terça-feira, 26 de junho de 2012

Funny Games (Brincadeiras Perigosas), Michael Haneke (1997)


          
              Lembrei-me vagamente da peça The Birthday Party, de Harold Pinter a propósito deste filme. De facto, há algo que o coloca no âmbito do teatro do absurdo, com personagens-tipo algo lisas, situações bizarras e inexplicadas e uma linha narrativa despojada de praticamente qualquer vestígio de contextualização. Tal como a peça, o filme gira em torno da relação entre dois torcionários e as suas vítimas: torturadores verbalmente articulados e caracteristicamente opostos, um mais elegante e sardónico e outro mais emocional e boçal, e vítimas casuais, sem relação aparente com os agressores, que procuram diversa e inutilmente resistir-lhes. Em ambos os casos a violência é gradual, afirmando-se na ação paulatinamente e ao longo de passos lógicos, de ação-reação: violência arbitrária, ainda assim, mas ridiculamente mascarada por uma suposta necessidade superior, como se ela fosse mais penosa para os torturadores do que para as vítimas, como se, por qualquer razão que desconhecemos, tivesse de ser. 
           Já conhecia alguns filmes do realizador Michael Haneke. Já esperava algo do género, portanto. A certa altura, ainda nas sequências iniciais do filme, a impressão vaga de uma incerteza: estas pessoas são realmente sinistras ou são simplesmente austríacas? Música clássica, lagos alpinos, casas demasiado bonitas, natureza suspeitamente idílica, vizinhos estranhamente simpáticos… Há um texto de Freud (outro austríaco) que ando para ler, Civilization and Its Discontents, que nos fala dos diversos descontentamentos da civilização: genericamente, a fragilidade do verniz de civilidade e a forma como a própria civilização pode, por outro lado, refinar a animalidade cruel que se esconde por baixo desse mesmo verniz (a esse respeito há a substituição inesperada da música clássica por death metal logo nas cenas iniciais, bem como a própria quebra dos ovos). De certo modo, é disso que o filme trata: de uma violência civilizada, de uma crueldade fruída, de simples brincadeira, em suma, de jogo. De particularmente interessante, há o convite ao expectador (nós, do outro lado da tela) a participar no jogo de tortura: o torcionário bem-parecido pisca-nos olhos, fala connosco, aposta connosco sobre a vida das vítimas, ri-se para nós. O que abre outras linhas interpretativas, que me surgiram continuamente ao longo da experiência desagradável que foi ver o filme, nomeadamente aquelas que se relacionam com a nossa própria conivência com a violência. O filme pode ser visto, deste modo, como uma metáfora mais geral para a sociedade e, nessa linha, os torcionários podem ser muita coisa, desde o estado, com o seu monopólio da violência, passando pela religião, que faz a vítima pedir perdão pela sua própria execução, até à representação artística em geral e ao cinema em particular. Com respeito a este último há a curiosa cena do rewind, momento em que definitivamente percebemos que não há nada a fazer pelas vítimas; ou mesmo a faca que fica no barco, último lampejo de esperança, e que depois não serve para nada: mais uma achega para a desorientação, a confirmação final de que não há nada a esperar de um enredo, aliás, de qualquer teleologia. Nada serve para nada, e esta convicção está intimamente ligada ao (e é característica do) espaço híper-civilizado centro-europeu: afinal, só mesmo quem tem tudo é que pode chegar a tal conclusão; só mesmo quem chegou aos pináculos do bem-estar pode sentir a necessidade de recriar metodicamente o caos, como os alemães fizeram nos campos de concentração. Digo alemães, e não nazis, porque os nazis eram efetivamente alemães; e os austríacos também são alemães, e foram, vale a pena recordar, mais entusiasticamente nazis do que os próprios nazis. 
           No meio de tudo isto a questão que sobra é, portanto, para que raio havemos nós de querer ver estes filmes? Que tipo de consciência atira, assim, com uma coisa destas para cima do espectador de cinema? E com que objetivo? Bem, com Haneke não é fácil responder a estas perguntas. E, contudo, não consigo não gostar do que ele faz. A forma como nos deixa maldispostos, desorientados, imbecilmente à espera de respostas, perdidos na tela como crianças e mesmo completamente zangados traduz, no fim de contas, uma suprema ironia artística. E, no fundo, não há como culpá-lo, pois ele simplesmente nos mostra o outro lado da razão: os monstros que o seu sono produz (Goya). Como dizem os ingleses, you don’t shoot the messenger

