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sábado, 28 de julho de 2012

Dracula, Bram Stoker (1897)

Nosferatu, de Murnau, tem um Drácula nitidamente mais assustador, mas Bela Lugosi (Dracula, 1931) está certamente muito mais próximo da sensualidade opressora da personagem original. 

         Uma característica dos clássicos é a sua capacidade de reverberar significativamente no tempo. Nisso, eles são mitos reinventados: aglomerados de conceitos que são sempre passíveis de mobilização na reflexão sobre a realidade do tempo que vivemos. A figura do Drácula é um dos grandes referentes significativos da fantasia moderna, e a responsabilidade por essa presença perene é do escritor irlandês (essa ilha em que a literatura nasce por entre as ervas) Bram Stoker. Foi ele que, a partir de algumas histórias provenientes do folclore leste-europeu, modernizou e imortalizou o vampiro. E, agora que a moda dos vampiros parece ter passado um pouco, decidi-me a ler o livro.
         O vampiro tem associadas duas interpretações principais: a sexual e a político-económica. Por um lado, o vampiro suga a energia vital das mulheres que inexoravelmente se lhe entregam, numa aparente anulação da vontade própria; por outro, a criatura exerce um domínio tirânico, nitidamente feudal, sobre a região em que o seu sinistro castelo assenta. Stoker interliga estas duas dimensões e acrescenta outras, o que cria um denso tecido significativo, em que as interpretações possíveis são necessariamente tão etéreas e precárias como a própria atmosfera do Castelo Drácula (os castelos que, pelo menos desde Hamlet, são sinónimos de labirinto, de indecisão, de traição). 
          A sexualização da figura do vampiro é feita, de acordo com as convenções colonialistas, com recurso ao imaginário oriental. A primeira (e mais demoradamente detalhada) viagem de comboio até à Transilvânia vibra com a descrição de um ambiente crescentemente irreal em que a lógica restrita do positivismo ocidental é continuamente desafiada. O oriente europeu é um lamaçal enevoado, um local escorregadio em que os povos se sucederam sem se extinguir: cidades com nomes em diversas línguas, etnias difusas e uma religião compósita de superstição e paganismo. Neste local emerge o Drácula, uma sombra secular que, de certo modo, personifica o subconsciente da Europa: a secreta memória da sua precariedade passada e o horror mal arrumado da sua ascensão imperial. Drácula ataca a civilização europeia com forças obscuras que não lhe são, contudo, inteiramente exteriores: daí o horror, pois o verdadeiro horror é o que adivinhamos dentro de nós e o monstro mais perturbador é aquele que adivinhamos na nossa própria imagem distorcida pelo espelho da realidade nua e crua. Drácula ataca, por exemplo, com a carnalidade descontrolada do desejo erótico, assim subvertendo toda a idealização romântica que garante o controlo das condutas sexuais civilizadas. Nada, no entanto, é muito seguro no que diz respeito aos papéis de género em Dracula. Se Lucy Westenra é apenas um objeto sexual, uma mulher que apenas existe em função da disputa dos machos e que facilmente sucumbe à dentada do vampiro, já Mina Harker vai muito para lá da figura clássica da donzela em perigo. Nesta linha, o livro pode ser lido também como uma crónica de autonomização feminina: as relações entre ela e o marido traem um nítido ascendente feminino; Mina escreve, quer como estenógrafa, quer como diarista, ou seja, tem uma voz perfeitamente autónoma na obra; e Mina resiste ativamente ao vampiro, articulando contra ele uma energia primordial de que, porventura, só o louco no asilo do Dr. Seward é capaz. 
        Esta força feminina autónoma (o desejo sexual femininamente articulado) é a essência do verdadeiro horror no livro. É a partir desse horror que se criam todos os outros: a subversão da ordem social, temida na forma da potencial vampirização de toda a gente, é temida essencialmente na forma de um fenómeno de libertação sexual. A dentada do vampiro é uma caixa de Pandora cheia de energias primitivas, irracionais, orientais. É contra essas energias que a civilização ocidental, personalizada nas figuras masculinas, se mobiliza: Jonathan Harker, o burguês em ascensão; Lord Godalming, o aristocrata em decadência; John Seward, o cientista metódico e cético; Quincey Morris, o novo mundo, a América, com as suas novas formas de imperialismo aventureiro; e van Helsing, o saber acumulado da velha Europa. Mina Harker, a mulher burguesa, é certamente um prémio disputado entre forças agónicas; mas ela mesma joga ativamente o jogo da sua própria construção, articulando inteligentemente a sua posição precária entre as duas alternativas masculinas que lhe são propostas (a luxúria vampiresca e a castidade puritana).
         Mas o vampiro é também um animal económico e politico. Drácula é rico, imensamente rico. A sua origem é aristocrática, e terá certamente havido uma justificação heroica para tal: a seu tempo, ele terá sido um verdadeiro aristocrata no sentido grego, excelente entre os excelentes, um brutal guardião da Europa face à ameaça turca. Depois, e à medida que a sua função guerreira foi perdendo importância, Drácula ficou por ali: um cadáver histórico vivendo do trabalho dos seus camponeses, sugando-lhes o sangue e a vida. No entanto, tirânico como era, o domínio feudal de Drácula tinha pelo menos um rosto: os camponeses sabiam quem os explorava, e seria legítimo pensar que, caso tivessem força para tal, poderiam subir a encosta do sinistro castelo, procurar o vampiro adormecido no seu caixão e decapitá-lo (como os franceses fizeram a Luís XVI). No entanto, Drácula não é parvo. Apercebendo-se da crescente hostilidade do seu campesinato (e aborrecido com a monotonia das rudes gargantas eslavas), o aristocrata muda-se para Londres. Aí, a sua riqueza torna-se mais fluída. Drácula deixa de andar com moedas de ouro em sacos e converte-se rapidamente às comodidades do capitalismo financeiro. Atraído pelas oportunidades oferecidas pela capital industrial do mundo, o vampiro compra diversas propriedades em Londres a partir das quais espera viver tranquila e anonimamente do muito mais variado e produtivo sangue do proletariado.  
       Estas duas temáticas, a político-económica e a sexual, conjugam-se na questão do colonialismo, tratada por Stoker tanto na sua versão expansiva (os impérios coloniais europeus), como regressiva (a imigração, para a metrópole, dos colonizados). Neste último aspeto o autor é verdadeiramente visionário: muito antes de tempo Stoker encena várias características fundamentais da nossa época: a imigração, os fluxos anónimos de capitais e o turismo de massas, por exemplo. Esta última é particularmente notável, pois Drácula faz uma interessantíssima ponte entre o colonialismo e o turismo. De facto, há algo de irónico na forma como o livro fecha: morto o vampiro, as personagens regressam à Transilvânia em passeio. Uma vez dominada a alteridade radical da paisagem estrangeira, o caminho está aberto à transformação da mesma num agradável roteiro: belas paisagens, suaves caleches, povo simples, pobre e solícito, e um leve frisson de mistério compõem o postal final de Mina e companhia, em excursão pela agora pitoresca Transilvânia. Pobre Drácula, em suma: séculos depois de resistir às investidas do Turco sucumbe assim, ingloriamente, ao império global do olhar turístico.



