domingo, 11 de dezembro de 2011

Volver, Pedro Almodóvar (2006)




                  Para mim, o melhor Almodóvar, já longe dos destrambelhamentos da Movida mas ainda sem as amarguras da idade. Para mim, a melhor Penélope Cruz, já mulher feita e atriz plena, mas antes dos Woody Allens insonsos, a fazer de espanhola pitoresca, a jeito para o postal ilustrado. Uma flor de maturidade cinematográfica, que sabe bem rever, um clímax, a obra-prima de Almodóvar, sem sombra de dúvida.
           Volver significa voltar, e a palavra, em espanhol, tem notórias características eufónicas. Há algo de circular na palavra, que Almodóvar faz refletir no filme, um pouco na lógica do eterno retorno, da necessária circularidade da vida, na inutilidade da fuga e na redenção que a mortalidade pressupõe. O filme é, acima de tudo, uma parábola sobre a transmissão da cultura entre gerações, não só entre quatro gerações de mulheres, mas da Espanha para si própria. E é sobretudo esta característica que faz do filme uma obra-prima, um símbolo narrativo da história contemporânea de um país. Senti desde logo, ao vê-lo e ao revê-lo, que é um filme profundamente espanhol: da minha parca experiência de travessias espanholas ao volante, reconheci a imensa meseta ibérica, com a sua planura batida pelo vento pressagiador da demência e as localidades semiabandonadas, de uma inenarrável desolação, entregues a não sei que fantasmas. Mas também perpassa ciclicamente pelo filme um dos grandes mitos da Espanha: Almodóvar, que já havia tratado a figura do toureiro (ou, mais propriamente, da toureira), evoca agora D. Quixote, pós-modernamente, nos aerogeradores que separam Madrid do lugarejo manchego, traços de união entre as duas Espanhas, a cosmopolita e a tradicional.
              Almodóvar sabe criar imagens oníricas a partir de realidades quotidianas e, por vezes, sórdidas. Em Tudo Sobre a Minha Mãe transforma um corrupio de carros em redor de um grupo de prostitutas numa belíssima dança noturna; aqui, cria um limbo entre a vida e a morte, num pátio azulejado do sul, numa daquelas casas povoadas de recordações e mistérios. A casa da tia Paula, no filme é, portanto, a própria Espanha, com os seus mal arrumados passados violentos, feitos de múltiplas violações e castrações, os seus assassinatos e as suas traições. E depois há, claro, os temas habituais no realizador, que já não são surpresa alguma, essencialmente plasmados no universo feminino. Até nisso o filme correspondente ao zénite da carreira de Almodóvar: aquele momento em que o realizador já havia criado o seu quadro de referência artístico original, mas em que o pedantismo ainda não lhe permitia comprazer-se na mera citação de si próprio. Assim, há os habituais intertextos cinematográficos, o fascínio pelas margens da sociedade e a gastronomia: são sempre encantadoras as sequências de cortes de legumes, particularmente os tomates, com a sua simbólica tonalidade vermelha. E claro, as mulheres que são, nas nossas culturas sul-europeias só epidermicamente patriarcais, as verdadeiras transmissoras da cultura entre gerações. São elas que calam, são elas que contam as histórias, são elas que redimem. 

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Sangue do meu Sangue, João Canijo (2011)




