sábado, 26 de dezembro de 2009

Avatar, James Cameron (2009)



      Não me apetece criticar o destaque que Avatar teve na imprensa, como se este filme se tratasse do único evento cinematográfico verdadeiramente importante no horizonte de anos. Também estou longe de pertencer àquele grupo de cinéfilos que acha que arte e entretenimento puro e duro são duas realidades inconciliáveis... Há, no entanto, uma série de coisas que fazem parte da natureza do próprio espectáculo cinematográfico à Hollywood e que o tornam, de resto, cada vez mais parecido com o futebol... Assim, Avatar é, antes de mais, um filme galáctico, e os milhões que custou fazê-lo constituem desde logo a introdução do show. Um pouco como o Ronaldo, cujo pico da carreira não foi a final da Liga dos Campeões ganha pelo Manchester, mas sim a transferência financeiramente estratosférica para o Real Madrid. Resumidamente, Avatar é um bom filme, mas está longe de ser o evento extraordinário que o regresso de James Cameron parecia prometer. Em parte, isto será certamente uma consequência do facto de eu já não ser um adolescente facilmente impressionável com efeitos especiais, como era quando surgiu o Titanic. Mas penso que isso foi geral: todos crescemos desde essa altura, o cinema também, e aquilo que era visualmente esmagador no Titanic passou a ser olhado mais friamente neste. Ou seja, bons efeitos especiais deixaram de bastar para fazer uma obra-prima. Mas indo por partes...
     Avatar, visualmente falando, é uma mistura entre Pocahontas e Starcraft. Pareceu-me demasiado óbvia para passar despercebida a semelhança entre a imagética do filme e a do famoso (para quem está minimamente dentro do assunto, é certo) jogo de estratégia em tempo real. Das naves aos equipamentos de combate, passando pela estranha reverberação entre personagens do filme e unidades do jogo, tudo parecia ecoar o universo da Blizzard. Para quem sentisse saudades do velhinho Warcraft, havia mesmo dragões jurássicos cavalgáveis, para além de uma aparência inequivocamente élfica dos nativos. Tudo impecável, admita-se. Por outro lado, e para quem viu algumas obras do cânone da Disney (no tempo em que a Disney ainda fazia obras canónicas), a sensação é a de estar a perante um remake futurista de Pocahontas. Em vez da América a actualização temporal colocou no horizonte dos colonos humanos o satélite obscuro de um planeta longínquo; no lugar dos índios temos nativos de aparência felina igualmente ululantes (gritam como índios, combatem com flechas e são, ao contrário dos humanos gananciosos, criaturas profundamente naturais) e em vez de um John Smith temos um Jake Sully (as iniciais, coincidência ou não, são as mesmas). Mas a analogia não se esgota nas semelhanças narrativas, estendendo-se pela composição visual do filme. Certas cenas, como a sequência que culmina com o “acasalamento” dos protagonistas (estou a utilizar a mesma palavra que surge no filme) são quase cópias, frame por frame, do filme da Disney. Não que tudo isto seja necessariamente mau. Nem estou sequer a acusar Cameron de plágio, ou de falta de imaginação. É apenas mais uma prova do quão difícil é ser original e uma ilustração eloquente do quão profundamente tudo em arte radica no que vem antes.
        Um elemento interessante do filme é a crítica explícita à invasão do Iraque. Não sei se Cameron terá sido um activista anti-Bush em 2003, nem conheço suficientemente o resto da obra dele para saber se há nela alguma espécie de anti-militarismo latente. O certo é que neste filme há curiosas reverberações de Bush na personagem do comandante das tropas humanas no dito planeta. A certa altura este começa mesmo a usar bushismos como “make no mistakes” (que Obama também usou, para momentâneo sobressalto da assistência, no discurso à Academia Sueca aquando da entrega do Nobel da Paz); fala-se, como justificação para o massacre dos nativos, em “combater o terror com terror”; e, no momento mais inequívoco dessa crítica, a expressão “shock and awe” (nome de código da operação militar no Iraque) surge por entre gritos de guerra de soldados inebriados. As riquezas do subsolo do planeta são também, nos bastidores, os verdadeiros motivos subjacentes à ocupação militar. Enfim, nessa linha, estão lá todos os elementos habituais.
       Por outro lado, tentei vislumbrar alguma espécie de elogio do neo-tribalismo por ali. A ideia da contiguidade total entre indivíduo e natureza, entre todas as forças vivas da criação, que no filme pretende servir de base à mensagem ecológica geral acabou, inversamente, por me causar algum incómodo. A cena climática que ilustra essa contiguidade, ou seja, o ritual da transferência de corpos na parte final, pareceu-me perturbadoramente semelhante às paradas nazis filmadas por Leni Riefenstahl. Parece querer implicar que o respeito pela natureza obriga a uma renúncia total ao individualismo, uma ideia que me parece perigosamente próxima do totalitarismo. Quem sabe, talvez um dia olhemos para este filme como um dos primeiros documentos do ecologismo fundamentalista?
       Escusado será elogiar o espectáculo visual que Avatar proporciona, até porque a Web já está cheia de pessoas embriagadas de cor e movimento que escreveram críticas meia hora depois de ver o filme. Pela minha parte, e precisamente para deixar passar esse efeito, optei por fazê-lo dois dias depois. (Como aparte, confesso que não percebi em que medida é que o filme é assim tão inovador tecnologicamente. Nem sequer percebi essa história do 3-D... Será que precisava daqueles óculos coloridos que deram aos miúdos para verem o Spy kids?) E a verdade é que, passado o regalo para os olhos, sobra a impressão de uma narrativa fraca, repleta de lugares comuns, que mal aguenta o peso de tanto espectáculo. Em termos dramáticos, o filme é funcional, meramente funcional, mas nunca mais do que isso. Falta-lhe aquele golpe de asa narrativo que pudesse transformar este filme em algo de realmente diferente, que lhe retirasse aquele ar convencional e previsível que permite adivinhar o fim dez minutos depois do início do filme. Afinal, até sou bastante tolerante, e em arte perdoo quase tudo... Menos a monotonia.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

