segunda-feira, 26 de março de 2012

The Cave of Forgotten Dreams (A Caverna dos Sonhos Perdidos), Werner Herzog (2010)


             

             É muito difícil captar num simples artigo toda a riqueza simbólica presente neste filme documental. De facto, quase todas as sequências motivariam, assim se quisesse, um ensaio. Tudo parte, no entanto, de uma obra artística: uma gruta no sul de França cujas paredes se encontram cobertas de pinturas do paleolítico, as mais antigas de que há conhecimento. O filme, com efeito, reinterpreta essa obra numa lógica intertextual, fazendo a ponte entre os primórdios da figuração e a arte cinematográfica. Parece descabido? Não é, de todo. A arte é fundamentalmente una, e se podemos descortinar traços de um proto-cinema na Caverna dos Sonhos Esquecidos (a Gruta de Chauvet, no sul calcário de França), também podemos gracejar a propósito da prevalência dos padrões de beleza femininos das vénus paleolíticas nas séries americanas atuais ou tocar o Star-Sprangled Banner numa flauta de osso pré-histórica.
   A cor e o traço das gravuras surpreendem de imediato. Estamos habituados a pensar neste tipo de arte como uns “risquitos” (efeito Vale do Coa, certamente), mas aquilo aproxima-se bem mais de uma Capela Sistina pré-histórica, uma espécie de catedral das cavernas. O facto de a obra documentada ser de uma beleza efectivamente desarmante não deve eclipsar o feito do realizador do filme. Num contexto de extremas limitações técnicas, Herzog faz um filme incrivelmente belo, um verdadeiro retoque artístico feito nas pinturas de há dezenas de milhar de anos atrás. Não se podendo visitar a gruta, o filme fica, para o público em geral, não como o retrato possível, mas sim como uma aula verdadeiramente magistral sobre o sítio: Herzog revela-se, com efeito, um intérprete à altura do local patrimonial, guiando-nos, à medida que ele mesmo se faz guiar, pelo estonteante labirinto da gruta. O 3D, esse, revelou finalmente para que serve. A tridimensionalidade das pinturas, que jogam com as irregularidades das paredes da gruta, o brilho onírico das estalagmites e a voluptuosidade dos rendilhados calcários que tecem o ambiente mágico da gruta, o subtil jogo de chiaroscuro reflectindo-se nas paredes e nos rostos dos homens que perturbam o silêncio do local, tudo isso ganha uma densidade notável, pontuando assertivamente o argumento artístico de Herzog: a sala de cinema enquanto extensão da própria gruta, o filme como leitura criativa da realidade.
                Mas vamos por partes (pois, como disse, há tanto a dizer sobre o filme que o melhor mesmo é ir vê-lo). A entrada inicial na gruta sugere um tema clássico, o da descida (o Hades, os poços, Viagem ao Centro da Terra, o subconsciente, etc). A escuridão da gruta oculta os sonhos, sonhos esses que, desde que Freud ensaiou a sua interpretação, sabemos serem o único caminho para os recantos mais profundos da psique. A gruta é, ela mesma, um percurso iniciático que é preciso percorrer ao contrário, retrospectivamente, porque a entrada principal ruiu (tanto real como metaforicamente). Os cientistas estudam o local, estudam o labirinto dos passos individuais na gruta, descodificam pegadas, ossos e mãos, mas o mistério inelutável de nós mesmos e da nossa perene humanidade só se dá a conhecer a quem sabe ouvi-lo. Há uma sequência admirável, em que alguém convida os presentes a escutarem o silêncio da gruta e a câmara oscila, poeticamente, entre as cores quentes e o traço puro das pinturas e os rostos quietos dos espeleólogos: homens e mulheres, com pálidas luzes nos capacetes, a humanidade frente ao espelho mágico da arte. As pinturas representam animais*, em todas as mitologias os símbolos operativos das características fundamentais do ser humano: leões, ursos, hienas, rinocerontes e também outros entretanto perdidos na bruma do tempo, como o grande veado irlandês, o mamute ou o auroque. Deuses selvagens, sim, que mais tarde seriam humanizados e mesmo historicisados, mas ali, artisticamente convocados em concílio, constituem um panteão do concreto, um mito tangível, uma religião cujos sacramentos eram consubstanciais com a vida. 