                  O Cineclube de Guimarães tenta, sempre que possível, contribuir para a superação do preconceito que os espectadores manifestam, habitualmente, em relação ao cinema português. Tenta mesmo, aliás, estão sempre a dizê-lo. Desta vez as coisas correram bastante bem: a sala do Pequeno Auditório (quiçá escolhida para evitar clareiras demasiado óbvias) quase não chegava para acolher toda a gente que veio ver este filme. De resto, e os circuitos cinematográficos alternativos têm este tipo de vantagem, a sessão ficou enriquecida com a presença do realizador, que conversou um pouco sobre o filme com os espectadores no final da sessão. Como sempre acontece nestas situações, a conversa foi interessante não tanto pelo que o realizador disse mas, essencialmente, pelas opiniões que os espectadores verbalizaram em relação ao que tinham acabado de ver.
                O filme propriamente dito é globalmente bom, embora esteja algo longe de ser, como aparentemente alguns críticos mais relaxados o classificaram, uma obra-prima. A espaços, e principalmente no início, parece que se encaminha nessa direção, mas quando a narrativa se adensa a riqueza de pormenores que faz a delícia do espectador até sensivelmente ao intervalo torna-se mais rarefeita, e o filme perde interesse. Um pouco como Romeu e Julieta, Sangue do meu Sangue começa por ser uma boa comédia que acaba como uma tragédia insossa, ainda por cima enfraquecida pela envolvência etnográfica que dilui o universal humano, essencial nesse género dramático. Há personagens deliciosas no filme que são abandonadas ou se perdem na atmosfera crescentemente negra que se vai criando à medida que a narrativa avança: a mãe (sem dúvida o melhor do filme, protagonizada por uma sempre excelente Rita Blanco), o dueto composto pelo namorado segurança e o irmão ladrãozeco que chega a lembrar Tom and Jerry, a namorada negra sorumbática que não abre a boca o filme todo… 
                Outro ponto forte do filme é a forma como nele é retratada a vida quotidiana ao nível familiar. A composição hiper-realista dos diálogos simultâneos, forçando o espectador a escolher qual deles quer ouvir, além de formalmente inovadora, ecoa metaforicamente a necessidade de fazer escolhas com que as personagens do filme se deparam. Também gostei da forma como o som de fundo das televisões foi usado: a única banda-sonora do filme são os relatos televisivos dos jogos de Portugal no mundial de 2010 e as notícias do telejornal que nos falam da entrevista do Teixeira dos Santos à CNN. Passou apenas um ano, e parece que já foi há tanto tempo! O filme mostra bem como, nestes dias, o presente passa à história diante dos nossos olhos confusos e aterrados. E depois, há o bairro Padre Cruz, que é uma personagem da história de pleno direito.
            Acontece que eu, curiosamente, conheço o bairro Padre Cruz: essa localização chamou-me de imediato a atenção quando li algo sobre o filme. O bairro Padre Cruz é um bairro social lisboeta, ao pé da Pontinha. Seria uma geografia que nada me diria, como não dizia à plateia na sessão, se não se desse a circunstância de eu, por acaso, o conhecer. E isso seria já de si interessante, nem que fosse simplesmente pela possibilidade de ver em cinema um local que conheço na realidade. Já tinha visto o Azibo, a linha do Tua (não, não foi no Pare, Escute e Olhe) e até uma certa rua de Paris, mas tudo de um modo meio acidental e algo fugaz. O bairro Padre Cruz, no entanto, irrompe por este filme adentro, com as suas vielas estandardizadas simulando, em mau urbanismo, o mapa hidrográfico português; os cães que não param de ladrar; os escarros profundos que rasgam a noite; o ensurdecedor ruído das vidas dos vizinhos, cujas trajetórias parecem poder ser narradas recorrendo apenas ao parco vocabulário constituído por meia dúzia de palavrões constantemente repetidos; a inacreditável pequenez das casas; a estranha consistência de lata e vidro velho que todo o bairro parece ter, que se cola aos ouvidos, às mãos, aos olhos; o bizarro caldo de cultura feito de transmontanos, beirões, alentejanos, guineenses, cabo-verdianos, angolanos, brasileiros e ciganos; o perverso sentimento de comunidade que causa um estranho desconforto a quem entre no bairro vindo de fora dele; o café esquálido, único num raio de quilómetros, no qual a hora de fecho é apressada varrendo priscas quase por entre as pernas dos clientes; e as vistas sobre os arrabaldes lisboetas que se tem da estrada onde se apanha o autocarro, a meio caminho entre uma paisagem urbana com ressonâncias árabes e mexicanas e um surreal deserto feito de precários casinhotos com enormes blocos de apartamentos sem varandas ao fundo.  

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

The Adventures of Tintin: the Secret of the Unicorn, Steven Spielberg (2011)




                Sempre gostei de banda-desenhada em geral, e do Tintim em particular. Lembro-me bastante bem da primeira vez que li um livro da personagem, embora não tenha a certeza absoluta se era A Ilha Negra ou O Cetro de Ottokar. Dei com o álbum na biblioteca da escola preparatória, andava eu no 5.º ano, e daí foi certamente um passo rápido para o encantamento. Da linha, da cor, da aventura, mas essencialmente da viagem. E, fosse num país balcânico imaginário, fosse sob os céus plúmbeos da Escócia, soube-me bem viajar naquelas pausas antes das aulas da tarde, a seguir ao intragável almoço na cantina (sei que todos os alunos se queixam das cantinas mas, acreditem, eu tinha razões para isso).

A Ilha Negra (clique para aumentar)

           Não voltei a encontrar-me com o Tintim durante bastantes anos. De facto redescobri-o apenas quando o jornal Público disponibilizou, a preço de saldo, a coleção completa das suas aventuras. Nessa altura eu já não era propriamente uma criança. O encantamento, no entanto, permaneceu: com efeito o Tintim mostrou-me, para meu agrado, que a minha predisposição para o deleite só aumentou com os anos. E essa constatação dá-me argumentos para superar o habitual preconceito sobre o que é para crianças e jovens e o que é para adultos. De facto, porque é que aquilo que realmente nos deleitou em miúdos tem de ser tão implacavelmente deitado fora só porque nos tornamos adultos? Não, há coisas que o próprio tempo se encarrega de canonizar, e que assim transcendem essas catalogações fáceis. Portanto, continuei a deixar-me levar pelas aventuras do Tintim. Leio-as e releio-as avidamente, na realidade. E já cheguei, até, a escrever sobre elas, numa determinada altura: http://a-espera-de-godot.blogspot.com/2011_01_01_archive.html.
                   Conheço bastante bem, portanto, o universo das aventuras de Tintim. E, como tal, achei que não devia deixar de ver o recente filme da personagem. Sabia de antemão, como sempre acontece nestas coisas, que o produto podia não me agradar inteiramente, que o mais certo era mesmo não me agradar, mas enfim, deixei-me de purismos e lá pus, como os outros, os óculos 3D. Em último caso, o deleite dos álbuns já ninguém mo tira, pensei. Lembrei-me, no entanto, de umas linhas num ensaio de T. S. Eliot, Tradition and the Individual Talent, no qual é dito que não são apenas os clássicos que influenciam as variações que sobre eles são feitas: de facto, também essas variações moldam as leituras ulteriores dos próprios clássicos. Os álbuns, portanto, já não serão exatamente a mesma coisa depois disto…
            Façamos, portanto, uma apreciação do filme em termos positivos e negativos (atenção: daqui para a frente há spoilers). Comecemos pelos positivos. Graficamente, o filme é interessante. Ainda que não tenha gostado do retrato do Capitão Haddock (estático, exagerado e, face ao original, inexpressivo), a transposição para um modelo semirreal do Tintim está bastante bem feita. O boneco consegue uma síntese perfeita entre o seu original desenhado e o que seria o seu correspondente na vida real. A cena do retrato feito no mercado (não consegui confirmar se o retratista é o próprio Hergé, mas seria bastante inteligente que fosse) é particularmente feliz ao estabelecer essa ligação ao mesmo tempo que faz um tributo aos álbuns. O argumento, centrado nos álbuns O Segredo do Licorne e O Caranguejo das Tenazes de Ouro, parece-me também bastante bem-conseguido ao conseguir fazer referência a elementos de praticamente todos os álbuns. A junção mais forçada é a cena das bolas de bebida disputadas entre o Capitão e Milu, em que as quedas livres da aeronave simulam o efeito de ausência de gravidade que ocorre, na realidade, no álbum Explorando a Lua