              Outra pergunta que legitimamente se pode fazer é: porque raio se deu Haneke ao trabalho de fazer um remake com atores de Hollywood? Que tal obrigar os americanos a ler legendas?


segunda-feira, 25 de junho de 2012

In the Land of Women (No Mundo das Mulheres), Jon Kasdan (2007)


Andava há muito a resistir ao filme. Tinha vindo com uma revista, uma oferta que, no caso, não desejava. De facto, havia mesmo comprado a revista pela revista, e não pelo filme que a ela vinha acoplado: uma película que desconhecia e a que rapidamente colei o rótulo de comédia romântica insonsa. O filme andou perdido durante largos meses por entre as séries Y do Público (em que se deu o caso inverso, ou seja, comprei o jornal por causa dos filmes) que, de resto, se têm tornado elas mesmas crescentemente insonsas. Aqui há dias lá acabei por ver o filme, após esgotar tudo o que havia das séries Y, terminando com um filme do Haneke a que, compreensivelmente, também andava a resistir. E, claro, era efetivamente uma comédia romântica, ainda que não tão insonsa assim. Ou melhor, insonsa na medida estrita da necessidade da sua função comunicativa. Ora vejamos…
A comédia romântica mediana americana é um produto cultural que, apesar da sua estandardizada previsibilidade narrativa (ou, porventura, precisamente por causa dela), tem uma força ideológica impressionante. Há invariavelmente uma série de elementos dados à partida entre os quais, inspirado por este filme, destaco dois. Há, por um lado, o jovem que quer redescobrir as suas origens, neste caso (e como é muito habitual nestes filmes) com a intenção meta-narrativa de escrever um romance. As origens são, claro, familiares, porquanto estas são as únicas que a psique americana é, na prática, capaz de conceber. Há, depois, e por outro lado, a difusa ética romântica que anula o espaço da sexualidade, bem como a configuração, de inspiração marcadamente protestante, dessa ética na forma de um caminho messiânico: a lógica da pessoa certa que para nós que virá ou que já está à espera algures e que se procura. Ou seja, as relações românticas funcionam, nestes filmes, como um ersatz para a busca ou a contemplação espirituais e religiosas. Estas duas lógicas combinam-se numa mistura curiosa de construção identitária e coerção inconsciente do indivíduo por si mesmo: procurando-se, estas personagens encontram apenas o que a configuração moral da sociedade já tem preparado para elas. Assim, a mulher suburbana de meia-idade acaba por se culpar a si mesma pelo affair do seu marido, sentindo que a vida de mãe a tempo inteiro a deserotiza para lá de qualquer possibilidade de hétero e auto-valorização. Ao mesmo tempo, e de uma forma que coincide com a própria ação, ela reafirma-se como a guardiã das regras morais familiares, privando-se de uma aventura sexual equivalente. A sua filha adolescente, por seu lado, e apesar das críticas à mãe, mostra ter entendido bem a mensagem ao correr para os braços de um self-made man em potência que, na devida altura, a tratará também de suburbanizar arranjando o seu próprio affair. Quanto ao catalisador de tudo aquilo, damos com ele no final do filme, aflito porque ainda não se casou (a tanto se resumia a sua busca identitária), mas a tratar do assunto com uma empregada de mesa daquelas que andam sempre a despejar café solúvel nas canecas dos clientes.
A função essencial de uma ética religiosa mantém-se, assim, através destes objetos culturais aparentemente insignificantes e manifestamente profanos. Os americanos são, de resto, muito bons nisto: no limite, e como bons protestantes que são, tudo para eles é, no fundo, religioso. Nada, em última instância, é inteiramente insonso, nenhum objeto cultural é realmente inocente: tudo quer dizer alguma coisa, e é muitas vezes nos filmes aparentemente mais pueris que encontramos as mensagens mais eficientes. 



