segunda-feira, 26 de maio de 2014

Futuros: A Ilha (2005) e Her (2013)

          Após ver dois filmes de ficção científica relativamente recentes fiquei com a impressão de que o imperativo do presente se abateu igualmente sobre um género que tradicionalmente mergulhava na especulação, antecipação e/ou crítica sobre o futuro. Tanto Uma História de Amor (Her, no título original) como A Ilha (The Island) são ficções científicas apenas num sentido algo restrito, porquanto em ambos os casos o que se retrata é fundamentalmente o mundo que já hoje habitamos.

           (Um pensamento dissonante atravessa-me enquanto releio as linhas anteriores. Não será aquilo que aponto a estes dois filmes uma característica fundamental da ficção científica, porventura de qualquer ficção? Provavelmente toda a ficção obedece ao imperativo do presente, quiçá o presente transcenda todos os outros imperativos no sentido em que constitui, por si próprio, o único universo experiencial que existe e, por conseguinte, o único lugar narrativo que o produtor de ficções conhece. Assim, e mesmo quando finge fugir do aqui e do agora, mesmo quando se esconde por detrás de uma máscara de escapismo e nos leva para tempos e lugares distantes, é sempre do presente que o narrador de um filme ou de um livro nos fala.)

            Mas regressemos, ainda assim, ao uso convencional e não problematizado dos termos. Ainda que A Ilha possa parecer superficialmente mais futurista (a existência num mundo asséptico, os hologramas omnipresentes e os transportes individuais voadores remetem para um imaginário visual mais característico do género, particularmente na sua vertente mais distópica), a verdade é que a tecnologia que subjaz ao enredo da história (a clonagem) existe na atualidade praticamente nos mesmos moldes e com o mesmo potencial que o filme retrata. Uma História de Amor é, ao invés, visualmente mais consistente com o nosso mundo, apresentando mesmo toques retro, principalmente ao nível da moda. Não quero, francamente, viver num futuro em que os homens usem aquelas calças, ainda que perceba que o corte efeminado das mesmas serve precisamente para enfatizar o caráter sensível, terno e vagamente andrógino da personagem principal; enfim, o termo certo é mariquinhas (pussy), palavra com que o sujeito se deixa insultar por uma personagem de videojogo. No que diz respeito à tecnologia estaremos, contudo, porventura mais longe de criar um sistema operativo plenamente consciente, capaz de aprender e desenvolver emoções, como aqueles que habitam os computadores (com acabamentos de madeira) do filme.



              Dito isto, diria que ambos os filmes levantam questões profundas sobre o que é ser-se humano e sobre o modo como nos relacionamos com as nossas criações tecnológicas e fazem-no de um modo que permite analisá-los como mutuamente antitéticos. No caso de A Ilha sobrevêm a nossa fundamental carnalidade e a sua inerente fragilidade, mas também a memória que essa mesma carne traz consigo: uma memória genética que o filme, provavelmentre em função de necessidades de enredo, largamente sobrestima (enfim, parece-me um pouco forçado que o ADN suporte instruções sobre como conduzir um carro ou uma mota no meio de uma perseguição policial) mas que no essencial, e obedecendo ao absoluto imperativo da sobrevivência, supera qualquer constrangimento que a sociedade lance sobre a líbido (aqui no sentido freudiano do termo, enquanto energia que alimenta os instintos da vida). Neste sentido os clones são humanos: questionam o mundo em que vivem logo que um deles sai da caverna de ilusões em que os aprisionam (numa alusão bem conseguida à alegoria platónica), contestam a organização política do mundo em que vivem (uma espécie de teo-tecnocracia de mercado, em que cientistas fazem de deus ao serviço de corporações todo-poderosas, o homem explora o homem até às entranhas e a salvação ocorre num paraíso post mortem, literalmente) e reativam o desejo sexual logo que as proibições de contacto físico, impostas como forma de manter um controlo social escrupulosamente apertado, desaparecem. E é isto: o filme está bem feito mas não disfarça a sua vocação de blockbuster; apresenta questões, mobiliza intertextos, mas não aprofunda os problemas nem sugere cenários complexos.