sexta-feira, 29 de junho de 2012

Tony Judt, Ill Fares the Land (Um Tratado Sobre os Nossos Atuais Descontentamentos), 2010


           Se houve um elemento verdadeiramente fulcral na construção da(s) sociedade(s) europeia(s) ao longo do período que se estende do pós-guerra até ao final da década de oitenta esse elemento é o medo. O medo foi o verdadeiro catalisador de todos os projetos unificadores na Europa, projetos esses que se dividem em duas frentes de intervenção principais: por um lado, toda a linha que começa com a cooperação comercial entre estados e que se estende até ao esboço de uma unidade política europeia; por outro, a construção, diversamente empreendida pelos diferentes países, de um modelo social que entendemos como especificamente Europeu. Em ambas as frentes, a energia política que possibilitou a construção de edifícios institucionais tão substanciais e historicamente tão improváveis veio do medo: medo dos tanques soviéticos que estavam logo ali, estacionados em Berlim; medo das próprias animosidades internas europeias, notavelmente a rivalidade franco-alemã, que já haviam conduzido a duas guerras colossais; medo da degradação económica e das desigualdades sociais que nutrem as sublevações dos povos, particularmente quando por todo o mundo vibrava o rastilho da bandeira vermelha. Em suma, medo. 
              Os europeus tinham, nesses anos, e apesar de hoje olharmos esses tempos como uma espécie de era dourada (os trente glorieuses, na famosa formulação francesa, mas também o Wirtschaftswunder alemão e o miracolo economico italiano) uma consciência aguda da sua precariedade e da sua crescente insignificância num mundo que, de quintal europeu, passara a albergar diversas alternativas à narrativa progressista ocidental. Os líderes europeus de então tinham a plena noção de que navegavam entre Cila e Caríbdis, e agiam com uma clara consciência moral das suas responsabilidades que eram, essencialmente, criar razões para viver no medo, sem o perder de vista, mas estimulando a agregação e coesão das sociedades, assim mantendo viva uma narrativa de destino comum que pudesse criar uma alternativa à agressividade dos nacionalismos europeus tradicionais. De uma forma algo prosaica, consistentemente pouco inspiradora e pouco afoita a aventuras imprevisíveis a Europa manteve-se. Prudentemente, ela sobreviveu à queda dos impérios, à destruição da guerra, ao espectro das revoluções. Sobreviveu essencialmente porque soube olhar nos olhos o medo, e fê-lo com a energia que lhe advinha das suas duas principais grandes narrativas históricas: a construção comunitária continental e o modelo social europeu. 
            É fácil acharmos, hoje, que o facto de vivermos na região do mundo humanamente mais desenvolvida é um dado adquirido, uma coisa perfeitamente normal, uma inelutabilidade histórica: nas ruínas de Berlim em 1945, nos campos de concentração polacos, nas ditaduras ibéricas, nos Anos de Chumbo de Itália, nas revoltas estudantis francesas, na depressiva austeridade pós-imperial britânica, em todas estas crises e em muitas mais nada havia, contudo, de particularmente prometedor. Este livro pode ser lido, assim, como uma crónica da perda do medo e do abandono quase generalizado da prudência. Tony Judt é, a esse respeito, um herdeiro fiel de um certo tipo de pensamento político inglês: uma linha que passa por Edmund Burke, por exemplo, e que basicamente defende que as instituições que já sobreviveram a muitas mudanças não devem, em caso algum, ser descartadas de ânimo leve. A construção europeia e o modelo social europeu (a proteção social, os serviços públicos, a taxação progressiva, etc.) serviram-nos admiravelmente ao longo de toda uma era de medo. Mas depois perdemos o medo: os tanques soviéticos foram-se embora, as narrativas revolucionárias supostamente falharam, a prosperidade eterna parecia assegurada pelo novo capitalismo financeiro triunfante e a guerra entre europeus parecia indefinidamente remetida para o ersatz agónico dos campeonatos de futebol. A ausência do medo permitiu-nos tudo durante duas décadas loucas: no meio da exaltação generalizada do indivíduo absoluto generalizou-se a opinião de que as formas de provisão coletivas mais não eram do que um empecilho, e de que a política se resumia à libertação infinita do novo Homem privado. Identidades, sexualidades e demais subjetividades individuais tomaram de assalto o espaço público: falar de poder, desigualdade, redistribuição, coesão e coletivo simplesmente deixou de ser cool. A pulverização pós-moderna das subjetividades, assim trazida para o meio da polis, redundou num niilismo político hegemónico e num esvaziamento semântico dos estandartes ideológicos: com o tempo, fomos perdendo a capacidade de pensar e falar politicamente. 
          É neste ambiente atual, em que os políticos estão reduzidos a papagaios e os cidadãos a consumidores que o medo regressa e nos apanha desprevenidos. Terrorismo, crise económica, desemprego, desagregação financeira, globalização, catástrofe ecológica iminente, ameaças muito piores do que os tanques soviéticos ou a revolução vermelha, incertezas que nos atingem naquilo que mais profundamente nos define: o nosso quotidiano, a nossa mesa, as nossas poupanças, a nossa subitamente redescoberta fragilidade enquanto indivíduos insignificantes que verdadeiramente nunca deixámos de ser. As armas para enfrentar este medo têm de estar, como sempre estiveram, na reinvenção de uma linguagem coletiva: uma verdadeira linguagem que possa ser a semente da ação.  
 