quinta-feira, 10 de maio de 2012

A Mamoa


               
                Da primeira vez que a vi, única que estive ao pé dela, um vento malévolo rasgava as rochas. À beira da estrada nacional uma placa castanha indicava-a: de tantas vezes ignorar o seu apelo decidi aceitá-lo. A subida da encosta por um trilho de pedras ladeava uma sucata. O limiar da aldeia, triste como o abandono, era um convite ao insondável. O vento doía-me na pele à medida que subia, o frio gelando o suor dos passos. Plantas rasteiras para lá do estreito trilho de pedras, duras como as próprias pedras; pesando sobre mim, a ameaça de um céu pesado, obscuro como a cúpula vazia de uma catedral. E então vi-a. Discreta elevação tumular, calhaus soltos, ventre telúrico, estranho mistério. Rodeando-a, apenas o tempo, eterno como as montanhas.
                Passo muitas vezes na autoestrada que a contorna. Procuro, com o olhar, discernir um ponto longínquo, um lugar para lá da velocidade circunstancial da minha existência. Procuro-lhe o perfil, um seio destacado do contorno ígneo do crepúsculo, envolto no afago agreste do vento. Ela lá está, por detrás da estação de serviço, sinalizando a porta que se abre para o outro lado do tempo.

segunda-feira, 26 de março de 2012

The Cave of Forgotten Dreams (A Caverna dos Sonhos Perdidos), Werner Herzog (2010)


             

             É muito difícil captar num simples artigo toda a riqueza simbólica presente neste filme documental. De facto, quase todas as sequências motivariam, assim se quisesse, um ensaio. Tudo parte, no entanto, de uma obra artística: uma gruta no sul de França cujas paredes se encontram cobertas de pinturas do paleolítico, as mais antigas de que há conhecimento. O filme, com efeito, reinterpreta essa obra numa lógica intertextual, fazendo a ponte entre os primórdios da figuração e a arte cinematográfica. Parece descabido? Não é, de todo. A arte é fundamentalmente una, e se podemos descortinar traços de um proto-cinema na Caverna dos Sonhos Esquecidos (a Gruta de Chauvet, no sul calcário de França), também podemos gracejar a propósito da prevalência dos padrões de beleza femininos das vénus paleolíticas nas séries americanas atuais ou tocar o Star-Sprangled Banner numa flauta de osso pré-histórica.
   A cor e o traço das gravuras surpreendem de imediato. Estamos habituados a pensar neste tipo de arte como uns “risquitos” (efeito Vale do Coa, certamente), mas aquilo aproxima-se bem mais de uma Capela Sistina pré-histórica, uma espécie de catedral das cavernas. O facto de a obra documentada ser de uma beleza efectivamente desarmante não deve eclipsar o feito do realizador do filme. Num contexto de extremas limitações técnicas, Herzog faz um filme incrivelmente belo, um verdadeiro retoque artístico feito nas pinturas de há dezenas de milhar de anos atrás. Não se podendo visitar a gruta, o filme fica, para o público em geral, não como o retrato possível, mas sim como uma aula verdadeiramente magistral sobre o sítio: Herzog revela-se, com efeito, um intérprete à altura do local patrimonial, guiando-nos, à medida que ele mesmo se faz guiar, pelo estonteante labirinto da gruta. O 3D, esse, revelou finalmente para que serve. A tridimensionalidade das pinturas, que jogam com as irregularidades das paredes da gruta, o brilho onírico das estalagmites e a voluptuosidade dos rendilhados calcários que tecem o ambiente mágico da gruta, o subtil jogo de chiaroscuro reflectindo-se nas paredes e nos rostos dos homens que perturbam o silêncio do local, tudo isso ganha uma densidade notável, pontuando assertivamente o argumento artístico de Herzog: a sala de cinema enquanto extensão da própria gruta, o filme como leitura criativa da realidade.
                Mas vamos por partes (pois, como disse, há tanto a dizer sobre o filme que o melhor mesmo é ir vê-lo). A entrada inicial na gruta sugere um tema clássico, o da descida (o Hades, os poços, Viagem ao Centro da Terra, o subconsciente, etc). A escuridão da gruta oculta os sonhos, sonhos esses que, desde que Freud ensaiou a sua interpretação, sabemos serem o único caminho para os recantos mais profundos da psique. A gruta é, ela mesma, um percurso iniciático que é preciso percorrer ao contrário, retrospectivamente, porque a entrada principal ruiu (tanto real como metaforicamente). Os cientistas estudam o local, estudam o labirinto dos passos individuais na gruta, descodificam pegadas, ossos e mãos, mas o mistério inelutável de nós mesmos e da nossa perene humanidade só se dá a conhecer a quem sabe ouvi-lo. Há uma sequência admirável, em que alguém convida os presentes a escutarem o silêncio da gruta e a câmara oscila, poeticamente, entre as cores quentes e o traço puro das pinturas e os rostos quietos dos espeleólogos: homens e mulheres, com pálidas luzes nos capacetes, a humanidade frente ao espelho mágico da arte. As pinturas representam animais*, em todas as mitologias os símbolos operativos das características fundamentais do ser humano: leões, ursos, hienas, rinocerontes e também outros entretanto perdidos na bruma do tempo, como o grande veado irlandês, o mamute ou o auroque. Deuses selvagens, sim, que mais tarde seriam humanizados e mesmo historicisados, mas ali, artisticamente convocados em concílio, constituem um panteão do concreto, um mito tangível, uma religião cujos sacramentos eram consubstanciais com a vida. 