Explorando a Lua (clique para aumentar)

Este é um exemplo de como a linha narrativa do filme caminha perigosamente perto de se transformar numa caldeirada de Tintim: penso, de qualquer modo, que tal não é o caso, e essa é definitivamente uma qualidade do argumento.
       No entanto, alguém que não tenha lido nenhum dos álbuns (e aqui entramos na crítica negativa) ficará, apesar disso, com uma visão profundamente errada do que é a série de álbuns do Tintim. A este respeito é interessante interrogar as pequenas diferenças: confesso que não resisti a folhear os dois álbuns que mais explicitamente servem de base ao filme ao chegar a casa. Há, desde logo, as pequenas alterações inexplicáveis. O hidroavião que metralha Tintim, o Capitão Haddock e Milu em alto-mar tem, no álbum, matrícula marroquina. Por que insondável motivo é que no filme lhe põem uma matrícula portuguesa? Uma referência obscura ao facto de haver uma personagem portuguesa nos álbuns (que não aparece no filme)? Mas se o senhor Oliveira da Figueira é uma personagem claramente positiva, que por mais de uma vez ajudou o Tintim, porquê essa despromoção tão grosseira dos portugueses no filme? Porque é que de simpáticos vendedores de bugigangas nos livros passámos a metralhadores de náufragos no cinema? Não bastam já as agências para denegrir a nossa imagem internacional?

O Caranguejo das Tenazes de Ouro (clique para aumentar)

               Outra alteração, essa já mais explicável, é aquela a que é sujeito o xeque Omar ben-Salaad. Tudo bem que nos álbuns este é um traficante de ópio: mas o grau de malvadez a que o filme o eleva é completamente despropositado. O ben-Salaad do álbum faz-se transportar sobre uma mula no meio do seu povo: o do filme vive num palácio híper-sumptuoso, rodeado pelas águas duma barragem a abarrotar enquanto o povo raciona água. A explicação é simples: o público americano não consegue conceber um xeque que não seja um tirano e que não viva no luxo enquanto o povo sofre. A imagem do ben-Salaad original irritaria, portanto, muita daquela gente que acha que a vocação nacional dos Estados Unidos é libertar povos árabes dos seus déspotas. Paradoxalmente (ou não), o Tintim do filme está-se nas tintas para o povo árabe, bem ao contrário do seu modelo desenhado. Bem à moda americana, este Tintim de Spielberg limita-se a destruir completamente uma cidade árabe.

O Caranguejo das Tenazes de Ouro (clique para aumentar)

               Isto leva-nos a outra questão mais profunda. A banda-desenhada franco-belga é diferente dos comics americanos precisamente na medida da contenção. Os heróis franco-belgas são, para todos os efeitos, humanos, o que permite uma identificação mais genuína. Ao ler um comic do Super-Homem eu sei, desde logo, que não posso voar, não posso amparar um Boeing em queda livre, não posso congelar, com um sopro, um vulcão em atividade. O Homem-Aranha ainda se suporta: afinal, Peter Parker é um estudante universitário teso, com um part-time miserável e uma namorada chata a quem calhou a ambígua sorte de ser mordido por uma aranha radioativa (algo que pode, afinal, acontecer a qualquer pessoa). Já o Batman será, porventura, o único herói de comics sem superpoderes, mas aquele hábito de vestir o sobrinho com aquelas roupas coloridas é, no mínimo, suspeito. A banda-desenhada americana alimenta-se, portanto, de uma estética do excesso (e isso é normal, é bom mesmo, afinal habituámo-nos a ela assim). Não exagerarei, no entanto, se disser que é a essa estética que este filme converte o ícone maior da banda-desenhada franco-belga: e disso, no entanto, não gostei, não gostei mesmo nada. Seria expectável, e até desculpável numa certa medida, mas Spielberg exagera. Do ponto de vista de qualquer possibilidade de identificação com a personagem, este Tintim supera o próprio Super-Homem: este Tintim, na realidade, é um Ranger do Texas…
                  Já não falo, aqui, das pequenas diferenças. No álbum Tintim, ao procurar qualquer coisa (o pergaminho) debaixo de um armário agacha-se e apalpa por debaixo do móvel como uma pessoa normal, dando ao levantar-se uma cabeçada na gaveta superior, que estava aberta. 