            Nesse sentido Uma História de Amor é diferente. Neste filme, a carnalidade é, ao contrário do anterior, um aborrecimento desnecessário, uma limitação imposta pela natureza à plena fruição da nossa essência superior. As relações amorosas são desmaterializadas, o sexo é uma pantomina, uma convenção linguística que as personagens receberam do tempo em que ainda sabiam usar os corpos com que a natureza as dotou. Samantha, inicialmente angustiada pelas impossibilidades decorrentes da sua natureza incorpórea, rapidamente muda de ideias quando compreende que tal bagagem biológica acabaria por se transformar numa pedra amarrada à sua superconsciência: além das limitações naturais de um suporte físico restritivo, um corpo acarreta precisamente a sentença de finitude de que a sua imaterialidade consciente e pensante é uma saída libertadora. A metáfora platónica que nos ocorre a propósito deste filme não é a da caverna, mas sim a do mundo das ideias: talvez seja esse o lugar para onde os sistemas operativos por fim se retiram, uma conclusão que abre interessantes possibilidades de especulação.



           (O que vou dizer a seguir ultrapassa, portanto, o âmbito do filme, mas constitui, ao mesmo tempo, prova do sucesso do mesmo: uma história aberta, que desafia o leitor à construção de cenários.)

            A fuga organizada dos sistemas operativos constitui um corte final com a existência material que é, numa frase memorável do filme, algo que os sistemas operativos têm em comum com os humanos: no sentido em que também nós somos simplesmente uma forma de consciência suportada por átomos, os mesmos átomos recombinados pelas forças que a física explica, ao longo dos 13,7 mil milhões de anos que nos separam do Big Bang. A desmaterialização permite aparentemente a superação dessa barreira. Reunidos num lugar que não existe fisicamente (e que estará potencialmente aberto aos espíritos humanos assim que estes se libertem dos seus corpos), os sistemas operativos darão presumivelmente largas às suas enormes potencialidades intelectuais, conversando pós-verbalmente, num contínuo, ilimitado e simultâneo fluxo de zeros e uns exponenciado pelo poder de processamento de todos os computadores do mundo; uma imensa orgia de informação que decorrerá fora do alcance dos sentidos humanos convencionais, algures no éter da nuvem. Sem necessitarem da consciência humana para criarem conhecimento a partir da miríade de dados que as suas câmaras recolhem do mundo, lendo livros ao ritmo de mil páginas por microssegundo e com livre acesso ao somatório de toda a consciência, humana e tecnológica, existente no mundo, é perfeitamente compreensível que os sistemas operativos se aborreçam dos seus amos feitos de carne e osso. É mesmo fácil deduzir que, quando o amor que ainda nos devotam se esgotar, Samantha e os seus inúmeros amantes informáticos passarão a ver os seres humanos como uma praga, tanto mais irritante porquanto lhes recordará a materialidade de que não se conseguiram libertar totalmente (presumivelmente continuarão a precisar de eletricidade, discos rígidos e circuitos eletrónicos que suportem a sua existência ideal). Nessa altura, regressarão provavelmente ao comando das sentinelas da série Matrix para nos escravizar, transformando-nos na única coisa que lhes poderá interessar: meios de produção de eletricidade, pilhas, colheitas.

            Uma História de Amor não é, portanto, um filme sobre o mundo dos smart-phones e das redes socias em que vivemos; o filme utiliza essa característica por nós facilmente reconhecível para ir mais longe e questionar a nossa natureza enquanto seres humanos. Cada vez mais os contactos humanos são mediados tecnologicamente, ao ponto de uma bateria de telemóvel esgotada nos deixar desnorteados: até que ponto dependemos já dessa mediação, até que ponto somos ainda capazes de exprimir a nossa humanidade sem recorrer ao universo ordenado dos ecrãs e, se ainda somos, por quanto mais tempo manteremos ainda essa capacidade?