            E depois, há os cavalos, alinhados como santos numa catedral gótica, mas infinitamente mais ancestrais, mais profundos, mais significativos e incomensuravelmente mais místicos, suspensos no tempo e no espaço, criados num perdido gesto encantatório: a criação do espírito, da eterna e indizível interrogação que anima o Homo Sapiens (que nome tão mal dado a uma criatura que sabe tão pouco, como dizia um arqueólogo…). Os cavalos daquela gruta são uma linguagem sem palavras, o arquétipo da construção simbólica. Algo difícil de referir, que deixo, como tal, a quem sabe: Ted Hughes, The Horses, poema aqui traduzido por mim, com um forte convite, a quem souber inglês, à leitura do original.


Subi através dos bosques no escuro da hora-antes-da-alva.
Ar malévolo, um silêncio de fazer geada,

Nenhuma folha, nenhum pássaro –
Um mundo moldado em geada. Saí, sobre o bosque

Onde o meu fôlego deixou tortuosas estátuas na luz de ferro.
Mas os vales escoavam a escuridão

Até à linha dos montes – borras enegrecidas do cinzento clareado –
Rasgando, adiante, o céu em dois. E vi os cavalos:

Enormes no cinzento denso – dez ao todo –
Imóveis megálitos. Respiravam, não se movendo,

Com crinas pendentes e cascos traseiros inclinados,
Não fazendo um ruído.

Passei: nem um resfolegou, ou cabeceou.
Fragmentos cinzentos e silenciosos

De um mundo cinzento e silencioso.

Ouvi, vazio, no cume dos montes.
A lágrima da garça virou a sua face ao silêncio.