ne change rien, Pedro Costa (2009)



         Confesso que quando fui ao cinema ver este filme esperava realmente um filme, e não um concerto... Percebi, de resto, pelos primeiros minutos, que ia mesmo levar com 100 minutos de cinema experimental (não gosto da designação “de autor”, dá a impressão de que os blockbusters de Hollywood se fazem sozinhos...). Já aconchegado na cadeira acabei por me resignar a ter de pensar...
        Ne change rien é um filme sobre a música e a sua intercepção com a imagem. Ao mesmo tempo, é um filme sobre o esforço, o trabalho e a extenuante repetição que a busca da perfeição exige. O filme é todo ele uma longa construção de luz e sombras, plasmado num precioso preto e branco a que a música, melancólica, terna e vagamente desesperada, vai dando forma. Os rostos semi-ocultos, absortos na lenta e extenuante construção de um pequeno instante perfeito parecem, a espaços, entreabrir o véu de uma metáfora maior. O filme é, enfim, uma reflexão sobre a própria arte e a única verdadeira forma de a fazer, ou seja através de uma abnegação de Sísifo...

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Vinte Mil Léguas Submarinas, Júlio Verne


        Li este livro pela primeira vez há já uns anos, era ainda miúdo, e a impressão que me causou foi o bastante para me aventurar, na altura, por mais alguns títulos de Verne: Viagem ao Centro da Terra, uma fantasia geológica com um cientista que gagueja ao pronunciar terminologia científica; Uma Cidade Flutuante, uma intriga amorosa a bordo do, à época, maior navio do mundo, o Great Eastern e A Volta ao Mundo em Oitenta Dias, uma aventura que é uma ode ao apressado e positivista mundo oitocentista. Em todos eles (com a excepção da Viagem ao Centro da Terra) transpirava um enorme fascínio pela máquina, e pelas possibilidades que esta abria ao homem. Dos rápidos vapores que cruzam a América transportando o fleumático inglês Phileas Fogg a velocidades transcontinentais às apaixonadas descrições das rodas dentadas do Great Eastern, rodando indiferentes às intrigas humanas que se vão desenrolando a bordo, Verne culmina no impressionante retrato do Nautilus, essa temível e fascinante máquina que percorre vinte mil tumultuosas léguas no seio do insondável oceano. Sobra a nítida impressão que o submarino é uma personagem da história por direito próprio, tal é o antropomorfismo com que a espaços este nos é apresentado.
       Nada mais injusto, portanto, do que a fama que Verne tem de ser um escritor algo seco e desinteressante, apropriado apenas a jovens leitores desejosos de aventura (que saltam, de resto, as partes mais aborrecidas). É verdade que se trata de um realista francês e sim, é também verdade que a cada vinte páginas o senhor nos presenteia com outras três preenchidas com a enumeração dos nomes científicos dos peixes que o professor Aronax vai observando pela janela do submarino; sim, tudo isto é verdade, mas não só de enluaradas noites romanas em que bandidos e camponesas vivem arrebatadoras paixões se alimenta a imaginação humana... Pelo meu lado, confesso que à terceira leitura das Vinte Mil Léguas Submarinas, e talvez em consequência da minha entretanto adquirida formação literária, fui capaz de descortinar uma notória cadência poética nas aparentemente áridas enumerações de nomes de peixes, algas, crustáceos, cefalópodes, artrópodes, cetáceos e afins... Se não servir para mais nada, este livro permite, pelo menos, perceber que até na composição química de uma aspirina é possível descortinar uma certa dose de poesia...
      É, no entanto, por detrás da face mais evidente do cientifismo de Verne que se esconde aquilo que realmente me fez reler o livro: a profunda sensibilidade humana que o escritor aplica na construção das suas personagens. Afinal, criar uma personagem como o Capitão Nemo não é coisa de somenos. As aparentes três penadas com que o formidável capitão é descrito lançam uma luz ainda mais intrigante sobre o feito. Lido o livro fica-se a conhecer este homem quase exclusivamente através do significado das suas acções, pois ele nada revela sobre si próprio. Nemo é, de resto, a palavra latina para “ninguém”, nome que reflecte a sua decisão de morrer para a sociedade dos homens ao mesmo tempo que nos dá um interessante eco invertido de Ulisses. Não sabemos, não o sabem os próprios tripulantes do Nautilus, quem é, de onde vem, ou para onde vai este homem e o seu submarino (entre os quais há uma profunda afinidade, a ponto de, a espaços, não se distinguirem). E, no entanto (e talvez precisamente por isso), o Capitão ficou impresso na minha imaginação, desde a primeira vez que li o livro, como o exemplo mais acabado, mais depurado e mais fascinante do herói trágico. Por isso regresso, ocasionalmente, à companhia desse semideus, desse Ulisses sem Ítaca, desse humano Poseidon reinando solitário entre as vagas do eterno esquecimento...