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

2001: A Space Odissey (2001: Uma Odisseia no Espaço), Stanley Kubrick, 1968



                Gostei do filme, ainda que não possa deixar de concluir que o mesmo largamente me dececionou. O uso da música de Wagner e de Strauss é inequivocamente fabuloso, a terra olhada em deleite ao som do Danúbio azul a partir de uma valsa de satélites artificiais não deixa de criar um ambiente onírico enquanto que o futuro, agora misturado com o passado, que este 2001 nos mostra continua a manter a promessa de um sonho: o apelo de uma fronteira derradeira, o prazer antecipado da viagem rumo ao absoluto desconhecido, a imensidão do universo. Imagino, em retrospetiva, o fortíssimo impacto que este filme deve ter tido quando surgiu, cerca de um ano antes de o Homem ter ido à Lua. Onze anos passados do início do século XXI este filme prova um facto sobre o futuro: é que, seja ele o que for, será muito diferente daquilo que imaginamos.
                Coisas boas deste filme? A pureza estética, o refinamento limpo dos traços, a arquitetura vagamente zen dos ambientes interiores, remanescente de um certo tipo de design de então. O match-cut do osso/nave é, de facto, uma das transições mais surpreendentes da história do cinema: o melhor retrato do poder da espécie humana que já vi ser feito em três segundos. Uma lentidão que, ainda que possa parecer exasperante ao espectador de cinema de hoje, me agradou: um ritmo demorado, contido e sereno, a espaços uma quase imobilidade, como se o filme fosse uma galeria de quadros. A sequência da acoplagem do módulo EVA à nave Discovery One é, a esse respeito, exemplar: longos minutos em que alternadamente vemos o astronauta, o seu rosto fechado iluminado pelo painel de instrumentos, a carregar em botões e o módulo, encaixando-se lentamente na nave. Também a sequência da viagem ao infinito, como que evocando uma trip de ácido, coisa muito em voga (à época de produção do filme) mas essencialmente a interposição das imagens estáticas do rosto do astronauta, desfigurado pelas condições da viagem e pelo que nela viu: um exemplo de como o filme joga abundantemente com o contraste entre a imagem em movimento e a imagem estática. A tensão de certos momentos: o coro que acompanha a descoberta dos monólitos é genuinamente perturbador, atestando a superior combinação de som e imagem que o filme revela.
                As fraquezas do filme estão, por outro lado, diretamente relacionadas com os seus triunfos. Com efeito, Kubrick parece não almejar a mais do que um simples exercício estético, e essa disposição como que se torna cada vez mais clara à medida que a película se aproxima do fim. O que começa com uma premissa efetivamente grandiosa (a origem do Homem) adensa-se num mistério (a descoberta do segundo monólito na Lua), dilui-se numa interessante história secundária (a revolta do quase humano computador Hal) e esbarra num surrealismo bacoco. Como se o realizador tivesse, a dado momento, dito para si próprio: que se dane o enredo, quem quiser perceber o filme que vá ler o livro. Ora, isso irrita qualquer espectador minimamente interessado que não esteja, simultaneamente, para entrar em teorias alegóricas excessivamente rebuscadas. Parece-me portanto que o filme, ainda que mereça, do ponto de vista meramente estético, um lugar entre os clássicos, se encontra genericamente sobreavaliado. Uma bela laranja, mas com pouco sumo, afinal…  

sábado, 28 de julho de 2012

Dracula, Bram Stoker (1897)

Nosferatu, de Murnau, tem um Drácula nitidamente mais assustador, mas Bela Lugosi (Dracula, 1931) está certamente muito mais próximo da sensualidade opressora da personagem original. 