Lentamente, o detalhe folheado na escuridão. Depois o sol
Laranja, vermelho, vermelho entrando em erupção

Silenciosamente, e rasgando até ao cerne e espalhando as nuvens,
Fendeu o estreito, mostrou o azul,

E os grandes planetas pendentes –
Virei-me

Tropeçando na febre de um sonho, descendo,
Para os bosques, dos cumes tremeluzentes,

Até aos cavalos.
Ali estavam eles ainda,
Mas agora vaporando e reluzindo sob a corrente da luz,

As suas crinas de pedra pendentes, os seus cascos traseiros inclinados
Mexendo, derretendo, enquanto à sua volta

A geada mostrava as suas chamas. Mas eles ainda não faziam um som
Nem um resfolegava ou patejava

As suas cabeças curvadas pacientes como os horizontes
Sobrepondo-se aos vales, nos raios vermelhos que alisam o chão –

No bulício das ruas atulhadas, indo pelos anos, pelos rostos,
Possa eu ainda encontrar a minha memória em tão solitário lugar

Entre os regatos e as nuvens vermelhas, ouvindo as garças,
Ouvindo os horizontes durar.




* A quase exclusividade dos animais nas pinturas (de facto, também havia símbolos abstractos, mãos em negativo, e mesmo uma representação parcial de uma mulher) parece ter surpreendido a audiência. Escutei, a dada altura, uma pergunta que também encontrei no IMDB: porque é que eles só desenhavam animais? Esta interrogação ilustra bem a insensibilidade espiritual e natural (há verdadeira espiritualidade sem natureza?) da contemporaneidade… Afinal, tão civilizados que somos, acabámos por nos habituar a venerar carros, prédios, lojas, contas bancárias e celebridades, ao mesmo tempo que metíamos os poucos animais que ainda tolerávamos no jardim zoológico. Em termos de deuses ficamos, parece-me, muito pior na fotografia do que os nossos antepassados… 

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Passeio Crepuscular em Montmartre





           
            Paris, Montmartre ao fim da tarde, a noite cai gélida, colando às janelas vagos desejos que os turistas procuram em vão guardar nas suas máquinas fotográficas digitais. A colina, encimada pela massa irreal da Sacré-Coeur, oferece-nos a vista da cidade que se espraia em luzes, lisa como a superfície de um lago quieto: torres de igrejas, flechas de catedrais, a torre Eiffel rasgando sonhos no céu de pastel.            
Revisito mentalmente Montmartre pela voz de Aznavour. A canção fala-nos da arte, da criação e da sua inebriante alegria, dos idealismos da juventude e seus vãos sonhos de glória, e duma coisa mais vaga e indefinida que tudo permeia, vaga como o ar e fugaz como o tempo: l’ air du temps, o ar do tempo, algo a que os alemães (tão metafísicos que eles são) chamam Zeitgeist, espírito do tempo. O tempo é o verdadeiro tema da canção. Mas trata-se de um tempo especial, com delimitadores bem marcados, um tempo transmutado em lugar, ou um lugar conjugado no imperfeito: boémia, Montmartre.
Montmartre, com efeito, é um passado suspenso, resquício inventado de outro tempo, sonho ingénuo de turistas pós-modernos, pequeno delírio crepuscular da cultura, cemitério kitsch da arte. Montmartre escreve-se no imperfeito, com a textura rendilhada das suas ruas oferecendo-nos o prazer inconsequente dos versos escritos pelos poêtes maudits e as pedras da calçada as linhas limpas das telas modernistas. Paris, vista de Montmartre é ela própria uma passante grácil e etérea, pequeno mundo caleidoscópico, flâneuse de si mesma. Os turistas, de máquina digital em punho, dão apenas a sequência possível à história: passantes par excellence fazem, de olhos no guia, um relaxado luto por uma civilização perdida, uma certa ideia de Europa, se quisermos.
A canção lamenta o tempo que passa, recusa a Montmartre atual, acha-a triste e desleixada porque deixou morrer os amores-perfeitos. A poesia, de facto, só reconhece perfeição aos amores pretéritos, um pouco como os casais que amam um no outro as recordações da paixão que os une. Há, afinal, outra forma de amar? Não, todo o amor é uma forma de narcisismo, ainda que partilhado. Como o amor narcisista de Montmartre por si mesma, artística e, ainda que preteritamente miserável, perenemente bela, orgulhosamente alçada acima das agitadas ruas parisienses.