Sempre gostei de banda-desenhada em geral, e do
Tintim em particular. Lembro-me bastante bem da primeira vez que li um livro da
personagem, embora não tenha a certeza absoluta se era A Ilha Negra ou O Cetro de
Ottokar. Dei com o álbum na biblioteca da escola preparatória, andava eu no
5.º ano, e daí foi certamente um passo rápido para o encantamento. Da linha, da
cor, da aventura, mas essencialmente da viagem. E, fosse num país balcânico
imaginário, fosse sob os céus plúmbeos da Escócia, soube-me bem viajar naquelas
pausas antes das aulas da tarde, a seguir ao intragável almoço na cantina (sei
que todos os alunos se queixam das cantinas mas, acreditem, eu tinha razões
para isso).
A Ilha Negra (clique para aumentar) |
Não voltei a encontrar-me com o Tintim durante
bastantes anos. De facto redescobri-o apenas quando o jornal Público
disponibilizou, a preço de saldo, a coleção completa das suas aventuras. Nessa
altura eu já não era propriamente uma criança. O encantamento, no entanto,
permaneceu: com efeito o Tintim mostrou-me, para meu agrado, que a minha
predisposição para o deleite só aumentou com os anos. E essa constatação dá-me
argumentos para superar o habitual preconceito sobre o que é para crianças e
jovens e o que é para adultos. De facto, porque é que aquilo que realmente nos
deleitou em miúdos tem de ser tão implacavelmente deitado fora só porque nos
tornamos adultos? Não, há coisas que o próprio tempo se encarrega de canonizar,
e que assim transcendem essas catalogações fáceis. Portanto, continuei a
deixar-me levar pelas aventuras do Tintim. Leio-as e releio-as avidamente, na
realidade. E já cheguei, até, a escrever sobre elas, numa determinada altura: http://a-espera-de-godot.blogspot.com/2011_01_01_archive.html.
Conheço bastante bem, portanto, o universo das
aventuras de Tintim. E, como tal, achei que não devia deixar de ver o recente filme
da personagem. Sabia de antemão, como sempre acontece nestas coisas, que o
produto podia não me agradar inteiramente, que o mais certo era mesmo não me
agradar, mas enfim, deixei-me de purismos e lá pus, como os outros, os óculos
3D. Em último caso, o deleite dos álbuns já ninguém mo tira, pensei.
Lembrei-me, no entanto, de umas linhas num ensaio de T. S. Eliot, Tradition and the Individual Talent, no
qual é dito que não são apenas os clássicos que influenciam as variações que
sobre eles são feitas: de facto, também essas variações moldam as leituras
ulteriores dos próprios clássicos. Os álbuns, portanto, já não serão exatamente a mesma coisa depois disto…
Façamos, portanto, uma apreciação do filme em termos
positivos e negativos (atenção: daqui para a frente há spoilers). Comecemos pelos positivos. Graficamente, o filme é
interessante. Ainda que não tenha gostado do retrato do Capitão Haddock
(estático, exagerado e, face ao original, inexpressivo), a transposição para um
modelo semirreal do Tintim está bastante bem feita. O boneco consegue uma
síntese perfeita entre o seu original desenhado e o que seria o seu
correspondente na vida real. A cena do retrato feito no mercado (não consegui
confirmar se o retratista é o próprio Hergé, mas seria bastante inteligente que
fosse) é particularmente feliz ao estabelecer essa ligação ao mesmo tempo que
faz um tributo aos álbuns. O argumento, centrado nos álbuns O Segredo do Licorne e O Caranguejo das Tenazes de Ouro, parece-me
também bastante bem-conseguido ao conseguir fazer referência a elementos de
praticamente todos os álbuns. A junção mais forçada é a cena das bolas de
bebida disputadas entre o Capitão e Milu, em que as quedas livres da aeronave
simulam o efeito de ausência de gravidade que ocorre, na realidade, no álbum Explorando a Lua.
Explorando a Lua (clique para aumentar) |
Este é um exemplo de
como a linha narrativa do filme caminha perigosamente perto de se transformar
numa caldeirada de Tintim: penso, de qualquer modo, que tal não é o caso, e
essa é definitivamente uma qualidade do argumento.
No
entanto, alguém que não tenha lido nenhum dos álbuns (e aqui entramos na
crítica negativa) ficará, apesar disso, com uma visão profundamente errada do
que é a série de álbuns do Tintim. A este respeito é interessante interrogar as
pequenas diferenças: confesso que não resisti a folhear os dois álbuns que mais
explicitamente servem de base ao filme ao chegar a casa. Há, desde logo, as
pequenas alterações inexplicáveis. O hidroavião que metralha Tintim, o Capitão
Haddock e Milu em alto-mar tem, no álbum, matrícula marroquina. Por que
insondável motivo é que no filme lhe põem uma matrícula portuguesa? Uma
referência obscura ao facto de haver uma personagem portuguesa nos álbuns (que
não aparece no filme)? Mas se o senhor Oliveira da Figueira é uma personagem
claramente positiva, que por mais de uma vez ajudou o Tintim, porquê essa
despromoção tão grosseira dos portugueses no filme? Porque é que de simpáticos
vendedores de bugigangas nos livros passámos a metralhadores de náufragos no
cinema? Não bastam já as agências para denegrir a nossa imagem internacional?