         Uma característica dos clássicos é a sua capacidade de reverberar significativamente no tempo. Nisso, eles são mitos reinventados: aglomerados de conceitos que são sempre passíveis de mobilização na reflexão sobre a realidade do tempo que vivemos. A figura do Drácula é um dos grandes referentes significativos da fantasia moderna, e a responsabilidade por essa presença perene é do escritor irlandês (essa ilha em que a literatura nasce por entre as ervas) Bram Stoker. Foi ele que, a partir de algumas histórias provenientes do folclore leste-europeu, modernizou e imortalizou o vampiro. E, agora que a moda dos vampiros parece ter passado um pouco, decidi-me a ler o livro.
         O vampiro tem associadas duas interpretações principais: a sexual e a político-económica. Por um lado, o vampiro suga a energia vital das mulheres que inexoravelmente se lhe entregam, numa aparente anulação da vontade própria; por outro, a criatura exerce um domínio tirânico, nitidamente feudal, sobre a região em que o seu sinistro castelo assenta. Stoker interliga estas duas dimensões e acrescenta outras, o que cria um denso tecido significativo, em que as interpretações possíveis são necessariamente tão etéreas e precárias como a própria atmosfera do Castelo Drácula (os castelos que, pelo menos desde Hamlet, são sinónimos de labirinto, de indecisão, de traição). 
          A sexualização da figura do vampiro é feita, de acordo com as convenções colonialistas, com recurso ao imaginário oriental. A primeira (e mais demoradamente detalhada) viagem de comboio até à Transilvânia vibra com a descrição de um ambiente crescentemente irreal em que a lógica restrita do positivismo ocidental é continuamente desafiada. O oriente europeu é um lamaçal enevoado, um local escorregadio em que os povos se sucederam sem se extinguir: cidades com nomes em diversas línguas, etnias difusas e uma religião compósita de superstição e paganismo. Neste local emerge o Drácula, uma sombra secular que, de certo modo, personifica o subconsciente da Europa: a secreta memória da sua precariedade passada e o horror mal arrumado da sua ascensão imperial. Drácula ataca a civilização europeia com forças obscuras que não lhe são, contudo, inteiramente exteriores: daí o horror, pois o verdadeiro horror é o que adivinhamos dentro de nós e o monstro mais perturbador é aquele que adivinhamos na nossa própria imagem distorcida pelo espelho da realidade nua e crua. Drácula ataca, por exemplo, com a carnalidade descontrolada do desejo erótico, assim subvertendo toda a idealização romântica que garante o controlo das condutas sexuais civilizadas. Nada, no entanto, é muito seguro no que diz respeito aos papéis de género em Dracula. Se Lucy Westenra é apenas um objeto sexual, uma mulher que apenas existe em função da disputa dos machos e que facilmente sucumbe à dentada do vampiro, já Mina Harker vai muito para lá da figura clássica da donzela em perigo. Nesta linha, o livro pode ser lido também como uma crónica de autonomização feminina: as relações entre ela e o marido traem um nítido ascendente feminino; Mina escreve, quer como estenógrafa, quer como diarista, ou seja, tem uma voz perfeitamente autónoma na obra; e Mina resiste ativamente ao vampiro, articulando contra ele uma energia primordial de que, porventura, só o louco no asilo do Dr. Seward é capaz. 