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

The Adventures of Tintin: the Secret of the Unicorn, Steven Spielberg (2011)




                Sempre gostei de banda-desenhada em geral, e do Tintim em particular. Lembro-me bastante bem da primeira vez que li um livro da personagem, embora não tenha a certeza absoluta se era A Ilha Negra ou O Cetro de Ottokar. Dei com o álbum na biblioteca da escola preparatória, andava eu no 5.º ano, e daí foi certamente um passo rápido para o encantamento. Da linha, da cor, da aventura, mas essencialmente da viagem. E, fosse num país balcânico imaginário, fosse sob os céus plúmbeos da Escócia, soube-me bem viajar naquelas pausas antes das aulas da tarde, a seguir ao intragável almoço na cantina (sei que todos os alunos se queixam das cantinas mas, acreditem, eu tinha razões para isso).

A Ilha Negra (clique para aumentar)

           Não voltei a encontrar-me com o Tintim durante bastantes anos. De facto redescobri-o apenas quando o jornal Público disponibilizou, a preço de saldo, a coleção completa das suas aventuras. Nessa altura eu já não era propriamente uma criança. O encantamento, no entanto, permaneceu: com efeito o Tintim mostrou-me, para meu agrado, que a minha predisposição para o deleite só aumentou com os anos. E essa constatação dá-me argumentos para superar o habitual preconceito sobre o que é para crianças e jovens e o que é para adultos. De facto, porque é que aquilo que realmente nos deleitou em miúdos tem de ser tão implacavelmente deitado fora só porque nos tornamos adultos? Não, há coisas que o próprio tempo se encarrega de canonizar, e que assim transcendem essas catalogações fáceis. Portanto, continuei a deixar-me levar pelas aventuras do Tintim. Leio-as e releio-as avidamente, na realidade. E já cheguei, até, a escrever sobre elas, numa determinada altura: http://a-espera-de-godot.blogspot.com/2011_01_01_archive.html.
                   Conheço bastante bem, portanto, o universo das aventuras de Tintim. E, como tal, achei que não devia deixar de ver o recente filme da personagem. Sabia de antemão, como sempre acontece nestas coisas, que o produto podia não me agradar inteiramente, que o mais certo era mesmo não me agradar, mas enfim, deixei-me de purismos e lá pus, como os outros, os óculos 3D. Em último caso, o deleite dos álbuns já ninguém mo tira, pensei. Lembrei-me, no entanto, de umas linhas num ensaio de T. S. Eliot, Tradition and the Individual Talent, no qual é dito que não são apenas os clássicos que influenciam as variações que sobre eles são feitas: de facto, também essas variações moldam as leituras ulteriores dos próprios clássicos. Os álbuns, portanto, já não serão exatamente a mesma coisa depois disto…
            Façamos, portanto, uma apreciação do filme em termos positivos e negativos (atenção: daqui para a frente há spoilers). Comecemos pelos positivos. Graficamente, o filme é interessante. Ainda que não tenha gostado do retrato do Capitão Haddock (estático, exagerado e, face ao original, inexpressivo), a transposição para um modelo semirreal do Tintim está bastante bem feita. O boneco consegue uma síntese perfeita entre o seu original desenhado e o que seria o seu correspondente na vida real. A cena do retrato feito no mercado (não consegui confirmar se o retratista é o próprio Hergé, mas seria bastante inteligente que fosse) é particularmente feliz ao estabelecer essa ligação ao mesmo tempo que faz um tributo aos álbuns. O argumento, centrado nos álbuns O Segredo do Licorne e O Caranguejo das Tenazes de Ouro, parece-me também bastante bem-conseguido ao conseguir fazer referência a elementos de praticamente todos os álbuns. A junção mais forçada é a cena das bolas de bebida disputadas entre o Capitão e Milu, em que as quedas livres da aeronave simulam o efeito de ausência de gravidade que ocorre, na realidade, no álbum Explorando a Lua