O Segredo do Licorne (clique para aumentar)

            Nem isso o super-herói de Spielberg pode fazer: fortalhaço como é, arrasta o armário com um golpe decidido de braços. Mas enfim, como dizia, pequenas diferenças. O que já não é uma diferença pequena, mas antes altera completamente a personalidade da personagem, é a constante necessidade de autoafirmação, que toma conta de Tintim, de Haddock e do próprio Milu. Todos passam o filme a tentar provar que são machos carregados de testosterona. Tintim, que nos álbuns só pegava num revolver quando era mesmo preciso, tem no filme dedo leve no gatilho. Haddock é acometido de culpas puritanas, bem ao estilo protestante, sempre que bebe: e bebe de tudo, parecendo mesmo preferir álcool etílico ao scotch que lhe fazia as delícias nos álbuns. E depois tem flatulências, e arrota generosamente, coisa que nunca fez num álbum. E até Milu domina um Rottweiler (que, no álbum, é um dogue alemão). Já não queria pegar pela mirabolante história de vinganças transgeracionais que inventaram para o Capitão mas, enfim, como dizia o outro senhor, não havia necessidade…
                  Aqui há uns anos surgiu uma publicação, que retomava a personagem do Tintim na idade adulta. Milu havia morrido, Haddock mergulhara em definitivo no álcool, e Tintim era um misto de repórter e detetive de film noir com uma vida sexual turbulenta e generosamente povoada. A ideia causou polémica, ao ponto de a publicação ser cancelada. A opinião geral foi de que há limites para o que se pode fazer com uma personagem. A pergunta é: se for Spielberg a fazê-lo, já não há? 

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Entre Beethoven, Larkin e Goya


      A música é o segundo andamento da 7.ª Sinfonia de Beethoven. É um trecho bastante conhecido, que surgiu recentemente enquanto banda sonora do filme O Discurso do Rei


Na banda sonora do filme a música aparece sob o título Speaking unto Nations. Há uma nuance discursiva no título em inglês que o nosso idioma demasiado igualitário não permite retratar exatamente, que é a o significado transmitido pela preposição unto. Falando a nações, portanto, mas falando de cima para baixo. A música transmite sentimentos semelhantes. No filme, podemos lê-la à luz do velho nacionalismo europeu, culminando no momento em que o velho Império Britânico declara guerra à rejuvenescida Alemanha Nazi. Há algo de profundo e subterrâneo, de força de gigante adormecido nos graves lentos dos violoncelos, uma vontade que acorda e progride para os tons mais altos dos violinos. Há, essencialmente, um tom ominoso: uma certa clareza que morrerá, uma inocência e espontaneidade que não mais terão lugar na Europa. Nos versos de Philip Larkin:

Não mais essa inocência,
Nunca antes, ou desde então,
Como transmutando-se em passado
Sem uma palavra – os homens
Deixando jardins bem cuidados,
Os milhares de casamentos,
Durando apenas um pouco mais:
Nunca mais essa inocência.*


          Parafraseando Nietzsche e Leni Riefenstahl, a vontade que se ergue e esmaga sob o seu peso a insustentável leveza das existências simples. A vontade, perguntaremos nós hoje, europeus contemporâneos, mas que vontade? Saberemos nós ainda distinguir a vontade da inexorabilidade? Por leitura hipertextual, a música conduz-me à pintura, Beethoven conduz-me a Goya. E penso se o pintor espanhol (ou o seu aprendiz que rubricou O Colosso) estaria a pensar em nós ao criar esta indistinta e assustadora visão do futuro. 






            * A tradução é minha: original em http://net.lib.byu.edu/english/WWI/influence/MCMXIV.html.
            

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Bandas Sonoras

           O filme Gladiador, realizado em 2000 por Ridley Scott, havia de ter na sociedade portuguesa uma importância impossível de imaginar aquando da sua estreia. Não porque se tenha afirmado como um marco cinematográfico, não porque tenha influenciado de algum modo o cinema português, nem tão pouco porque o filme tenha batido recordes de bilheteira por estes lados. De facto, a importância da película, e muito particularmente da sua banda sonora (composta por Hans Zimmer, um veterano dos filmes de Hollywood) para a sociedade portuguesa radica num facto posterior e completamente extra-cinematográfico: as eleições legislativas de 2005, e a escolha da música mais marcante do filme como banda sonora da campanha do Partido Socialista. O efeito social disto é algo que só poderemos explicar com ajuda dessa disciplina inventada por Saussurre, a semiótica. Com efeito, desde então, o primeiro andamento da faixa três, intitulada A Batalha (que no filme constitui o ambiente musical de uma das últimas batalhas de expansão da Roma Imperial) enraizou-se na imagética musical portuguesa enquanto significante de um significado extremamente dinâmico, mais precisamente, José Sócrates. 


         O upgrade que isto representou em relação à anterior campanha socialista vitoriosa, a de António Guterres, é expressivo. Guterres havia ido buscar o Vangelis, uma coisa muito em voga nos anos 90, com uma trilha sonora que aludia a mares e navegações, assim prometendo novos descobrimentos. A força da música radicava nessa ideia, de que Guterres era um mero mensageiro, do progresso inevitável. Muito socialista, portanto.


