álbuns que mais explicitamente servem de base ao filme ao chegar a casa. Há, desde logo, as pequenas alterações inexplicáveis. O hidroavião que metralha Tintim, o Capitão Haddock e Milu em alto-mar tem, no álbum, matrícula marroquina. Por que insondável motivo é que no filme lhe põem uma matrícula portuguesa? Uma referência obscura ao facto de haver uma personagem portuguesa nos álbuns (que não aparece no filme)? Mas se o senhor Oliveira da Figueira é uma personagem claramente positiva, que por mais de uma vez ajudou o Tintim, porquê essa despromoção tão grosseira dos portugueses no filme? Porque é que de simpáticos vendedores de bugigangas nos livros passámos a metralhadores de náufragos no cinema? Não bastam já as agências para denegrir a nossa imagem internacional?

O Caranguejo das Tenazes de Ouro (clique para aumentar)

               Outra alteração, essa já mais explicável, é aquela a que é sujeito o xeque Omar ben-Salaad. Tudo bem que nos álbuns este é um traficante de ópio: mas o grau de malvadez a que o filme o eleva é completamente despropositado. O ben-Salaad do álbum faz-se transportar sobre uma mula no meio do seu povo: o do filme vive num palácio híper-sumptuoso, rodeado pelas águas duma barragem a abarrotar enquanto o povo raciona água. A explicação é simples: o público americano não consegue conceber um xeque que não seja um tirano e que não viva no luxo enquanto o povo sofre. A imagem do ben-Salaad original irritaria, portanto, muita daquela gente que acha que a vocação nacional dos Estados Unidos é libertar povos árabes dos seus déspotas. Paradoxalmente (ou não), o Tintim do filme está-se nas tintas para o povo árabe, bem ao contrário do seu modelo desenhado. Bem à moda americana, este Tintim de Spielberg limita-se a destruir completamente uma cidade árabe.

O Caranguejo das Tenazes de Ouro (clique para aumentar)

               Isto leva-nos a outra questão mais profunda. A banda-desenhada franco-belga é diferente dos comics americanos precisamente na medida da contenção. Os heróis franco-belgas são, para todos os efeitos, humanos, o que permite uma identificação mais genuína. Ao ler um comic do Super-Homem eu sei, desde logo, que não posso voar, não posso amparar um Boeing em queda livre, não posso congelar, com um sopro, um vulcão em atividade. O Homem-Aranha ainda se suporta: afinal, Peter Parker é um estudante universitário teso, com um part-time miserável e uma namorada chata a quem calhou a ambígua sorte de ser mordido por uma aranha radioativa (algo que pode, afinal, acontecer a qualquer pessoa). Já o Batman será, porventura, o único herói de comics sem superpoderes, mas aquele hábito de vestir o sobrinho com aquelas roupas coloridas é, no mínimo, suspeito. A banda-desenhada americana alimenta-se, portanto, de uma estética do excesso (e isso é normal, é bom mesmo, afinal habituámo-nos a ela assim). Não exagerarei, no entanto, se disser que é a essa estética que este filme converte o ícone maior da banda-desenhada franco-belga: e disso, no entanto, não gostei, não gostei mesmo nada. Seria expectável, e até desculpável numa certa medida, mas Spielberg exagera. Do ponto de vista de qualquer possibilidade de identificação com a personagem, este Tintim supera o próprio Super-Homem: este Tintim, na realidade, é um Ranger do Texas…
                  Já não falo, aqui, das pequenas diferenças. No álbum Tintim, ao procurar qualquer coisa (o pergaminho) debaixo de um armário agacha-se e apalpa por debaixo do móvel como uma pessoa normal, dando ao levantar-se uma cabeçada na gaveta superior, que estava aberta. 

O Segredo do Licorne (clique para aumentar)

            Nem isso o super-herói de Spielberg pode fazer: fortalhaço como é, arrasta o armário com um golpe decidido de braços. Mas enfim, como dizia, pequenas diferenças. O que já não é uma diferença pequena, mas antes altera completamente a personalidade da personagem, é a constante necessidade de autoafirmação, que toma conta de Tintim, de Haddock e do próprio Milu. Todos passam o filme a tentar provar que são machos carregados de testosterona. Tintim, que nos álbuns só pegava num revolver quando era mesmo preciso, tem no filme dedo leve no gatilho. Haddock é acometido de culpas puritanas, bem ao estilo protestante, sempre que bebe: e bebe de tudo, parecendo mesmo preferir álcool etílico ao scotch que lhe fazia as delícias nos álbuns. E depois tem flatulências, e arrota generosamente, coisa que nunca fez num álbum. E até Milu domina um Rottweiler (que, no álbum, é um dogue alemão). Já não queria pegar pela mirabolante história de vinganças transgeracionais que inventaram para o Capitão mas, enfim, como dizia o outro senhor, não havia necessidade…
                  Aqui há uns anos surgiu uma publicação, que retomava a personagem do Tintim na idade adulta. Milu havia morrido, Haddock mergulhara em definitivo no álcool, e Tintim era um misto de repórter e detetive de film noir com uma vida sexual turbulenta e generosamente povoada. A ideia causou polémica, ao ponto de a publicação ser cancelada. A opinião geral foi de que há limites para o que se pode fazer com uma personagem. A pergunta é: se for Spielberg a fazê-lo, já não há?