Explorando a Lua (clique para aumentar)

Este é um exemplo de como a linha narrativa do filme caminha perigosamente perto de se transformar numa caldeirada de Tintim: penso, de qualquer modo, que tal não é o caso, e essa é definitivamente uma qualidade do argumento.
       No entanto, alguém que não tenha lido nenhum dos álbuns (e aqui entramos na crítica negativa) ficará, apesar disso, com uma visão profundamente errada do que é a série de álbuns do Tintim. A este respeito é interessante interrogar as pequenas diferenças: confesso que não resisti a folhear os dois álbuns que mais explicitamente servem de base ao filme ao chegar a casa. Há, desde logo, as pequenas alterações inexplicáveis. O hidroavião que metralha Tintim, o Capitão Haddock e Milu em alto-mar tem, no álbum, matrícula marroquina. Por que insondável motivo é que no filme lhe põem uma matrícula portuguesa? Uma referência obscura ao facto de haver uma personagem portuguesa nos álbuns (que não aparece no filme)? Mas se o senhor Oliveira da Figueira é uma personagem claramente positiva, que por mais de uma vez ajudou o Tintim, porquê essa despromoção tão grosseira dos portugueses no filme? Porque é que de simpáticos vendedores de bugigangas nos livros passámos a metralhadores de náufragos no cinema? Não bastam já as agências para denegrir a nossa imagem internacional?

O Caranguejo das Tenazes de Ouro (clique para aumentar)

               Outra alteração, essa já mais explicável, é aquela a que é sujeito o xeque Omar ben-Salaad. Tudo bem que nos álbuns este é um traficante de ópio: mas o grau de malvadez a que o filme o eleva é completamente despropositado. O ben-Salaad do álbum faz-se transportar sobre uma mula no meio do seu povo: o do filme vive num palácio híper-sumptuoso, rodeado pelas águas duma barragem a abarrotar enquanto o povo raciona água. A explicação é simples: o público americano não consegue conceber um xeque que não seja um tirano e que não viva no luxo enquanto o povo sofre. A imagem do ben-Salaad original irritaria, portanto, muita daquela gente que acha que a vocação nacional dos Estados Unidos é libertar povos árabes dos seus déspotas. Paradoxalmente (ou não), o Tintim do filme está-se nas tintas para o povo árabe, bem ao contrário do seu modelo desenhado. Bem à moda americana, este Tintim de Spielberg limita-se a destruir completamente uma cidade árabe.

O Caranguejo das Tenazes de Ouro (clique para aumentar)

               Isto leva-nos a outra questão mais profunda. A banda-desenhada franco-belga é diferente dos comics americanos precisamente na medida da contenção. Os heróis franco-belgas são, para todos os efeitos, humanos, o que permite uma identificação mais genuína. Ao ler um comic do Super-Homem eu sei, desde logo, que não posso voar, não posso amparar um Boeing em queda livre, não posso congelar, com um sopro, um vulcão em atividade. O Homem-Aranha ainda se suporta: afinal, Peter Parker é um estudante universitário teso, com um part-time miserável e uma namorada chata a quem calhou a ambígua sorte de ser mordido por uma aranha radioativa (algo que pode, afinal, acontecer a qualquer pessoa). Já o Batman será, porventura, o único herói de comics sem superpoderes, mas aquele hábito de vestir o sobrinho com aquelas roupas coloridas é, no mínimo, suspeito. A banda-desenhada americana alimenta-se, portanto, de uma estética do excesso (e isso é normal, é bom mesmo, afinal habituámo-nos a ela assim). Não exagerarei, no entanto, se disser que é a essa estética que este filme converte o ícone maior da banda-desenhada franco-belga: e disso, no entanto, não gostei, não gostei mesmo nada. Seria expectável, e até desculpável numa certa medida, mas Spielberg exagera. Do ponto de vista de qualquer possibilidade de identificação com a personagem, este Tintim supera o próprio Super-Homem: este Tintim, na realidade, é um Ranger do Texas…
                  Já não falo, aqui, das pequenas diferenças. No álbum Tintim, ao procurar qualquer coisa (o pergaminho) debaixo de um armário agacha-se e apalpa por debaixo do móvel como uma pessoa normal, dando ao levantar-se uma cabeçada na gaveta superior, que estava aberta. 