     Sócrates foi, no entanto, e em consonância com o Zeitgeist, muito mais longe na pessoalização da campanha. Para ele, isso dos amanhãs que cantam era coisa de comunistas bafientos. A política, na realidade, é um campo de batalha e ele era um gladiador. Com o seu teleponto e o seu fato de bom corte estraçalharia líderes da oposição às dúzias, como o Maximus do filme limpava feras e musculados núbios, quase sem sujar a armadura. Ele, e não qualquer partido, era a esperança, o salvador de Roma, aliás, Portugal. A força da banda sonora deixara de ser, como com Guterres, uma ideia, para passar a ser um homem. De resto, Sócrates tinha pinta. Ao contrário de Guterres, que na melhor das hipóteses evocava um Gama rechonchudo, Sócrates saía-se bem no papel de atleta clássico, ele que gostava de correr em visitas de estado e era exímio no pugilato verbal.
        Foi, portanto, com um sentimento de decepção estética que assisti ao seu discurso de despedida, aquando das últimas eleições que deram a vitória ao PSD. Esperava mais, sinceramente. Imaginei que Sócrates sairia, em coerência com o papel que até então havia representado, como um gladiador tombado em glória. O filme poderia, de resto, ter proporcionado um apropriado inter-texto visual e sonoro: Maximus caindo na areia, rodeado pela consternação veneradora do coliseu, redimido pela música Agora somos livres, na voz de Lisa Gerrard. 


         Sócrates poderia ter optado por algo assim: seria poderosíssimo do ponto de vista semiótico, e cairia bem a um homem com uma noção tão aguda da estética no confronto político. Teria sido certamente muito mais dignificante do que aquela rebaldaria com jotas ululantes e jornalistas a fazer perguntas aborrecidas, do género, e agora que já não é primeiro-ministro, vai ser preso?

             * Após uma pesquisa descobri um detalhe interessante: a música da campanha de Guterres, A Conquista do Paraíso, pertence à banda sonora do filme homónimo, de Ridley Scott. Será o realizador militante do PS?

segunda-feira, 4 de julho de 2011

The King's Speech, Tom Hooper (2010)

   
      Vi Colin Firth em A Single Man há uns tempos (http://a-espera-de-godot.blogspot.com/2010/05/single-man-tom-ford-2009.html). Na altura foi uma surpresa; desta vez já não. As expectativas iam, portanto, extremamente elevadas para este filme. Para mais, tive de esperar bastante tempo para o ver: com efeito, demorou um pouco a chegar ao Cineclube de Guimarães…
        Lembro-me de ouvir na rádio uma entrevista ao Colin Firth, na sequência dos Óscares. Dizia, e cito de cor, não saber grande coisa sobre Jorge VI antes de ser abordado para o papel; ficou surpreendido quando começou a estudar a figura histórica ao descobrir a “história de uma dignidade tranquila”. O perfil do papel assemelha-se, portanto, àquilo que Firth fez em A Single Man.
                                No entanto, ao contrário do filme anterior, que era em boa medida um one-man-show, em The King’s Speech há também Geoffrey Rush e Helena Bonham Carter. Ingleses, ou quase (Rush é australiano), estes actores fazem-me sempre pensar em palcos de teatro, mais do que em telas de cinema. E, por conseguinte, fazem-me também pensar na figura tutelar da literatura inglesa. O filme é, de certo modo, um tributo, um filme de actores, aparentemente feito para homenagear esse outro autor, William Shakespeare. As referências abundam: inter-textos shakespearianos, de Macbeth a Hamlet, peças sobre reis assombrados pelos seus predecessores, peças sobre a audácia e o medo, bom… Quando se fala de Shakespeare é mais fácil dizer, simplesmente, peças sobre tudo, até sobre o que ainda não foi sequer sonhado.
                             Reverbera, ainda a propósito de Shakespeare, o comentário de Jorge V sobre a rádio. Na Inglaterra isabelina, no tempo em que o Bardo pisou os palcos, a reputação social dos actores era baixa. Ralé entre a ralé, era assim que estes eram vistos, ainda que nas suas vozes os maiores heróis da História regressassem à vida transmutados em poesia. O velho rei Jorge V, depois de uma pausada saudação de Natal aos seus súbditos transmitida na rádio, repreende o seu filho gago. Os líderes do séc. XX teriam de falar para rádios (e televisões, depois). Teriam de sorrir e de acenar, teriam de inspirar multidões. Teriam de descer à categoria da ralé entre a ralé, teriam, em suma, de ser actores.      

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Ouvindo rádio pela Nacional 105 fora