            E depois, há os cavalos, alinhados como santos numa catedral gótica, mas infinitamente mais ancestrais, mais profundos, mais significativos e incomensuravelmente mais místicos, suspensos no tempo e no espaço, criados num perdido gesto encantatório: a criação do espírito, da eterna e indizível interrogação que anima o Homo Sapiens (que nome tão mal dado a uma criatura que sabe tão pouco, como dizia um arqueólogo…). Os cavalos daquela gruta são uma linguagem sem palavras, o arquétipo da construção simbólica. Algo difícil de referir, que deixo, como tal, a quem sabe: Ted Hughes, The Horses, poema aqui traduzido por mim, com um forte convite, a quem souber inglês, à leitura do original.


Subi através dos bosques no escuro da hora-antes-da-alva.
Ar malévolo, um silêncio de fazer geada,

Nenhuma folha, nenhum pássaro –
Um mundo moldado em geada. Saí, sobre o bosque

Onde o meu fôlego deixou tortuosas estátuas na luz de ferro.
Mas os vales escoavam a escuridão

Até à linha dos montes – borras enegrecidas do cinzento clareado –
Rasgando, adiante, o céu em dois. E vi os cavalos:

Enormes no cinzento denso – dez ao todo –
Imóveis megálitos. Respiravam, não se movendo,

Com crinas pendentes e cascos traseiros inclinados,
Não fazendo um ruído.

Passei: nem um resfolegou, ou cabeceou.
Fragmentos cinzentos e silenciosos

De um mundo cinzento e silencioso.

Ouvi, vazio, no cume dos montes.
A lágrima da garça virou a sua face ao silêncio.

Lentamente, o detalhe folheado na escuridão. Depois o sol
Laranja, vermelho, vermelho entrando em erupção

Silenciosamente, e rasgando até ao cerne e espalhando as nuvens,
Fendeu o estreito, mostrou o azul,

E os grandes planetas pendentes –
Virei-me

Tropeçando na febre de um sonho, descendo,
Para os bosques, dos cumes tremeluzentes,

Até aos cavalos.
Ali estavam eles ainda,
Mas agora vaporando e reluzindo sob a corrente da luz,

As suas crinas de pedra pendentes, os seus cascos traseiros inclinados
Mexendo, derretendo, enquanto à sua volta

A geada mostrava as suas chamas. Mas eles ainda não faziam um som
Nem um resfolegava ou patejava

As suas cabeças curvadas pacientes como os horizontes
Sobrepondo-se aos vales, nos raios vermelhos que alisam o chão –

No bulício das ruas atulhadas, indo pelos anos, pelos rostos,
Possa eu ainda encontrar a minha memória em tão solitário lugar

Entre os regatos e as nuvens vermelhas, ouvindo as garças,
Ouvindo os horizontes durar.




* A quase exclusividade dos animais nas pinturas (de facto, também havia símbolos abstractos, mãos em negativo, e mesmo uma representação parcial de uma mulher) parece ter surpreendido a audiência. Escutei, a dada altura, uma pergunta que também encontrei no IMDB: porque é que eles só desenhavam animais? Esta interrogação ilustra bem a insensibilidade espiritual e natural (há verdadeira espiritualidade sem natureza?) da contemporaneidade… Afinal, tão civilizados que somos, acabámos por nos habituar a venerar carros, prédios, lojas, contas bancárias e celebridades, ao mesmo tempo que metíamos os poucos animais que ainda tolerávamos no jardim zoológico. Em termos de deuses ficamos, parece-me, muito pior na fotografia do que os nossos antepassados…