O Segredo do Licorne (clique para aumentar)

            Nem isso o super-herói de Spielberg pode fazer: fortalhaço como é, arrasta o armário com um golpe decidido de braços. Mas enfim, como dizia, pequenas diferenças. O que já não é uma diferença pequena, mas antes altera completamente a personalidade da personagem, é a constante necessidade de autoafirmação, que toma conta de Tintim, de Haddock e do próprio Milu. Todos passam o filme a tentar provar que são machos carregados de testosterona. Tintim, que nos álbuns só pegava num revolver quando era mesmo preciso, tem no filme dedo leve no gatilho. Haddock é acometido de culpas puritanas, bem ao estilo protestante, sempre que bebe: e bebe de tudo, parecendo mesmo preferir álcool etílico ao scotch que lhe fazia as delícias nos álbuns. E depois tem flatulências, e arrota generosamente, coisa que nunca fez num álbum. E até Milu domina um Rottweiler (que, no álbum, é um dogue alemão). Já não queria pegar pela mirabolante história de vinganças transgeracionais que inventaram para o Capitão mas, enfim, como dizia o outro senhor, não havia necessidade…
                  Aqui há uns anos surgiu uma publicação, que retomava a personagem do Tintim na idade adulta. Milu havia morrido, Haddock mergulhara em definitivo no álcool, e Tintim era um misto de repórter e detetive de film noir com uma vida sexual turbulenta e generosamente povoada. A ideia causou polémica, ao ponto de a publicação ser cancelada. A opinião geral foi de que há limites para o que se pode fazer com uma personagem. A pergunta é: se for Spielberg a fazê-lo, já não há? 

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Entre Beethoven, Larkin e Goya


      A música é o segundo andamento da 7.ª Sinfonia de Beethoven. É um trecho bastante conhecido, que surgiu recentemente enquanto banda sonora do filme O Discurso do Rei


Na banda sonora do filme a música aparece sob o título Speaking unto Nations. Há uma nuance discursiva no título em inglês que o nosso idioma demasiado igualitário não permite retratar exatamente, que é a o significado transmitido pela preposição unto. Falando a nações, portanto, mas falando de cima para baixo. A música transmite sentimentos semelhantes. No filme, podemos lê-la à luz do velho nacionalismo europeu, culminando no momento em que o velho Império Britânico declara guerra à rejuvenescida Alemanha Nazi. Há algo de profundo e subterrâneo, de força de gigante adormecido nos graves lentos dos violoncelos, uma vontade que acorda e progride para os tons mais altos dos violinos. Há, essencialmente, um tom ominoso: uma certa clareza que morrerá, uma inocência e espontaneidade que não mais terão lugar na Europa. Nos versos de Philip Larkin:

Não mais essa inocência,
Nunca antes, ou desde então,
Como transmutando-se em passado
Sem uma palavra – os homens
Deixando jardins bem cuidados,
Os milhares de casamentos,
Durando apenas um pouco mais:
Nunca mais essa inocência.*


          Parafraseando Nietzsche e Leni Riefenstahl, a vontade que se ergue e esmaga sob o seu peso a insustentável leveza das existências simples. A vontade, perguntaremos nós hoje, europeus contemporâneos, mas que vontade? Saberemos nós ainda distinguir a vontade da inexorabilidade? Por leitura hipertextual, a música conduz-me à pintura, Beethoven conduz-me a Goya. E penso se o pintor espanhol (ou o seu aprendiz que rubricou O Colosso) estaria a pensar em nós ao criar esta indistinta e assustadora visão do futuro. 






            * A tradução é minha: original em http://net.lib.byu.edu/english/WWI/influence/MCMXIV.html.
            