Uma viagem de cerca de uma hora entre o Porto e Guimarães ouvindo rádio. Não pertenço ao grupo maioritário de pessoas que apenas se ligam a este meio de comunicação de massas quando conduz: a ilustrá-lo tenho o facto de não ter televisão em casa. Sim, é chocante, mas desabituei-me quando era estudante (de licenciatura (pois verdadeiramente nunca deixei de o ser…): cheguei, nessa altura, à conclusão de que aquilo que a televisão me dava era muito inferior em importância àquilo que me tirava. Ouço rádio, portanto, todos os dias. Gosto do facto de não ser um meio de comunicação totalmente absorvente, como acontece com a televisão. Pode-se ouvir rádio enquanto se trabalha, por exemplo. Ou enquanto se conduz.
Conduzia eu portanto, pacata e serenamente, gozando o vento primaveril, ouvindo rádio. Gosto de conversa, mais do que de música. A música, de um modo muito pós-moderno, prefiro-a em mp3, à minha escolha. Não sou, no entanto, tão sectário que não aceite uma sugestão antes das notícias à hora certa. De facto, uma canção de que se goste, quando passada na rádio, tem um sabor especial: como se alguém no-la tivesse oferecido. Mas hoje fartei-me. Fartei-me de Fado. E a certa altura premi mesmo, com alguma fúria, o botão 6, correspondente à TSF. Irra, que já não suporto o banho diário de Fado que a Antena 1 me impinge!
Atentemos nesta problemática do Fado. Tempos houve em que havia a Amália e mais dois ou três. E ouvia-se, e era bom. Hoje os fadistas proliferam, na mesma proporção em que há uns anos proliferavam os psicólogos: virava-se uma pedra num canto de um baldio e lá estava um! Parece haver mesmo uma correlação. Há dias ouvi uma entrevista a uma recém-licenciada em direito que, não tendo emprego na sua área, se havia dedicado ao Fado: cantará ela decretos regulamentares, alíneas do código civil e emendas constitucionais? E se todos os jovens à rasca derem em fadistas? Quem é que o FMI vai encontrar por cá para pagar as dívidas? Meia dúzia de bêbados saudosos, como nos quadros do José Malhoa (o pintor, não o cantor)?
Se fosse só isso até se perdoava. E até teria a sua piada, dentro de certos limites. Afinal, um povo que até nos seus maiores defeitos sabe encontrar consolações poéticas não pode estar inteiramente perdido. Mas depois há aquela palavra que se repete até ao enjoo, em cada canção, em cada verso, em cada mínima, em cada colcheia… Lisboa para aqui, Lisboa acolá, Lisboa é bonita, Lisboa cheira bem, Lisboa dorme, acorda, adormece, Lisboa tem colinas, Lisboa tem rio, Lisboa tem céu, ruas, casas e carros… Ena, que Lisboa tem tanta coisa a torná-la especial que mil canções não chegam! Até que chega ao ponto em que a simples evocação de Lisboa já não basta: é preciso desdobrá-la em zonas, ruas e bairros para dar para mais canções. E ele é o homem do Saldanha, a viela da Mouraria, o rio em Belém, os telhados em Alfama, o cotovelo no Castelo, a varina da Ribeira, o pombo do Rossio, o poste no Lumiar, o engarrafamento na Pontinha, o ecoponto no Senhor Roubado, tudo serve para arrancar mais uns versitos à exaurida imaginação. Alguém se lembrou, no meio desta vertigem de fadistas, que o país tem mais 89970 quilómetros quadrados de superfície?
Conduzo pela nacional 105 fora (o facto de a A7 ser demasiado cara para o meu sensível bolso daria, só por si, um belo fadinho) e olho em redor, e penso... Porque não o Fado da desindustrialização? Que tal uma guitarrada acompanhando uma lamentação sobre o triste fado da fábrica do rio Vizela? Podia ser algo como “Povo que labutavas na linha/que talhas com teus subsídios/os cofres da nação”… Mesmo não indo tão longe, que tal subir a A1 (que lá se chama auto-estrada do norte) e passar uns fados de Coimbra de vez em quando, só para variar? Obviamente já não me atrevo a mencionar o facto de que há muita música de raiz tradicional neste país, que praticamente todas as regiões têm a sua identidade musical própria, e que em todas elas bandas desconhecidas procedem a interessantíssimas reinvenções desse património. Porque se insiste tanto, então, nesse género cada vez mais anquilosado e auto-complacente?
É fado mesmo, no sentido de fatum, destino. É a forma que o país tem de se lamentar da triste sina do FMI. Por isso há tanta Lisboa no Fado: afinal foi por lá que o desgoverno se aninhou ao longo dos nossos remediados séculos de história pátria. Lisboa cheira bem porque nunca teve de suar; isso é coisa para minhotos, transmontanos e beirões. E o papalvo provinciano acha graça. Já Eça os retratava, descendo o Chiado, rudes morgados que vinham, nos seus jaquetões coçados, receber as decadentes flores da civilização… Agora conduzem Audis A8, são eleitos por Vila Real e têm ajudas de custo.
Um dos temas mais recorrentes da nossa história é a forma como Lisboa, como forma de justificar o seu predomínio político, exporta o seu imaginário para o resto do país. Qualquer pessoa que já tenha visto a Marisa cantar as gaivotas do Tejo em Freixo de Espada à Cinta sabe ao que me refiro. Somos levados a identificar-nos culturalmente com varinas descalças quando vivemos a cinco horas de carro da praia mais próxima. Impingem-nos uma alma que não é nossa, martelam-nos essa alma nos ouvidos, até que entre, com toda a força de um sistema público de rádio e televisão que, como tudo neste país, está em Lisboa.
Por favor, dêem-me um movimento independentista… Os golos do FCP, só por si, já não me consolam. 

