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Nosferatu, de Murnau, tem um Drácula nitidamente mais assustador, mas Bela Lugosi (Dracula, 1931) está certamente muito mais próximo da sensualidade opressora da personagem original. |
Uma característica dos clássicos é a sua capacidade de reverberar significativamente no tempo. Nisso, eles são mitos reinventados: aglomerados de conceitos que são sempre passíveis de mobilização na reflexão sobre a realidade do tempo que vivemos. A figura do Drácula é um dos grandes referentes significativos da fantasia moderna, e a responsabilidade por essa presença perene é do escritor irlandês (essa ilha em que a literatura nasce por entre as ervas) Bram Stoker. Foi ele que, a partir de algumas histórias provenientes do folclore leste-europeu, modernizou e imortalizou o vampiro. E, agora que a moda dos vampiros parece ter passado um pouco, decidi-me a ler o livro.
O vampiro tem associadas duas interpretações principais: a sexual e a político-económica. Por um lado, o vampiro suga a energia vital das mulheres que inexoravelmente se lhe entregam, numa aparente anulação da vontade própria; por outro, a criatura exerce um domínio tirânico, nitidamente feudal, sobre a região em que o seu sinistro castelo assenta. Stoker interliga estas duas dimensões e acrescenta outras, o que cria um denso tecido significativo, em que as interpretações possíveis são necessariamente tão etéreas e precárias como a própria atmosfera do Castelo Drácula (os castelos que, pelo menos desde Hamlet, são sinónimos de labirinto, de indecisão, de traição).
A sexualização da figura do vampiro é feita, de acordo com as convenções colonialistas, com recurso ao imaginário oriental. A primeira (e mais demoradamente detalhada) viagem de comboio até à Transilvânia vibra com a descrição de um ambiente crescentemente irreal em que a lógica restrita do positivismo ocidental é continuamente desafiada. O oriente europeu é um lamaçal enevoado, um local escorregadio em que os povos se sucederam sem se extinguir: cidades com nomes em diversas línguas, etnias difusas e uma religião compósita de superstição e paganismo. Neste local emerge o Drácula, uma sombra secular que, de certo modo, personifica o subconsciente da Europa: a secreta memória da sua precariedade passada e o horror mal arrumado da sua ascensão imperial. Drácula ataca a civilização europeia com forças obscuras que não lhe são, contudo, inteiramente exteriores: daí o horror, pois o verdadeiro horror é o que adivinhamos dentro de nós e o monstro mais perturbador é aquele que adivinhamos na nossa própria imagem distorcida pelo espelho da realidade nua e crua. Drácula ataca, por exemplo, com a carnalidade descontrolada do desejo erótico, assim subvertendo toda a idealização romântica que garante o controlo das condutas sexuais civilizadas. Nada, no entanto, é muito seguro no que diz respeito aos papéis de género em Dracula. Se Lucy Westenra é apenas um objeto sexual, uma mulher que apenas existe em função da disputa dos machos e que facilmente sucumbe à dentada do vampiro, já Mina Harker vai muito para lá da figura clássica da donzela em perigo. Nesta linha, o livro pode ser lido também como uma crónica de autonomização feminina: as relações entre ela e o marido traem um nítido ascendente feminino; Mina escreve, quer como estenógrafa, quer como diarista, ou seja, tem uma voz perfeitamente autónoma na obra; e Mina resiste ativamente ao vampiro, articulando contra ele uma energia primordial de que, porventura, só o louco no asilo do Dr. Seward é capaz.
Esta força feminina autónoma (o desejo sexual femininamente articulado) é a essência do verdadeiro horror no livro. É a partir desse horror que se criam todos os outros: a subversão da ordem social, temida na forma da potencial vampirização de toda a gente, é temida essencialmente na forma de um fenómeno de libertação sexual. A dentada do vampiro é uma caixa de Pandora cheia de energias primitivas, irracionais, orientais. É contra essas energias que a civilização ocidental, personalizada nas figuras masculinas, se mobiliza: Jonathan Harker, o burguês em ascensão; Lord Godalming, o aristocrata em decadência; John Seward, o cientista metódico e cético; Quincey Morris, o novo mundo, a América, com as suas novas formas de imperialismo aventureiro; e van Helsing, o saber acumulado da velha Europa. Mina Harker, a mulher burguesa, é certamente um prémio disputado entre forças agónicas; mas ela mesma joga ativamente o jogo da sua própria construção, articulando inteligentemente a sua posição precária entre as duas alternativas masculinas que lhe são propostas (a luxúria vampiresca e a castidade puritana).
Mas o vampiro é também um animal económico e politico. Drácula é rico, imensamente rico. A sua origem é aristocrática, e terá certamente havido uma justificação heroica para tal: a seu tempo, ele terá sido um verdadeiro aristocrata no sentido grego, excelente entre os excelentes, um brutal guardião da Europa face à ameaça turca. Depois, e à medida que a sua função guerreira foi perdendo importância, Drácula ficou por ali: um cadáver histórico vivendo do trabalho dos seus camponeses, sugando-lhes o sangue e a vida. No entanto, tirânico como era, o domínio feudal de Drácula tinha pelo menos um rosto: os camponeses sabiam quem os explorava, e seria legítimo pensar que, caso tivessem força para tal, poderiam subir a encosta do sinistro castelo, procurar o vampiro adormecido no seu caixão e decapitá-lo (como os franceses fizeram a Luís XVI). No entanto, Drácula não é parvo. Apercebendo-se da crescente hostilidade do seu campesinato (e aborrecido com a monotonia das rudes gargantas eslavas), o aristocrata muda-se para Londres. Aí, a sua riqueza torna-se mais fluída. Drácula deixa de andar com moedas de ouro em sacos e converte-se rapidamente às comodidades do capitalismo financeiro. Atraído pelas oportunidades oferecidas pela capital industrial do mundo, o vampiro compra diversas propriedades em Londres a partir das quais espera viver tranquila e anonimamente do muito mais variado e produtivo sangue do proletariado.
Estas duas temáticas, a político-económica e a sexual, conjugam-se na questão do colonialismo, tratada por Stoker tanto na sua versão expansiva (os impérios coloniais europeus), como regressiva (a imigração, para a metrópole, dos colonizados). Neste último aspeto o autor é verdadeiramente visionário: muito antes de tempo Stoker encena várias características fundamentais da nossa época: a imigração, os fluxos anónimos de capitais e o turismo de massas, por exemplo. Esta última é particularmente notável, pois Drácula faz uma interessantíssima ponte entre o colonialismo e o turismo. De facto, há algo de irónico na forma como o livro fecha: morto o vampiro, as personagens regressam à Transilvânia em passeio. Uma vez dominada a alteridade radical da paisagem estrangeira, o caminho está aberto à transformação da mesma num agradável roteiro: belas paisagens, suaves caleches, povo simples, pobre e solícito, e um leve frisson de mistério compõem o postal final de Mina e companhia, em excursão pela agora pitoresca Transilvânia. Pobre Drácula, em suma: séculos depois de resistir às investidas do Turco sucumbe assim, ingloriamente, ao império global do olhar turístico.
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