segunda-feira, 7 de março de 2011

Considerações a propósito dos caretos de Podence


         O turismo pode fossilizar, através de uma certa romantização, a cultura de um determinado local ou comunidade, transformando-os numa espécie de museu ou parque temático. A consagração de uma “geografia de atracções” e a criação de “parques temáticos etnográficos” têm esse efeito perverso de desvitalizar a cultura, precisamente pela obsessão na sua conservação.
      É mais ou menos isto que retiro dum parágrafo do livro “Issues in Cultural Tourism Studies”, de Melanie K. Smith, que ando a ler como parte de um safari académico com vista à preparação da minha dissertação de mestrado. A experiência permite-me, em simultâneo, um contraponto interessante: estive, ontem, em Podence, a propósito do Carnaval dos Caretos.
         Os caretos de Podence (na foto) são uma reminiscência comunitária de um certo paganismo transmontano que assume, ainda hoje, muitas formas. Trata-se, tradicionalmente, de um rito de passagem, em que os rapazes, mascarados, corriam a aldeia em busca de mulheres solteiras, com o objectivo de as chocalhar. Há vários Entrudos deste género em Trás-os-Montes, Beiras e Galiza, mas o de Podence tem sido, nos últimos anos, amplamente divulgado enquanto objecto de interesse turístico. As linhas estruturantes dessa divulgação radicam nas noções de genuinidade (Carnaval Genuíno, lê-se nos cartazes), sendo que à crescente popularidade deste evento não será certamente estranha alguma espécie de reacção àquilo que muitos vêm como uma espécie de neo-colonialismo invertido por parte do Brasil. De facto, cresce alguma irritação com o modelo que pretende transformar, contra todas as evidências (não só de índole cultural como também de natureza climatérica), as nossas cidades ainda invernais em pequenos Rios de Janeiro.
       Um visitante poderia então, romântica e ingenuamente, esperar uma Podence virginal, aninhada no Trás-os-Montes profundo, chocalhando furiosamente em honra dos antepassados. Se fosse um pouco menos ingénuo e mais realista, poderia compreender que as barraquinhas de venda de produtos tradicionais são uma saudável concessão ao moderno capitalismo (afinal, os aldeões também precisam de viver). Após um passeio pela aldeia, poderia sobrevir um certo desapontamento: tudo isto é divertidíssimo, é certo, mas então e esta nítida impressão de que os caretos chocalham para turista ver?
       E aqui, a inocência deveria cair. Nesse momento, um visitante pouco inteligente sentir-se-ia algo defraudado. O momento mais interessante para um visitante mais informado e reflexivo estaria, no entanto, ainda para chegar: o instante em que o fatigado careto tira o colorido fato de lã, guarda a máscara e entra no BMW para regressar ao Porto. OK, e então? Os caretos também precisam de ganhar a vida, e as oportunidades de emprego no interior não são as melhores…
        Se o turismo cultural é uma forma de desvendar e desenvolver identidades (e não apenas um afago existencial a um turista que chega, essencialmente, para confirmar os seus próprios preconceitos), então posso considerar o Carnaval de Podence um bom exemplo dessa tendência. Se viajamos para aprender a fazer perguntas sobre o Outro, e não apenas para construirmos respostas apressadas sobre nós próprios, então pode ser que aprendamos algo em Podence. O que representa melhor o Trás-os-Montes actual: a suposta genuinidade de um rito ancestral ou a participação, aos fins-de-semana, na vida da terra de pessoas que trabalham no litoral? Existe uma tensão entre o antigo e o moderno, ou é o moderno que se define e constrói com recurso ao antigo? Qual é a verdadeira geografia de Trás-os-Montes: o proverbial isolamento, moderna e mediaticamente revisitado em estradas inadequadas e caminhos-de-ferro encerrados, ou a revisitação pendular dos filhos da terra que regressam, nas férias e nos fins-de-semana, para fazer coisas outrora inimagináveis? O que é, então, a cultura: um conjunto de tradições semi-esquecidas e marginalizadas, ou o tecido social vivo que flui e reflui, de uma forma cada vez mais móvel e imprevisível?
                 Serão estes caretos pós-modernos menos genuínos? Sou eu menos transmontano do que um pastor de uma qualquer aldeia do distrito de Bragança? Não me parece.


                    Bibliografia: SMITH, Melanie K. (2009). Issues in Cultural Tourism Studies. Abingdon: Routledge

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O rosé do Sr. Oliveira de Figueira

      Oliveira de Figueira é uma personagem dos livros do Tintim. Português do mundo, será quiçá um dos últimos dessa ínclita cepa de andarilhos desafortunados que peregrinaram por mares e continentes. Como o da outra peregrinação, a Peregrinaçam, de Fernão Mendes Pinto. E tal como este, também a do Sr. Oliveira de Figueira se adivinha suada. Mas, e o paralelismo prossegue, lábia não lhe falta, e muito portuguesmente o homem desenrasca-se sempre. A ele e ao Tintim que acaba sempre por lhe bater à porta aflito.
        Oliveira de Figueira é um comerciante que roça o charlatanismo, capaz de vender gelo a esquimós ou, como mais vulgarmente acontece, equipamento de esqui a árabes. Com efeito, Oliveira de Figueira parece ter assentado arraiais nas arábias, paisagem de eleição para Hergé.
    E é no Kehmed (país árabe fictício no centro de uma intriga petrolífera internacional) que ocorre a cena que aqui destaco. Trata-se de uma vinheta que me saltou à vista logo da primeira vez que a li pela referência explícita e bastante surpreendente a Portugal. Tintim chega, acossado por perseguidores, acompanhado por um exausto capitão Haddock. Despertado pelo rosé que o português servira para amenizar a conversa, o capitão faz a cortesia de esvaziar uma garrafa antes de cair num profundo sono. Subitamente, convulsionado por sabe-se lá que pesadelos, o capitão ergue o punho (esquerdo) e grita um sonoro “Às armas!”. Intrigado na sua portugalidade, o Sr. Oliveira de Figueira corresponde com um verde-rubro balão de espantada interrogação e exclamação.