segunda-feira, 28 de março de 2011

O castanheiro de Anne Frank


      A memória só se cumpre se nos ensinar algo sobre o presente. Uma parte significativa da minha ideia de Europa (aludo aqui, obviamente, ao ensaio de George Steiner) foi construída lendo o Diário de Anne Frank. Ocorre-me isto lendo, sobre o pano de fundo da actual crise europeia, sobre o castanheiro que Anne Frank mencionou, por diversas vezes, no seu diário, ao longo dos anos negros do domínio continental da Alemanha Nazi. A árvore morreu em Agosto do ano passado, derrubada por uma tempestade (afinal, nem todas as árvores morrem de pé), tendo vários rebentos sido espalhados por diversos locais nos Estados Unidos (no fim de contas, a par de Israel, o percurso normal para muitos judeus europeus depois da guerra). Agora que a Primavera regressa apetece citar as linhas da jovem judia alemã, numa manhã de finais de Fevereiro de 1944: “Quase todas as manhãs vou ao sótão tirar a poeira dos meus pulmões. Do meu lugar favorito no chão, olho para o céu azul e o castanheiro desfolhado, em cujos galhos brilham pequenas gotas de chuva, como prata, vejo ainda gaivotas e outros pássaros que deslizam no vento. Enquanto isto existir, e quero viver para ver, estes raios de sol o céu azul - enquanto isto durar, não poderei ser infeliz.”
        A árvore caiu, mas a torre da Westerkerk continua, certamente, a fazer soar as horas em Amesterdão, ecoando palavras escritas, no auge da guerra e do horror: “corações ao alto”, melhores tempos virão. Dá, certamente, para fazer corar de vergonha os europeus de hoje, aflitos com a crise das dívidas soberanas…

segunda-feira, 7 de março de 2011

Considerações a propósito dos caretos de Podence


         O turismo pode fossilizar, através de uma certa romantização, a cultura de um determinado local ou comunidade, transformando-os numa espécie de museu ou parque temático. A consagração de uma “geografia de atracções” e a criação de “parques temáticos etnográficos” têm esse efeito perverso de desvitalizar a cultura, precisamente pela obsessão na sua conservação.
      É mais ou menos isto que retiro dum parágrafo do livro “Issues in Cultural Tourism Studies”, de Melanie K. Smith, que ando a ler como parte de um safari académico com vista à preparação da minha dissertação de mestrado. A experiência permite-me, em simultâneo, um contraponto interessante: estive, ontem, em Podence, a propósito do Carnaval dos Caretos.
         Os caretos de Podence (na foto) são uma reminiscência comunitária de um certo paganismo transmontano que assume, ainda hoje, muitas formas. Trata-se, tradicionalmente, de um rito de passagem, em que os rapazes, mascarados, corriam a aldeia em busca de mulheres solteiras, com o objectivo de as chocalhar. Há vários Entrudos deste género em Trás-os-Montes, Beiras e Galiza, mas o de Podence tem sido, nos últimos anos, amplamente divulgado enquanto objecto de interesse turístico. As linhas estruturantes dessa divulgação radicam nas noções de genuinidade (Carnaval Genuíno, lê-se nos cartazes), sendo que à crescente popularidade deste evento não será certamente estranha alguma espécie de reacção àquilo que muitos vêm como uma espécie de neo-colonialismo invertido por parte do Brasil. De facto, cresce alguma irritação com o modelo que pretende transformar, contra todas as evidências (não só de índole cultural como também de natureza climatérica), as nossas cidades ainda invernais em pequenos Rios de Janeiro.
       Um visitante poderia então, romântica e ingenuamente, esperar uma Podence virginal, aninhada no Trás-os-Montes profundo, chocalhando furiosamente em honra dos antepassados. Se fosse um pouco menos ingénuo e mais realista, poderia compreender que as barraquinhas de venda de produtos tradicionais são uma saudável concessão ao moderno capitalismo (afinal, os aldeões também precisam de viver). Após um passeio pela aldeia, poderia sobrevir um certo desapontamento: tudo isto é divertidíssimo, é certo, mas então e esta nítida impressão de que os caretos chocalham para turista ver?
       E aqui, a inocência deveria cair. Nesse momento, um visitante pouco inteligente sentir-se-ia algo defraudado. O momento mais interessante para um visitante mais informado e reflexivo estaria, no entanto, ainda para chegar: o instante em que o fatigado careto tira o colorido fato de lã, guarda a máscara e entra no BMW para regressar ao Porto. OK, e então? Os caretos também precisam de ganhar a vida, e as oportunidades de emprego no interior não são as melhores…
        Se o turismo cultural é uma forma de desvendar e desenvolver identidades (e não apenas um afago existencial a um turista que chega, essencialmente, para confirmar os seus próprios preconceitos), então posso considerar o Carnaval de Podence um bom exemplo dessa tendência. Se viajamos para aprender a fazer perguntas sobre o Outro, e não apenas para construirmos respostas apressadas sobre nós próprios, então pode ser que aprendamos algo em Podence. O que representa melhor o Trás-os-Montes actual: a suposta genuinidade de um rito ancestral ou a participação, aos fins-de-semana, na vida da terra de pessoas que trabalham no litoral? Existe uma tensão entre o antigo e o moderno, ou é o moderno que se define e constrói com recurso ao antigo? Qual é a verdadeira geografia de Trás-os-Montes: o proverbial isolamento, moderna e mediaticamente revisitado em estradas inadequadas e caminhos-de-ferro encerrados, ou a revisitação pendular dos filhos da terra que regressam, nas férias e nos fins-de-semana, para fazer coisas outrora inimagináveis? O que é, então, a cultura: um conjunto de tradições semi-esquecidas e marginalizadas, ou o tecido social vivo que flui e reflui, de uma forma cada vez mais móvel e imprevisível?
                 Serão estes caretos pós-modernos menos genuínos? Sou eu menos transmontano do que um pastor de uma qualquer aldeia do distrito de Bragança? Não me parece.


