O Cineclube de Guimarães tenta, sempre que possível,
contribuir para a superação do preconceito que os espectadores manifestam,
habitualmente, em relação ao cinema português. Tenta mesmo, aliás, estão sempre
a dizê-lo. Desta vez as coisas correram bastante bem: a sala do Pequeno
Auditório (quiçá escolhida para evitar clareiras demasiado óbvias) quase não
chegava para acolher toda a gente que veio ver este filme. De resto, e os
circuitos cinematográficos alternativos têm este tipo de vantagem, a sessão
ficou enriquecida com a presença do realizador, que conversou um pouco sobre o
filme com os espectadores no final da sessão. Como sempre acontece nestas situações,
a conversa foi interessante não tanto pelo que o realizador disse mas, essencialmente,
pelas opiniões que os espectadores verbalizaram em relação ao que tinham
acabado de ver.
O filme propriamente dito é globalmente bom, embora
esteja algo longe de ser, como aparentemente alguns críticos mais relaxados o
classificaram, uma obra-prima. A espaços, e principalmente no início, parece
que se encaminha nessa direção, mas quando a narrativa se adensa a riqueza de
pormenores que faz a delícia do espectador até sensivelmente ao intervalo
torna-se mais rarefeita, e o filme perde interesse. Um pouco como Romeu e
Julieta, Sangue do meu Sangue começa por ser uma boa comédia que acaba como uma
tragédia insossa, ainda por cima enfraquecida pela envolvência etnográfica que dilui
o universal humano, essencial nesse género dramático. Há personagens deliciosas
no filme que são abandonadas ou se perdem na atmosfera crescentemente negra que
se vai criando à medida que a narrativa avança: a mãe (sem dúvida o melhor do
filme, protagonizada por uma sempre excelente Rita Blanco), o dueto composto
pelo namorado segurança e o irmão ladrãozeco que chega a lembrar Tom and Jerry, a namorada negra
sorumbática que não abre a boca o filme todo…
Outro ponto forte do filme é a forma como nele é retratada a vida quotidiana ao nível familiar. A composição hiper-realista dos diálogos simultâneos, forçando o espectador a escolher qual deles quer ouvir, além de formalmente inovadora, ecoa metaforicamente a necessidade de fazer escolhas com que as personagens do filme se deparam. Também gostei da forma como o som de fundo das televisões foi usado: a única banda-sonora do filme são os relatos televisivos dos jogos de Portugal no mundial de 2010 e as notícias do telejornal que nos falam da entrevista do Teixeira dos Santos à CNN. Passou apenas um ano, e parece que já foi há tanto tempo! O filme mostra bem como, nestes dias, o presente passa à história diante dos nossos olhos confusos e aterrados. E depois, há o bairro Padre Cruz, que é uma personagem da história de pleno direito.
Outro ponto forte do filme é a forma como nele é retratada a vida quotidiana ao nível familiar. A composição hiper-realista dos diálogos simultâneos, forçando o espectador a escolher qual deles quer ouvir, além de formalmente inovadora, ecoa metaforicamente a necessidade de fazer escolhas com que as personagens do filme se deparam. Também gostei da forma como o som de fundo das televisões foi usado: a única banda-sonora do filme são os relatos televisivos dos jogos de Portugal no mundial de 2010 e as notícias do telejornal que nos falam da entrevista do Teixeira dos Santos à CNN. Passou apenas um ano, e parece que já foi há tanto tempo! O filme mostra bem como, nestes dias, o presente passa à história diante dos nossos olhos confusos e aterrados. E depois, há o bairro Padre Cruz, que é uma personagem da história de pleno direito.
Acontece que eu, curiosamente, conheço o bairro Padre
Cruz: essa localização chamou-me de imediato a atenção quando li algo sobre o
filme. O bairro Padre Cruz é um bairro social lisboeta, ao pé da Pontinha.
Seria uma geografia que nada me diria, como não dizia à plateia na sessão, se
não se desse a circunstância de eu, por acaso, o conhecer. E isso seria já de
si interessante, nem que fosse simplesmente pela possibilidade de ver em cinema
um local que conheço na realidade. Já tinha visto o Azibo, a linha do Tua (não,
não foi no Pare, Escute e Olhe) e até
uma certa rua de Paris, mas tudo de um modo meio acidental e algo fugaz. O
bairro Padre Cruz, no entanto, irrompe por este filme adentro, com as suas
vielas estandardizadas simulando, em mau urbanismo, o mapa hidrográfico
português; os cães que não param de ladrar; os escarros profundos que rasgam a
noite; o ensurdecedor ruído das vidas dos vizinhos, cujas trajetórias parecem
poder ser narradas recorrendo apenas ao parco vocabulário constituído por meia
dúzia de palavrões constantemente repetidos; a inacreditável pequenez das casas;
a estranha consistência de lata e vidro velho que todo o bairro parece ter, que
se cola aos ouvidos, às mãos, aos olhos; o bizarro caldo de cultura feito de
transmontanos, beirões, alentejanos, guineenses, cabo-verdianos, angolanos,
brasileiros e ciganos; o perverso sentimento de comunidade que causa um
estranho desconforto a quem entre no bairro vindo de fora dele; o café
esquálido, único num raio de quilómetros, no qual a hora de fecho é apressada varrendo
priscas quase por entre as pernas dos clientes; e as vistas sobre os arrabaldes
lisboetas que se tem da estrada onde se apanha o autocarro, a meio caminho
entre uma paisagem urbana com ressonâncias árabes e mexicanas e um surreal
deserto feito de precários casinhotos com enormes blocos de apartamentos sem
varandas ao fundo.
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