        O que quer isto dizer? Súbito entusiasmo lusitanista (quiçá motivado pelo rosé)? Referência lateral ao tráfico de armas que subjaz à intriga do livro? Mas então e aquele punho esquerdo erguido? Haverá ali leituras políticas a fazer? O livro é de 1958, momento em que a ditadura do Estado Novo começava a ser seriamente questionada pelo mundo. Hergé não dá respostas, o Sr. Oliveira de Figueira também não, pelo que não vou ser eu a dá-las.  


terça-feira, 28 de setembro de 2010

José Mattoso, Susanne Daveau e Duarte Belo: Portugal, O Sabor da Terra


           Li o livro há já algum tempo. Entretanto, fui de férias: saída de Guimarães, travessia rápida (mas deslumbrante, como sempre) do vale do Douro, descida pela Beira Alta, exploração afincada dos recantos da serra da Estrela, súbita plana tranquilidade da Beira Baixa, entrada plena no Alentejo profundo, mergulho com o olhar nas águas do Alqueva do alto de Monsaraz, esfuziante costa algarvia, mais Alentejo, chuvas de Agosto pelas báquicas colinas Estremenhas e regresso ao Norte, enfim. Quase 2500 quilómetros, o espaço de meia Europa preenchida com (muito) diversa portugalidade.


        Não surpreende, como tal, que tenha lido o livro como uma espécie de preparação teórica para a viagem que se avizinhava. O título, de resto é suficientemente poético para fazer sonhar, enquanto o subtítulo resguarda uma decidida promessa de respeitável rigor científico. E assim é, com efeito.


           Muito mais recentemente decidi-me a escrever duas palavras sobre este livro durante uma viagem entre Mirandela e Guimarães. Afinal, o Norte é o meu espaço natural (sou transmontano, vivo em Guimarães, com o Porto como Alma Mater e uma marcante passagem por Leiria). Conduzindo pela estrada nacional que liga Murça a Vila Pouca de Aguiar, contemplando a paisagem alterada pela distância percorrida, interrogava-me sobre essa relação ambígua que mantemos com a terra. Parado numa reentrância da estrada, com muitas dezenas de quilómetros quadrados aos meus pés, de mapa na mão e olhar esquadrinhando o relevo, tive a impressão de que, mais do que qualquer mistério telúrico, era a mim próprio que procurava. Ali, por detrás da serra dos Passos, Mirandela, a cidade onde cresci; para lá da Nogueira, a última elevação visível no horizonte, fica Bragança, onde nasci. Diante de mim, a serra do Faro, balizando o vale do Tua, rio em que nadei, apanhei rãs e cobras de água, plácido curso de água a cuja beira li histórias de mares e países distantes. Muito ao longe adivinha-se o majestoso vale do Douro, rio que via da janela nos meus anos de estudante universitário. Tudo isto me fez e, marginalmente, também eu faço tudo isto. Sou o significado e o significante desta paisagem, eu e tantos como eu, em todas as épocas do mundo. A paisagem escreve-me, e eu escrevo-a com o olhar, e desta simbiose se faz a história. Dos caminhos e das viagens nos nutrimos. A isso convida este livro, a viajar, a sermos nós próprios e outros ao mesmo tempo, dentro deste país simultaneamente tão estranho e tão próximo.


             Bibliografia: MATOSSO, José, DAVEAU, Suzanne, BELO, Duarte (2010). Portugal: O Sabor da Terra - Um retrato histórico e geográfico por regiões. Lisboa: Círculo de Leitores

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Vinte Mil Léguas Submarinas, Júlio Verne


        Li este livro pela primeira vez há já uns anos, era ainda miúdo, e a impressão que me causou foi o bastante para me aventurar, na altura, por mais alguns títulos de Verne: Viagem ao Centro da Terra, uma fantasia geológica com um cientista que gagueja ao pronunciar terminologia científica; Uma Cidade Flutuante, uma intriga amorosa a bordo do, à época, maior navio do mundo, o Great Eastern e A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, uma aventura que é uma ode ao apressado e positivista mundo oitocentista. Em todos eles (com a excepção da Viagem ao Centro da Terra) transpirava um enorme fascínio pela máquina, e pelas possibilidades que esta abria ao homem. Dos rápidos vapores que cruzam a América transportando o fleumático inglês Phileas Fogg a velocidades transcontinentais às apaixonadas descrições das rodas dentadas do Great Eastern, rodando indiferentes às intrigas humanas que se vão desenrolando a bordo, Verne culmina no impressionante retrato do Nautilus, essa temível e fascinante máquina que percorre vinte mil tumultuosas léguas no seio do insondável oceano. Sobra a nítida impressão que o submarino é uma personagem da história por direito próprio, tal é o antropomorfismo com que a espaços este nos é apresentado.
       Nada mais injusto, portanto, do que a fama que Verne tem de ser um escritor algo seco e desinteressante, apropriado apenas a jovens leitores desejosos de aventura (que saltam, de resto, as partes mais aborrecidas). É verdade que se trata de um realista francês e sim, é também verdade que a cada vinte páginas o senhor nos presenteia com outras três preenchidas com a enumeração dos nomes científicos dos peixes que o professor Aronax vai observando pela janela do submarino; sim, tudo isto é verdade, mas não só de enluaradas noites romanas em que bandidos e camponesas vivem arrebatadoras paixões se alimenta a imaginação humana... Pelo meu lado, confesso que à terceira leitura das Vinte Mil Léguas Submarinas, e talvez em consequência da minha entretanto adquirida formação literária, fui capaz de descortinar uma notória cadência poética nas aparentemente áridas enumerações de nomes de peixes, algas, crustáceos, cefalópodes, artrópodes, cetáceos e afins... Se não servir para mais nada, este livro permite, pelo menos, perceber que até na composição química de uma aspirina é possível descortinar uma certa dose de poesia...
      É, no entanto, por detrás da face mais evidente do cientifismo de Verne que se esconde aquilo que realmente me fez reler o livro: a profunda sensibilidade humana que o escritor aplica na construção das suas personagens. Afinal, criar uma personagem como o Capitão Nemo não é coisa de somenos. As aparentes três penadas com que o formidável capitão é descrito lançam uma luz ainda mais intrigante sobre o feito. Lido o livro fica-se a conhecer este homem quase exclusivamente através do significado das suas acções, pois ele nada revela sobre si próprio. Nemo é, de resto, a palavra latina para “ninguém”, nome que reflecte a sua decisão de morrer para a sociedade dos homens ao mesmo tempo que nos dá um interessante eco invertido de Ulisses. Não sabemos, não o sabem os próprios tripulantes do Nautilus, quem é, de onde vem, ou para onde vai este homem e o seu submarino (entre os quais há uma profunda afinidade, a ponto de, a espaços, não se distinguirem). E, no entanto (e talvez precisamente por isso), o Capitão ficou impresso na minha imaginação, desde a primeira vez que li o livro, como o exemplo mais acabado, mais depurado e mais fascinante do herói trágico. Por isso regresso, ocasionalmente, à companhia desse semideus, desse Ulisses sem Ítaca, desse humano Poseidon reinando solitário entre as vagas do eterno esquecimento...