                    Bibliografia: SMITH, Melanie K. (2009). Issues in Cultural Tourism Studies. Abingdon: Routledge

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

L'Illusionniste, Sylvain Chomet (2010)

          
                 Gosto de filmes de animação. Dos clássicos da Disney aos modernos filmes da Pixar, passando pelo anime japonês. Talvez como a consequência óbvia de uma boa parte da minha formação literária ter passado pela banda desenhada: quadrinhos (como diziam nas edições brasileiras tão comuns nos anos 80 e 90) do Pato Donald, Tio Patinhas, Rato Mickey, Pateta, livros do Tintim (que continuo a ler e reler avidamente), tiras da Mafalda, super-heróis da Marvel… É natural, portanto, que a animação seja uma parte importante das minhas preferências cinéfilas. Isto, claro, muito para lá da discussão sobre se a animação tradicional, a lápis ou plasticina, é melhor ou pior do que a moderna animação feita por computador. Pouco me interessa, francamente. O cinema é arte, e os métodos servem a arte, ponto. Importa, essencialmente, que as imagens comovam, impressionem, façam sonhar. Não se trata de substância ou substrato intelectual, se é europeu ou de Hollywood, não é mesmo à qualidade do argumento que me refiro. Ainda que o cinema seja, de certo modo, a síntese das artes, parece-me que vamos demasiadas vezes ver um filme como quem espera que lhe contem uma história. O cinema é sobretudo imagem. O resto é teatro, literatura, música…
                Os filmes de Jacques Tati têm essa qualidade. Reduzidíssimos no uso da palavra e habitualmente desprovidos de uma linearidade narrativa convencional, são cinema depurado. Cinema como já não se faz. Fica-se, neste filme, com a impressão vagamente deprimente que nos despedimos definitivamente de Monsieur Hulot. Ele, que já era frequentemente um estranho nos seus próprios filmes, em que interpelava, do lado do passado, a modernidade hiper-tecnológica então emergente, reaparece-nos neste filme, cansado e de olheiras fundas: uma recordação, uma fotografia antiga, um desenho animado… Há, de facto, em certos filmes, o mérito de nos fazerem recordar a magia inicial do cinema: aquele elemento que fazia multidões embasbacar diante de uma lanterna mágica, que fazia filas diante de bilheteiras, que fazia delirar gente crescida com uma coboiada ou que fazia uma sala inteira gritar de pavor com um carro acelerando em direcção à câmara… Esse elemento que mais não era do que a materialização do sonho.
              É na evocação do sonho que reside a beleza deste filme. Dos majestosos nevoeiros escoceses, por entre os quais se adivinham oníricos castelos; dos comboios, quando estes ainda metaforizavam a vida que se partilhava entre dois apeadeiros; de Paris, e de Montmarte, quando nas suas vielas ainda fluía a boémia cantada por Aznavour. E, essencialmente, na evocação das pessoas que viviam de fazer sonhar: dos ilusionistas, quando estes ainda eram mágicos; dos palhaços, antes de estes se tornarem mais trágicos do que cómicos; dos ventríloquos e dos trapezistas. É um longo crepúsculo de cores quentes matizadas de sépia, este filme. Os últimos lampejos de sonho antes do moderno e implacável mundo consumista, os acordes finais da chanson francesa antes da supremacia global anglo-saxónica, os derradeiros laivos de tendresse antes do sex, drugs and rock’n’roll

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O rosé do Sr. Oliveira de Figueira

      Oliveira de Figueira é uma personagem dos livros do Tintim. Português do mundo, será quiçá um dos últimos dessa ínclita cepa de andarilhos desafortunados que peregrinaram por mares e continentes. Como o da outra peregrinação, a Peregrinaçam, de Fernão Mendes Pinto. E tal como este, também a do Sr. Oliveira de Figueira se adivinha suada. Mas, e o paralelismo prossegue, lábia não lhe falta, e muito portuguesmente o homem desenrasca-se sempre. A ele e ao Tintim que acaba sempre por lhe bater à porta aflito.
        Oliveira de Figueira é um comerciante que roça o charlatanismo, capaz de vender gelo a esquimós ou, como mais vulgarmente acontece, equipamento de esqui a árabes. Com efeito, Oliveira de Figueira parece ter assentado arraiais nas arábias, paisagem de eleição para Hergé.
    E é no Kehmed (país árabe fictício no centro de uma intriga petrolífera internacional) que ocorre a cena que aqui destaco. Trata-se de uma vinheta que me saltou à vista logo da primeira vez que a li pela referência explícita e bastante surpreendente a Portugal. Tintim chega, acossado por perseguidores, acompanhado por um exausto capitão Haddock. Despertado pelo rosé que o português servira para amenizar a conversa, o capitão faz a cortesia de esvaziar uma garrafa antes de cair num profundo sono. Subitamente, convulsionado por sabe-se lá que pesadelos, o capitão ergue o punho (esquerdo) e grita um sonoro “Às armas!”. Intrigado na sua portugalidade, o Sr. Oliveira de Figueira corresponde com um verde-rubro balão de espantada interrogação e exclamação.


        O que quer isto dizer? Súbito entusiasmo lusitanista (quiçá motivado pelo rosé)? Referência lateral ao tráfico de armas que subjaz à intriga do livro? Mas então e aquele punho esquerdo erguido? Haverá ali leituras políticas a fazer? O livro é de 1958, momento em que a ditadura do Estado Novo começava a ser seriamente questionada pelo mundo. Hergé não dá respostas, o Sr. Oliveira de Figueira também não, pelo que não vou ser eu a dá-las.