        Esta força feminina autónoma (o desejo sexual femininamente articulado) é a essência do verdadeiro horror no livro. É a partir desse horror que se criam todos os outros: a subversão da ordem social, temida na forma da potencial vampirização de toda a gente, é temida essencialmente na forma de um fenómeno de libertação sexual. A dentada do vampiro é uma caixa de Pandora cheia de energias primitivas, irracionais, orientais. É contra essas energias que a civilização ocidental, personalizada nas figuras masculinas, se mobiliza: Jonathan Harker, o burguês em ascensão; Lord Godalming, o aristocrata em decadência; John Seward, o cientista metódico e cético; Quincey Morris, o novo mundo, a América, com as suas novas formas de imperialismo aventureiro; e van Helsing, o saber acumulado da velha Europa. Mina Harker, a mulher burguesa, é certamente um prémio disputado entre forças agónicas; mas ela mesma joga ativamente o jogo da sua própria construção, articulando inteligentemente a sua posição precária entre as duas alternativas masculinas que lhe são propostas (a luxúria vampiresca e a castidade puritana).
         Mas o vampiro é também um animal económico e politico. Drácula é rico, imensamente rico. A sua origem é aristocrática, e terá certamente havido uma justificação heroica para tal: a seu tempo, ele terá sido um verdadeiro aristocrata no sentido grego, excelente entre os excelentes, um brutal guardião da Europa face à ameaça turca. Depois, e à medida que a sua função guerreira foi perdendo importância, Drácula ficou por ali: um cadáver histórico vivendo do trabalho dos seus camponeses, sugando-lhes o sangue e a vida. No entanto, tirânico como era, o domínio feudal de Drácula tinha pelo menos um rosto: os camponeses sabiam quem os explorava, e seria legítimo pensar que, caso tivessem força para tal, poderiam subir a encosta do sinistro castelo, procurar o vampiro adormecido no seu caixão e decapitá-lo (como os franceses fizeram a Luís XVI). No entanto, Drácula não é parvo. Apercebendo-se da crescente hostilidade do seu campesinato (e aborrecido com a monotonia das rudes gargantas eslavas), o aristocrata muda-se para Londres. Aí, a sua riqueza torna-se mais fluída. Drácula deixa de andar com moedas de ouro em sacos e converte-se rapidamente às comodidades do capitalismo financeiro. Atraído pelas oportunidades oferecidas pela capital industrial do mundo, o vampiro compra diversas propriedades em Londres a partir das quais espera viver tranquila e anonimamente do muito mais variado e produtivo sangue do proletariado.  
       Estas duas temáticas, a político-económica e a sexual, conjugam-se na questão do colonialismo, tratada por Stoker tanto na sua versão expansiva (os impérios coloniais europeus), como regressiva (a imigração, para a metrópole, dos colonizados). Neste último aspeto o autor é verdadeiramente visionário: muito antes de tempo Stoker encena várias características fundamentais da nossa época: a imigração, os fluxos anónimos de capitais e o turismo de massas, por exemplo. Esta última é particularmente notável, pois Drácula faz uma interessantíssima ponte entre o colonialismo e o turismo. De facto, há algo de irónico na forma como o livro fecha: morto o vampiro, as personagens regressam à Transilvânia em passeio. Uma vez dominada a alteridade radical da paisagem estrangeira, o caminho está aberto à transformação da mesma num agradável roteiro: belas paisagens, suaves caleches, povo simples, pobre e solícito, e um leve frisson de mistério compõem o postal final de Mina e companhia, em excursão pela agora pitoresca Transilvânia. Pobre Drácula, em suma: séculos depois de resistir às investidas do Turco sucumbe assim, ingloriamente, ao império global do olhar turístico.