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Pós-Guerra: História da Europa desde 1945, Tony Judt


                Tony Judt é um historiador britânico nascido em Londres em 1948. Com raízes familiares na Rússia, Bélgica e Lituânia, além de um background judaico, Tony Judt recorda vagamente o perfil do cosmopolita intelectual europeu de antes de 1914. É pois duplamente cativante a forma como nos guia através da Europa e dos seus passados perdidos.
                  Pós-Guerra: História da Europa desde 1945 percorre-se, assim, um pouco como uma galeria de espelhos, em que o passado reverbera em passados ainda mais distantes e obscuros, envolvendo o leitor numa longa (o livro tem quase mil páginas de letrinhas realmente pequeninas) descida ao Hades da(s) nossa(s) sociedade(s) europeia(s). As perspectivas são múltiplas, compondo um quadro da Europa vista a partir de realidades tão distintas como Portugal, a Escandinávia ou a Roménia. Particularmente importante, revestindo-se, agora que se comemora o vigésimo aniversário da queda do Muro de Berlim, de uma especial relevância, é o facto de esta obra reunir as duas metades da Europa do Pós-Guerra numa história comum, explorando ligações muitas vezes subestimadas entre o leste e o ocidente. A escrita é fluida, frequentemente espirituosa num estilo caracteristicamente britânico, e os capítulos dividem-se agradável e harmoniosamente entre análises mutuamente permeáveis da política, economia, sociedade e cultura. A tese central do livro, surpreendente e provocadora, sustenta que a 2.ª Guerra Mundial terminou somente quando o Muro de Berlim caiu tendo, n o entretanto, roubado à Europa de Leste meio século da sua história, arrebatando-a da sua essência intrinsecamente europeia. Para estes países o regresso à Europa foi também um regresso à História, à sua própria História que é igualmente nossa. (Pareceu-me bizarro pensar, quando visitei Berlim em Fevereiro de 2008, que até 1989 a Europa terminava ali, entre a Unter den Linden e o Tiergarten.)
                 Para alguém nascido pouco antes da queda do Muro de Berlim a impressão de se viver numa era pós-ideológica acentua-se quando se lê sobre as grandes guerras culturais do século passado, de Sartre a Camus, do Maio de 68 à Primavera de Praga, do julgamento de Nuremberga às lutas do Solidariedade. Não posso exactamente afirmar que sinta falta desse mundo (até porque não o conheci) em que quase tudo se definia na relação que cada um mantinha com o projecto socialista, embora sobre uma clara impressão de que tudo era muito mais simples quando havia uma ideia central em relação à qual havia apenas que afirmar-se contra ou a favor. Era simples e largamente simplista, ingénuo, até. Em retrospectiva é difícil acreditar que se tenha levado o comunismo tão a sério, mas não deixa de ser agradável saber que em tempos houve mais do que este amorfo espaço público pretensiosamente neo-liberal em que, por um lado, o consumo atordoante foi elevado a fim último da existência em sociedade e por outro, as grandes questões deixaram de ser debatidas no seio de uma cultura política comum. Podia-se entender um comunista, mas é impossível compreender um extremista islâmico.
                   Das revoluções morais dos anos 60 à falência final do socialismo, do triunfalismo do fim da história ao choque do extremismo islâmico manifestando-se dentro das nossas próprias fronteiras sobra, enfim, a questão final a que cabe a cada um de nós, europeus, responder: poderá ainda o século XXI pertencer à Europa?