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Pós-Guerra: História da Europa desde 1945, Tony Judt


                Tony Judt é um historiador britânico nascido em Londres em 1948. Com raízes familiares na Rússia, Bélgica e Lituânia, além de um background judaico, Tony Judt recorda vagamente o perfil do cosmopolita intelectual europeu de antes de 1914. É pois duplamente cativante a forma como nos guia através da Europa e dos seus passados perdidos.
                  Pós-Guerra: História da Europa desde 1945 percorre-se, assim, um pouco como uma galeria de espelhos, em que o passado reverbera em passados ainda mais distantes e obscuros, envolvendo o leitor numa longa (o livro tem quase mil páginas de letrinhas realmente pequeninas) descida ao Hades da(s) nossa(s) sociedade(s) europeia(s). As perspectivas são múltiplas, compondo um quadro da Europa vista a partir de realidades tão distintas como Portugal, a Escandinávia ou a Roménia. Particularmente importante, revestindo-se, agora que se comemora o vigésimo aniversário da queda do Muro de Berlim, de uma especial relevância, é o facto de esta obra reunir as duas metades da Europa do Pós-Guerra numa história comum, explorando ligações muitas vezes subestimadas entre o leste e o ocidente. A escrita é fluida, frequentemente espirituosa num estilo caracteristicamente britânico, e os capítulos dividem-se agradável e harmoniosamente entre análises mutuamente permeáveis da política, economia, sociedade e cultura. A tese central do livro, surpreendente e provocadora, sustenta que a 2.ª Guerra Mundial terminou somente quando o Muro de Berlim caiu tendo, n o entretanto, roubado à Europa de Leste meio século da sua história, arrebatando-a da sua essência intrinsecamente europeia. Para estes países o regresso à Europa foi também um regresso à História, à sua própria História que é igualmente nossa. (Pareceu-me bizarro pensar, quando visitei Berlim em Fevereiro de 2008, que até 1989 a Europa terminava ali, entre a Unter den Linden e o Tiergarten.)
                 Para alguém nascido pouco antes da queda do Muro de Berlim a impressão de se viver numa era pós-ideológica acentua-se quando se lê sobre as grandes guerras culturais do século passado, de Sartre a Camus, do Maio de 68 à Primavera de Praga, do julgamento de Nuremberga às lutas do Solidariedade. Não posso exactamente afirmar que sinta falta desse mundo (até porque não o conheci) em que quase tudo se definia na relação que cada um mantinha com o projecto socialista, embora sobre uma clara impressão de que tudo era muito mais simples quando havia uma ideia central em relação à qual havia apenas que afirmar-se contra ou a favor. Era simples e largamente simplista, ingénuo, até. Em retrospectiva é difícil acreditar que se tenha levado o comunismo tão a sério, mas não deixa de ser agradável saber que em tempos houve mais do que este amorfo espaço público pretensiosamente neo-liberal em que, por um lado, o consumo atordoante foi elevado a fim último da existência em sociedade e por outro, as grandes questões deixaram de ser debatidas no seio de uma cultura política comum. Podia-se entender um comunista, mas é impossível compreender um extremista islâmico.
                   Das revoluções morais dos anos 60 à falência final do socialismo, do triunfalismo do fim da história ao choque do extremismo islâmico manifestando-se dentro das nossas próprias fronteiras sobra, enfim, a questão final a que cabe a cada um de nós, europeus, responder: poderá ainda o século XXI pertencer à Europa?