O Caranguejo das Tenazes de Ouro (clique para aumentar) |
Outra alteração, essa já mais explicável, é aquela a
que é sujeito o xeque Omar ben-Salaad. Tudo bem que nos álbuns este é um
traficante de ópio: mas o grau de malvadez a que o filme o eleva é
completamente despropositado. O ben-Salaad do álbum faz-se transportar sobre
uma mula no meio do seu povo: o do filme vive num palácio híper-sumptuoso,
rodeado pelas águas duma barragem a abarrotar enquanto o povo raciona água. A explicação
é simples: o público americano não consegue conceber um xeque que não seja um
tirano e que não viva no luxo enquanto o povo sofre. A imagem do ben-Salaad
original irritaria, portanto, muita daquela gente que acha que a vocação
nacional dos Estados Unidos é libertar povos árabes dos seus déspotas.
Paradoxalmente (ou não), o Tintim do filme está-se nas tintas para o povo
árabe, bem ao contrário do seu modelo desenhado. Bem à moda americana, este
Tintim de Spielberg limita-se a destruir completamente uma cidade árabe.
O Caranguejo das Tenazes de Ouro (clique para aumentar) |
Isto leva-nos a outra questão mais profunda. A
banda-desenhada franco-belga é diferente dos comics americanos precisamente na medida da contenção. Os heróis
franco-belgas são, para todos os efeitos, humanos, o que permite uma identificação
mais genuína. Ao ler um comic do
Super-Homem eu sei, desde logo, que não posso voar, não posso amparar um Boeing
em queda livre, não posso congelar, com um sopro, um vulcão em atividade. O
Homem-Aranha ainda se suporta: afinal, Peter Parker é um estudante
universitário teso, com um part-time miserável e uma namorada chata a quem
calhou a ambígua sorte de ser mordido por uma aranha radioativa (algo que pode,
afinal, acontecer a qualquer pessoa). Já o Batman será, porventura, o único
herói de comics sem superpoderes, mas
aquele hábito de vestir o sobrinho com aquelas roupas coloridas é, no mínimo,
suspeito. A banda-desenhada americana alimenta-se, portanto, de uma estética do
excesso (e isso é normal, é bom mesmo, afinal habituámo-nos a ela assim). Não
exagerarei, no entanto, se disser que é a essa estética que este filme converte
o ícone maior da banda-desenhada franco-belga: e disso, no entanto, não gostei,
não gostei mesmo nada. Seria expectável, e até desculpável numa certa medida,
mas Spielberg exagera. Do ponto de vista de qualquer possibilidade de
identificação com a personagem, este Tintim supera o próprio Super-Homem: este
Tintim, na realidade, é um Ranger do Texas…
Já não falo, aqui, das pequenas diferenças. No álbum
Tintim, ao procurar qualquer coisa (o pergaminho) debaixo de um armário agacha-se e
apalpa por debaixo do móvel como uma pessoa normal, dando ao levantar-se uma
cabeçada na gaveta superior, que estava aberta.
O Segredo do Licorne (clique para aumentar) |
Nem isso o super-herói de
Spielberg pode fazer: fortalhaço como é, arrasta o armário com um golpe decidido
de braços. Mas enfim, como dizia, pequenas diferenças. O que já não é uma
diferença pequena, mas antes altera completamente a personalidade da
personagem, é a constante necessidade de autoafirmação, que toma conta de
Tintim, de Haddock e do próprio Milu. Todos passam o filme a tentar provar que
são machos carregados de testosterona. Tintim, que nos álbuns só pegava num
revolver quando era mesmo preciso, tem no filme dedo leve no gatilho. Haddock é
acometido de culpas puritanas, bem ao estilo protestante, sempre que bebe: e
bebe de tudo, parecendo mesmo preferir álcool etílico ao scotch que lhe fazia as delícias nos álbuns. E depois tem
flatulências, e arrota generosamente, coisa que nunca fez num álbum. E até Milu
domina um Rottweiler (que, no álbum, é um dogue alemão). Já não queria pegar
pela mirabolante história de vinganças transgeracionais que inventaram para o
Capitão mas, enfim, como dizia o outro senhor, não havia necessidade…
Aqui há uns anos surgiu uma publicação, que retomava
a personagem do Tintim na idade adulta. Milu havia morrido, Haddock mergulhara
em definitivo no álcool, e Tintim era um misto de repórter e detetive de film noir com uma vida sexual turbulenta
e generosamente povoada. A ideia causou polémica, ao ponto de a publicação ser
cancelada. A opinião geral foi de que há limites para o que se pode fazer com
uma personagem. A pergunta é: se for Spielberg a fazê-lo, já não há?
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