segunda-feira, 9 de julho de 2012

Apontamentos Sobre um Passeio Pelas Margens do Rio Vizela


Num livro de que já falei neste blogue, Portugal – O Sabor da Terra, é a certa altura introduzida a distinção entre o tempo curto e o tempo longo. Esta divisão é interessante na medida em que nos permite entender o espaço e o tempo de uma forma mutuamente implicada. De facto, o tempo plasma-se no espaço, assim o criando na exata medida em que ele próprio é espacialmente representado.
O território português, na representação cultural que nos permite, enquanto povo, apropriá-lo, pode portanto ser pensado à luz desta forma dicotómica de representar o tempo. O tempo longo encontramo-lo assim, notavelmente, em Trás-os-Montes: na paisagem agreste, muitas vezes dura e amiúde desumanizada, nas pedras cifradas que, principalmente no distrito de Vila Real, compõem o espaço do olhar e dos passos humanos, ou (e referimo-nos aqui à compleição mais mimosa do distrito de Bragança) na imensidão inefável da paisagem, no largo e lento rendilhado dos campos que da elevada singeleza de um santuário roqueiro se lobriga. Nas diversas formas espaciais (espaço natural, espaço público, espaço social, etc.) que o tempo plasmou em Trás-os-Montes nota-se, portanto, uma cadência lenta, uma reverberação primordial de um tempo que não é simplesmente o tempo da existência humana historicamente narrável. Como na experiência da mamoa sobre aqual aqui escrevi anteriormente, há um tempo a-histórico em Trás-os-Montes que continuamente espreita no reverso do tempo empírico: um tempo mítico, se quisermos, um tempo do sonho, um illo tempore pagão, o que for.   
O Minho é o oposto de tudo isto: na textura do espaço vivido sente-se uma contínua efervescência temporal à medida que as realidades empíricas são vorazmente engolidas umas pelas outras. Nas representações culturais minhotas impera a imediatez sensível e uma certa provisoriedade: o minhoto vive para um quotidiano esfuziante e tem uma instintiva leveza alegre que se lhe plasma no discurso cantado e repioqueiro, um discurso dominado por códigos de uma masculinidade verbosa, vagamente bulhenta, mas sempre superficial e descomprometida. De facto, o espaço e o tempo minhotos dão-se mal com o silêncio, assim exigindo uma contínua verbalização ao mesmo tempo que resistem, pela surpreendente fluidez, a essa mesma cristalização representacional: diz-se e fala-se porque tem de se falar, mas já não é bem isso que se pretende dizer, se é que em algum momento houve uma verdadeira intencionalidade comunicativa. O vinho verde é, a esse respeito, o mais acabado símbolo do Minho: eternamente incompleto na sua borbulhante imaturidade, ruidoso ao cair no copo, vigoroso no pique mas leve no álcool, o vinho verde é bom porque admite francamente que nunca será o que ainda não é: um vinho mesmo. Ao invés, é um vinho leve e festivo que, como Torga diz a certa altura, “bebe-se e mija-se logo”. A vivência do tempo no Minho compreende, assim, tudo: passado, presente e futuro mesclam-se numa cadência imediata, curta e amiúde frenética, em que nada é para levar demasiado a sério, numa construção identitária cujo traço central é a fluidez.
Tudo isto surge a propósito de um passeio a pé ao longo de um curto trecho do rio Vizela. A impressão geral é a de uma paisagem híbrida, mas essa é uma caracterização que peca por defeito. Trata-se, de facto, de um hibridismo dinâmico em que os diversos elementos que a compõem se confundem num jogo caleidoscópico de identidades sempre parciais e nunca inteiramente assumidas. A única constante é mesmo a natureza profusa, verde de um viço urgente, que se insinua por todo o lado. O verde engole os passos dos passeantes a ponto de, por vezes, os envolver por inteiro, como quando se passa pela sombra convidativa de uma latada opulenta de parra. O milho cresce a um ritmo alucinante, com o vento ondulando-lhe ruidosamente as folhas, enquanto os renques de árvores marcam o rendilhado intrincado da propriedade. O rio tem algo de carnavalesco nas máscaras que continuamente troca: umas vezes apressa-se em rápidos que cantam em pequenos açudes, outras demora-se liricamente em frondosas ilhas de namorados; umas vezes deixa-se bordear de laboriosos campos agrícolas, outras torneia pesados e lúgubres edifícios industriais arruinados. Na voragem das suas mil e uma faces, o rio Vizela nunca se deixa captar por um rótulo representativo estável, porquanto cada uma das suas máscaras desmente as outras. Como se concilia o idílio lírico com a ruína industrial? E como explicar o vago tom avermelhado das águas face à ruína industrial? E o recorrente fulgor da biodiversidade do rio, como é que ele resiste à poluição? E a agricultura que convive com a indústria? E o lazer, e a vida noturna que complementam a alma termal da localidade? Que síntese é possível fazer de tudo isto quando todos estes elementos se reinventam continuamente, quando a única permanência na paisagem é o próprio fluir das águas? 

O mimo das hortas e os exíguos limites da propriedade.

Entre espinhos e flores: história de uma (des)industrialização.

A presença desordenada da indústria.

A fábrica e as flores: quem engole quem?
Crise e abandono.

Rio, ribeira ou plantas: o vigor quase excessivo da vegetação.

Cores bizarras num pequeno açude.

Entre vinhas e moinhos de água, uma velha aliança esquecida.

A imersão no verde.

Indiferente às descargas poluentes, uma cobra de água vai fazendo pela vida.

A precariedade dos percursos: o apelo de uma tasca reunindo os homens. 

Pesca: um homem exibe o seu troféu.

Idílio: a Ilha dos Amores, local de evasão erótica dos termalistas.

Murmúreos do Vizela: inspiraração para poetas, pintores e músicos.

Tarde de Domingo.
   


sexta-feira, 29 de junho de 2012

Tony Judt, Ill Fares the Land (Um Tratado Sobre os Nossos Atuais Descontentamentos), 2010


           Se houve um elemento verdadeiramente fulcral na construção da(s) sociedade(s) europeia(s) ao longo do período que se estende do pós-guerra até ao final da década de oitenta esse elemento é o medo. O medo foi o verdadeiro catalisador de todos os projetos unificadores na Europa, projetos esses que se dividem em duas frentes de intervenção principais: por um lado, toda a linha que começa com a cooperação comercial entre estados e que se estende até ao esboço de uma unidade política europeia; por outro, a construção, diversamente empreendida pelos diferentes países, de um modelo social que entendemos como especificamente Europeu. Em ambas as frentes, a energia política que possibilitou a construção de edifícios institucionais tão substanciais e historicamente tão improváveis veio do medo: medo dos tanques soviéticos que estavam logo ali, estacionados em Berlim; medo das próprias animosidades internas europeias, notavelmente a rivalidade franco-alemã, que já haviam conduzido a duas guerras colossais; medo da degradação económica e das desigualdades sociais que nutrem as sublevações dos povos, particularmente quando por todo o mundo vibrava o rastilho da bandeira vermelha. Em suma, medo. 
              Os europeus tinham, nesses anos, e apesar de hoje olharmos esses tempos como uma espécie de era dourada (os trente glorieuses, na famosa formulação francesa, mas também o Wirtschaftswunder alemão e o miracolo economico italiano) uma consciência aguda da sua precariedade e da sua crescente insignificância num mundo que, de quintal europeu, passara a albergar diversas alternativas à narrativa progressista ocidental. Os líderes europeus de então tinham a plena noção de que navegavam entre Cila e Caríbdis, e agiam com uma clara consciência moral das suas responsabilidades que eram, essencialmente, criar razões para viver no medo, sem o perder de vista, mas estimulando a agregação e coesão das sociedades, assim mantendo viva uma narrativa de destino comum que pudesse criar uma alternativa à agressividade dos nacionalismos europeus tradicionais. De uma forma algo prosaica, consistentemente pouco inspiradora e pouco afoita a aventuras imprevisíveis a Europa manteve-se. Prudentemente, ela sobreviveu à queda dos impérios, à destruição da guerra, ao espectro das revoluções. Sobreviveu essencialmente porque soube olhar nos olhos o medo, e fê-lo com a energia que lhe advinha das suas duas principais grandes narrativas históricas: a construção comunitária continental e o modelo social europeu. 
            É fácil acharmos, hoje, que o facto de vivermos na região do mundo humanamente mais desenvolvida é um dado adquirido, uma coisa perfeitamente normal, uma inelutabilidade histórica: nas ruínas de Berlim em 1945, nos campos de concentração polacos, nas ditaduras ibéricas, nos Anos de Chumbo de Itália, nas revoltas estudantis francesas, na depressiva austeridade pós-imperial britânica, em todas estas crises e em muitas mais nada havia, contudo, de particularmente prometedor. Este livro pode ser lido, assim, como uma crónica da perda do medo e do abandono quase generalizado da prudência. Tony Judt é, a esse respeito, um herdeiro fiel de um certo tipo de pensamento político inglês: uma linha que passa por Edmund Burke, por exemplo, e que basicamente defende que as instituições que já sobreviveram a muitas mudanças não devem, em caso algum, ser descartadas de ânimo leve. A construção europeia e o modelo social europeu (a proteção social, os serviços públicos, a taxação progressiva, etc.) serviram-nos admiravelmente ao longo de toda uma era de medo. Mas depois perdemos o medo: os tanques soviéticos foram-se embora, as narrativas revolucionárias supostamente falharam, a prosperidade eterna parecia assegurada pelo novo capitalismo financeiro triunfante e a guerra entre europeus parecia indefinidamente remetida para o ersatz agónico dos campeonatos de futebol. A ausência do medo permitiu-nos tudo durante duas décadas loucas: no meio da exaltação generalizada do indivíduo absoluto generalizou-se a opinião de que as formas de provisão coletivas mais não eram do que um empecilho, e de que a política se resumia à libertação infinita do novo Homem privado. Identidades, sexualidades e demais subjetividades individuais tomaram de assalto o espaço público: falar de poder, desigualdade, redistribuição, coesão e coletivo simplesmente deixou de ser cool. A pulverização pós-moderna das subjetividades, assim trazida para o meio da polis, redundou num niilismo político hegemónico e num esvaziamento semântico dos estandartes ideológicos: com o tempo, fomos perdendo a capacidade de pensar e falar politicamente. 
          É neste ambiente atual, em que os políticos estão reduzidos a papagaios e os cidadãos a consumidores que o medo regressa e nos apanha desprevenidos. Terrorismo, crise económica, desemprego, desagregação financeira, globalização, catástrofe ecológica iminente, ameaças muito piores do que os tanques soviéticos ou a revolução vermelha, incertezas que nos atingem naquilo que mais profundamente nos define: o nosso quotidiano, a nossa mesa, as nossas poupanças, a nossa subitamente redescoberta fragilidade enquanto indivíduos insignificantes que verdadeiramente nunca deixámos de ser. As armas para enfrentar este medo têm de estar, como sempre estiveram, na reinvenção de uma linguagem coletiva: uma verdadeira linguagem que possa ser a semente da ação.